Doses maiores

31 de maio de 2019

Os lucros por trás do massacre das prisões de Manaus

Em 27/05, 55 detentos de quatro presídios amazonenses foram mortos. A causa do massacre teria sido uma briga entre facções.

A imprensa preferiu destacar o sofrimento das famílias dos mortos. Mas o que pouco se informou é que as quatro unidades prisionais são administradas por uma empresa.

É a Umanizzare (Humanização, em italiano). Uma das prisões que ela administra é o Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em cujas dependências morreram, em 2017, outros 56 detentos.

Apenas nessa unidade, a empresa recebia, por mês, R$ 4,7 mil por preso. Já nos presídios que são administrados pelo governo, o custo é de R$ 4 mil.

As informações e dados são do Ministério Público do Amazonas em reportagem publicada pelo portal Rede Brasil Atual em 29/05/2019.

Matéria do jornal Brasil de Fato, por sua vez, revela a existência de uma “bancada da jaula”, denominação que demonstra o que seus membros pensam da população carcerária.

Alguns dos componentes da tal bancada, são os deputados federais do PSC do Amazonas, Silas Câmara e sua esposa, Antônia Lúcia Câmara. Ambos receberam R$ 600 mil da Umanizzare para suas campanhas. A filha do casal, Gabriela Ramos Câmara, ficou com mais R$ 150 mil para sua eleição a deputada estadual no Acre.

A empresa administra dois presídios no Tocantins e seis no Amazonas. Somente neste último, o grupo recebeu R$ 836 milhões nos últimos cinco anos.

Este é só mais um desdobramento da política de super-encarceramento vigente no Brasil há algumas décadas. Agora, Manaus mostra que essa política também vai se tornando um negócio lucrativo para poucos e, literalmente, mortal para outros.

Leia também: Apanhado de pílulas sobre a situação nas prisões

30 de maio de 2019

O gato chinês já foi um tigre

“Não importa a cor do gato, desde que ele cace o rato”. Deng Xiaoping usava esta frase para explicar o modelo que começou a implantar na China, em 1978.

Foi a partir desse ano que o país passou a adotar mecanismos de mercado para tentar responder às necessidades de sua imensa população. Até agora, a experiência tem sido um sucesso. Mas um sucesso capitalista.

É verdade que na economia chinesa ainda predomina a propriedade estatal dos principais meios de produção. Mas, atualmente, a maioria dos empregos é gerada no setor privado, também responsável pela maior parte do PIB.

O monopólio do poder continua nas mãos do Partido Comunista Chinês. Mas desde 2002, está autorizada a entrada de capitalistas em suas fileiras.

Ou seja, o tal gato de Deng tem patas, rabo, cabeça e bigodes capitalistas. De comunista, apenas o nome com que foi batizado há muitas décadas. E a cor...

Difícil acreditar, por exemplo, que a China se mantenha socialista, quando se tornou responsável por sustentar, em nível global, um sistema econômico radicalmente oposto a tudo que se possa entender por socialismo.

Mas há os que nem se importem com isso. Para estes, a sociedade chinesa teria colocado o capitalismo a serviço de seus objetivos. Se estes carregam o vermelho do socialismo ou não, pouco interessa.

O problema é que adotar esse modelo como referência exigiria uma pré-condição para a qual poucos dos defensores do capitalismo de estado chinês parecem estar preparados.

Trata-se da realização de uma revolução social anticapitalista radical, envolvendo dezenas de milhões de explorados. Em 1949, o felino que nasceu era um tigre.

Leia também: China: capitalismo, sim. Neoliberalismo, jamais

29 de maio de 2019

As milícias no comando

“No Rio de Janeiro a milícia não é um poder paralelo. É o Estado”, diz José Cláudio Souza Alves, em entrevista a Mariana Simões para a Agência Pública, publicada em 31/01/2019.

Autor do livro “Dos Barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense”, o sociólogo estuda as milícias há 26 anos. Segundo Alves, elas:

São formadas pelos próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador. É um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente. Sem essa conexão direta com a estrutura do Estado não haveria milícia na atuação que ela tem hoje.

Alves identifica suas origens na criação da Polícia Militar, em 1967. A partir daí, vieram os esquadrões da morte, que teriam inspirado os atuais grupos de extermínio.

A certeza da impunidade que as ligações com o Estado permitem é tamanha, afirma o entrevistado, que seus membros já chegam dizendo: “Eu sou o cara, eu sou o matador, eu tenho vínculos com fulano, beltrano e sicrano. Eu ocupo este cargo”.

E os três mandatos do PT no governo federal nem arranharam essa estrutura, lamenta Alves. Ao contrário, é triste lembrar que o partido chegou a ter um deputado miliciano na Alerj.

O resultado está aí. Hoje, a milícia é o Estado não somente no Rio de Janeiro.

Entre as principais características dessas organizações, afirma o sociólogo, estão a estrutura familiar e a vinculação a igrejas. Duas instituições cuja credibilidade é explorada com sucesso pelos grupos de extermínio.

Mas não tem Brasil acima de tudo ou Deus acima de todos. Só a milícia no comando.

Leia também:
Nas eleições, o crime se organiza

28 de maio de 2019

Pra brigar, tem que entrar na arena

Esperava-se que as manifestações do dia 26/05 fossem uma resposta do governo àquelas realizadas em 15/05. Acabaram sendo muito menores que as da oposição, mas a questão nem é essa.

O grande alvo dos protestos bolsonaristas foram setores da própria direita. Da “velha política”, dizem eles. Afinal, se há alguém que vem atrapalhando os planos de Bolsonaro, é a direita tradicional

A esquerda tradicional, nem isso vem fazendo.

Ao contrário, setores petistas e sua periferia parecem querer que Bolsonaro siga apenas tropeçando. Porque se ele cair, Mourão assumiria com mais capacidade de pacificar o campo conservador e aplicar o programa ultraliberal de Guedes.

Pior que isso, devem pensar esses setores, Mourão poderia emplacar uma reeleição. Melhor então que Bolsonaro siga aos trancos e barrancos até ser derrotado nas próximas eleições.

O problema é que enfrentar Bolsonaro tem pouco a ver com o calendário eleitoral ou institucional. Os fascistas não estão esperando a aprovação desta ou aquela lei ou reforma. Os reacionários não estão organizando seus cabos eleitorais.

Conservadores e fascistas já estão intensificando suas práticas de perseguição e morte de mulheres, negros, indígenas, quilombolas, LGBTs, lideranças camponesas e populares em geral.

Claro que é grande o risco de acabarmos sob um governo Mourão mais eficiente e tão truculento quanto o atual. Mas pior que o vice assumir, é isso acontecer por iniciativa dele mesmo ou de seus aliados trogloditas.

Mesmo que Mourão venha a substituir o titular de vez, é muito melhor que isso aconteça como resultado de uma grande ofensiva popular hegemonizada pela esquerda.

Se queremos vencer, temos que, pelo menos, entrar na arena.

27 de maio de 2019

O que fazer na era das redes virtuais?

Narendra Modi acaba de ser reeleito premiê da Índia. Seu partido é o Bharatiya Janata (BJP), que tem entre seus principais objetivos o de transformar a Índia em uma teocracia hindu.

Para alcançar esse objetivo, as lideranças do BJP não hesitam em promover perseguições à imensa população de muçulmanos do país. O desprezo às mulheres também é outra característica dos membros do partido.

Amit Shah é presidente do BJP. Em recente reportagem, a Folha cita suas palavras sobre como a organização utiliza as redes virtuais na disputa eleitoral:

O primeiro passo é coletar dados de todos os programas de ajuda do governo no nível estadual e distrital. O segundo passo é comparar os dados com os do governo anterior. O terceiro passo é criar conteúdo que tenha apelo para esses eleitores.

Em Déli, por exemplo, o BJP acessou endereços de 500 mil beneficiários de um programa de qualificação de jovens. Seus membros visitaram as casas deles, pediram votos e os incluíram em grupos de mensagens por WhatsApp.

O partido também está solicitando acesso aos dados dos beneficiários dos programas governamentais de gás e eletricidade. A legislação do país permite que qualquer legenda possa fazer isso. Mas, até agora, só o BJP tomou a iniciativa.

A esquerda tem muito a aprender com essa experiência, desde que orientada por valores libertários e socialistas. O que inclui o repúdio à utilização de mentiras, calúnias, linchamentos e ataques à privacidade.

Este é mais um exemplo que mostra como, na era das tecnologias ultramodernas, são os conservadores mais arcaicos que vêm sabendo responder àquela famosa pergunta de Lênin.

Leia também: Facebook, um psicopata de 15 anos

24 de maio de 2019

Nós e nossos gêmeos do mal

“Nós”, de Jordan Peele, é diversão de terror garantida. Mas não apenas no sentido original da palavra “diversão”, que significa desviar a atenção de algo importante. O entretenimento do filme é um bom pretexto para denunciar o que está acontecendo em muitas sociedades pelo mundo.

Basicamente, o enredo é sobre famílias gêmeas idênticas. Só que uma delas é formada por assustadoras criaturas do “mal”. A outra, composta por pessoas do “bem” e de bens. Estas últimas são perseguidas pelas primeiras tornando a trama assustadora.

As famílias malvadas pertencem a um mundo subterrâneo e sombrio. Um lugar onde a vida é uma imitação deprimente e assustadora da vibrante sociedade de consumo da superfície.

“Us”, título original em inglês, também faz referência a United States, afirmou o diretor. Segundo ele, os maiores inimigos dos estadunidenses são eles próprios.

Certamente, refere-se à onda conservadora que atinge o país. Ela seria alimentada pelas frustrações por que passam muitos membros da economia mais rica do planeta.

O “American Way of Life” vende um mundo cheio de felicidade e vitórias para todos. Mas a enorme maioria fica, no máximo, com imitações baratas e caricatas do nível de vida de uma elite cada vez menor.

Claro que a trama do filme serve para muitas outras sociedades de alto consumo e muita injustiça social. E mostra como as reações a essa situação podem ser as mais bárbaras.

No filme, as criaturas maléficas costumam fazer estragos com tesouras e machados. Na vida real, muitas vezes, basta o voto na urna para causar prejuízos muito piores.

De qualquer maneira, o final surpreende e é otimista.

Leia também:
O que é o bicho humano para os conservadores

23 de maio de 2019

Os necropoderes do Facebook

O escritor de literatura fantástica Ray Bradbury escreveu um livro cujo título é “Morte é uma transação solitária”. Parece que já não é mais assim. Pelo menos, é o que se deduz de matéria publicada na Folha em 18/05/2019.

O título da reportagem de Felipe Arrojo Poroger afirma: “Mortos seguem vivos e continuam a fazer amigos no Facebook”. Um exemplo envolve um jovem escocês, morto há sete anos:

Scott Taylor não envelhece. Em seu perfil virtual, estão guardados vídeos, fotos, mensagens. A identidade que o garoto quis construir para si mesmo e transmitir ao mundo continua intacta, em um domínio seguro protegido contra a ação do tempo. Sua sobrevivência virtual tornou-se, assim, um convite para que pais e colegas continuassem depositando suas saudades.

“A página era uma das únicas coisas que tínhamos dele”, declarou a mãe do garoto.

Apesar de estranho, o fenômeno deve se generalizar. Segundo a reportagem, estima-se que, em 2098, haverá mais mortos do que vivos no Facebook. “Pensada como lugar de encontros, a rede social extrapola aos poucos seu propósito para transformar-se em cemitério virtual”, diz Poroger.

Mas se a morte deixa de ser uma questão tão individual, tão privada, ela também passa a ser privatizada. Afinal, o tal cemitério está sob administração do maior monopólio de comunicação da história.

O Facebook obtém seus lucros da apropriação que faz de nossos dados pessoais 24 horas por dia. Ao mesmo tempo, nos tornou dependente dele.

Scott Taylor morreu, mas sua página continua gerando informações na rede virtual. O capitalismo aperfeiçoou-se a ponto de continuar a explorar nossas vidas, mesmo depois de seu fim.

Leia também:
Facebook, partidos digitais, “tecnopólio”

22 de maio de 2019

Seria Bolsonaro um bode na sala?

A situação política nacional parece adequar-se àquela famosa metáfora do “bode na sala”. Numa casa cheia de problemas de convivência por causa do excesso de moradores, alguém coloca um bode no meio da sala.

A situação fica ainda pior, claro. Mas finalmente retirado o animal, o alívio imediato faz os moradores esquecerem de que continuam a habitar um lugar insuportável.

Bolsonaro representaria esse bode num Brasil que nunca chegou a ser muito suportável, mas que piorou bastante desde 2013. Não que alguém o tenha trazido. Ele é que foi chegando aos poucos.

Alguns moradores avisaram que a presença do animal pioraria ainda mais as coisas. Mas a maioria resolveu ignorar os alertas. Afinal, no meio de toda a fedentina, que diferença faria o cheiro do bicho?

Também houve quem começasse a mimá-lo. Querem aproveitar sua presença para tirar vantagens sobre os outros moradores. Agora, já não têm certeza de que tenha sido uma boa ideia. O caprino morde e escoiceia quase todo mundo sem muita distinção.

Além do fedor, começam a circular no ambiente propostas sobre como se livrar do bovídeo.

Apesar de toda a limitação de sua inteligência, o bicho sente que pode ser despejado a qualquer momento. Mas não consegue corrigir seu comportamento. Alterna algumas lambidas nas mãos que o alimentam com muitas chifradas doloridas.

Até o momento, assim estamos. Se o animal ficar, as coisas só devem piorar. Saindo o bicho, permanecemos em uma situação muito ruim. O ideal seria colocar no olho da rua tanto o bode como seus protetores. Expulsar da casa seus piores moradores.

Ou podemos trocar de metáfora.

Leia também: Bolsonaro e a aposta no caos

21 de maio de 2019

China: capitalismo, sim. Neoliberalismo, jamais

Há quem goste de apontar a China como prova de que o capitalismo é um sucesso histórico. Os números do crescimento chinês realmente dão certa razão aos que defendem o atual sistema econômico mundial.

O problema é que o neoliberalismo é considerado o estágio de perfeição máxima do capitalismo. Mas de neoliberal a economia chinesa não tem nada.

Os Estados Unidos têm 15 mil estatais. A Alemanha, 7 mil. O Brasil, 418. Na China, são 155 mil. Menos neoliberal que isso...

Por outro lado, também é equivocado achar que o caminho chinês é uma alternativa pouco familiar à acumulação capitalista.

Recente artigo do sinólogo britânico John Ross revela, por exemplo, que entre 1938 e 1945, nos Estados Unidos, o consumo das famílias subiu 30% e o investimento privado cresceu 12%. Já os gastos estatais aumentaram 553%.

Em 1943, 83% do investimento fixo dos Estados Unidos foi realizado pelo Estado, diz Ross. Resultado? Um espantoso crescimento da economia estadunidense nos 30 anos pós-guerra.

Mas há evidências muito mais recentes. Em 2013, a economista italiana Mariana Mazzucato publicou um livro desmascarando o “empreendedorismo de garagem” da indústria tecnológica estadunidense.

O estudo revela, por exemplo, que a Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos criou o algoritmo em que se baseiam as buscas do Google. E que a Apple se viabilizou graças à Companhia de Investimentos em Pequenos Negócios, do governo americano. 

O problema para o imperialismo ocidental é um concorrente utilizando seus próprios termos no jogo econômico mundial. O problema para os socialistas é que esse é um jogo sujo para a grande maioria da humanidade.

Leia também:

20 de maio de 2019

Contra as tecnologias de adaptação, tecnologias rebeldes

Pawel Kaczynsku
Aplicativo GPS que alerta sobre trajetos perigosos nas grandes cidades.

Programa de mensagens virtuais utilizado por seus membros para criar uma rede de vigilância sobre atividades suspeitas em sua vizinhança.

Software de transporte urbano que barateia a força de trabalho de dezenas de milhares de motoristas no caótico trânsito das grandes cidades.

Esses são apenas alguns exemplos de ajustamentos cotidianos à grave situação de violência urbana, concentração de renda, destruição de empregos e desigualdade social presentes na vida contemporânea.

São “Tecnologias de Adaptação”, segundo a definição de Evgeny Morozov, em artigo publicado recentemente no portal Outras Palavras. Para esse pesquisador bielorrusso que estuda os impactos das novas tecnologias na sociedade:

“Tecnologia de Adaptação”, contudo, é marca muito ruim para intitular conferências ou manifestos laudatórios. Ao invés disso, fala-se da “economia do compartilhamento” (com startups que ajudam os pobres a sobreviver, aceitando empregos precários ou alugando suas posses), da “cidade inteligente” (com os municípios entregando sua soberania tecnológica – em troca de serviços temporariamente gratuitos – às gigantes digitais), da “fintechs” (com bancos que emprestam para os mais jovens capturando e vendendo seus dados, apresentados como uma revolução de “inclusão financeira”).

Morozov cita o Brasil como um laboratório de inovação nesse tipo de tecnologia. Mas também no resto do mundo, elas “permitem que cidadãos sobrevivam em meio ao caos, sem demandar nenhuma transformação social”.

E qualquer transformação social, diz ele, passa pela quebra das gigantes tecnológicas, mas também pelo abandono das tecnologias de adaptação em favor de tecnologias rebeldes.

Afinal, se tecnologia é técnica mais ideologia, nós também temos a nossa. Precisamos acioná-la contra a deles.

Leia também: Tecnologia: amor, medo, luta de classes

17 de maio de 2019

Olhar para o espelho chinês assusta o capitalismo ocidental

A China é um enigma que desafia os socialistas. Mas pode ser ainda mais misteriosa para os capitalistas. As políticas “comunistas” chinesas vêm sustentando a economia mundial por quase 20 anos. Mas isso não chega a tranquilizar aqueles que a controlam.

Um exemplo preocupante é a competição tecnológica. Atualmente, a economia mundial é dominada pelos GAFA: Google, Apple, Facebook e Amazon. Mas na China, dominam os BATX: Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi. Cada uma delas, espécie de “empresa-espelho” das primeiras.

O mesmo acontece no mercado de crédito, monopolizado por Visa, Mastercard e American Express em todo o globo. Na China, seus equivalentes são Alipay, UnionPay e WeChat. Este último surgiu como análogo do Whatsapp, mas ao permitir operações de compra e vendas, praticamente substituiu o pagamento em dinheiro também.

A novíssima e poderosa tecnologia 5G de internete móvel já está sob domínio mundial de uma gigante chinesa. É a Huawei, empresa cujos componentes estão presentes em quase todos os celulares do planeta.

Toda essa exuberância tecnológica faz parte do programa “Made in China 2025”, que pretende a autossuficiência do país nessa área em 70% dos componentes e materiais estratégicos até 2025.

O fato é que os poderes ocidentais enxergam no enigma chinês reflexos de si mesmo. Só que cheios de distorções perturbadoras. A pior delas é que mostra a China como uma potência capitalista que não é neoliberal.

O sucesso do capitalismo de estado chinês é a prova mais gritante do fracasso do capitalismo de livre mercado ocidental.

Voltaremos a isso em uma próxima pílula. O enigma está longe de ser decifrado.

Leia também:
O mundo bizarro do capital chinês

16 de maio de 2019

As “milícias” de Hitler

A sigla SA em alemão significa "Tropas de Assalto". Elas formavam uma força paramilitar que atuou durante a ascensão de Hitler ao poder. Eram lideradas por Ernst Röhm, ex-capitão do exército, comandante habilidoso e homossexual assumido.

As SA foram fundamentais para a chegada dos nazistas ao governo. Vestindo uniformes pardos, seus membros surravam ou matavam judeus, sindicalistas e militantes de esquerda em geral. Mas também eram baderneiros descontrolados.

Por isso e pela homossexualidade de seu comandante, as SA não eram bem vistas pelo alto comando militar alemão. Sua existência complicava o reconhecimento de Hitler como comandante supremo das Forças Armadas alemãs.

Uma vez no poder, passou interessar ao Führer a extinção das SA. Como isso não estava nos planos de Röhm, ele e seus comandados acabaram eliminados no episódio conhecido como a “Noite das Facas Longas”.

Naquela noite de julho de 1934, a Gestapo realizou uma série de execuções. Mas suas vítimas não foram apenas membros das SA. Opositores do nazismo também foram presos ou executados. Incluindo, personalidades da elite da época.

O relato acima baseia-se em um verbete da Wikipédia.

Buscar paralelos entre a ascensão do nazi-fascismo e situações políticas atuais pode levar a muitos equívocos.

Haveria milícias uniformizadas e atuantes como as SA no Brasil de Bolsonaro, por exemplo? Certamente, não. Mas não faltariam candidatos ao papel. Portanto, seria importante ficarmos preparados para enfrentar o surgimento de algo parecido.

Mas o relato também serve para mostrar como graves contradições podem surgir entre as próprias forças da extrema direita. E que até mesmo o morticínio entre elas não é necessariamente evidência de seu enfraquecimento.

Leia também:
Atualizando a República de Weimar

15 de maio de 2019

Precisamos debater a China. E muito

Há um grande e desafiador enigma no horizonte histórico da humanidade. É o papel da gigantesca potência em que se transformou a China. Algumas informações de uma entrevista concedida por José Eustáquio Alves ao IHU-Online ajudam a entender o tamanho da encrenca.

Segundo o professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, a China é “o país que apresentou as maiores taxas de crescimento econômico, pelo maior período de tempo, na história mundial”.

O país cresceu cerca de 10% anuais durante 35 anos desde o final da década de 70. No último período, o ritmo diminuiu, mas ainda é quase três vezes superior ao dos Estados Unidos.

Alves diz ainda que os chineses estão prestes a assumir a liderança da 4ª Revolução Industrial. Isso depois de, em 40 anos, terem implantado as outras três revoluções que o Ocidente levou 250 anos para fazer.

Por outro lado, seria, no mínimo, precipitado considerar o caso chinês uma alternativa positiva ao atual sistema econômico mundial. As poderosas forças produtivas que alavancam seu espantoso crescimento reforçam as piores tendências e contradições do capitalismo.

Em especial, os novos e imensos impactos ecológicos que ameaçam a vida da grande maioria da humanidade. O país tem investido muito em energias renováveis, afirma o entrevistado. Mas mantém atividades que “elevam as emissões de CO2 de forma insustentável”.

Por isso, Alves alerta: um dos cenários para a aposta chinesa pode ser um colapso ambiental capaz de “tragar o Ocidente e o Oriente, resolvendo, pela via da aniquilação total, os conflitos Leste versus Oeste e Norte versus Sul”.

Grande, desafiador, assustador!

Leia também:
Sobre a China

14 de maio de 2019

Uber: de volta ao século 19

“O Trabalho na Uber é neofeudal”, diz o título de entrevista publicada no portal Sul21, em 13/05/2019. As palavras são do procurador Rodrigo de Lacerda Carelli, que integra o Grupo de Estudos “GE Uber”, do Ministério Público do Trabalho.

O grupo realizou um estudo sobre “as novas formas de organização do trabalho relacionadas à atuação por meio de aplicativos”. Para Carelli:

A estrutura da relação entre as empresas que se utilizam de aplicativos para a realização de sua atividade econômica e os motoristas se dá na forma de aliança neofeudal, na qual chama os trabalhadores de “parceiros”. Por ela, concede-se certa liberdade aos trabalhadores, como “você decide a hora e quanto vai trabalhar”, que é imediatamente negada pelo dever de aliança e de cumprimento dos objetivos traçados na programação, que é realizada de forma unilateral pelas empresas.

Ainda segundo o procurador:

...as ordens do empregador não são mais dadas diretamente por ele mesmo ou por um preposto qualquer. O preposto passa a ser o aplicativo.

(...)

Antigamente você xingava seu empregador porque ele não estava pagando um salário decente. Hoje em dia, os trabalhadores reclamam do aplicativo, do sistema. Ergueram uma parede entre o empregador e o trabalhador. O aplicativo consegue invisibilizar o empregador.

A comparação do entrevistado com o feudalismo faz algum sentido. Mas nas relações feudais, não havia nada de tão invisível. O servo sabia perfeitamente que reis e outros poderes o exploravam.

Tornar a exploração invisível é uma especialidade capitalista. Bem antiga, inclusive. O pagamento de salários por peças era uma espécie de “uber” do século 19. É a isso que estamos voltando.

Leia também: Teria Marx previsto o Uber?

13 de maio de 2019

Bolsonaro e a aposta no caos

O bolsonarismo aposta no caos para levar adiante seu projeto autoritário. Resumidamente, é isso o que pensa o professor da UFMG Roberto Andrés, em entrevista que concedeu recentemente para o IHU. Segundo ele:

...talvez o presidente não esteja tão preocupado com a significativa queda de aprovação nos primeiros três meses, tendo a proeza de ser o presidente com pior avaliação nos 100 dias do primeiro mandato desde a redemocratização – comparando-se com Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Como a queda parece que atingiu um piso de cerca de 30% de aprovação positiva e este piso é bem maior do que aquele que era o teto do então candidato antes da facada nas eleições (cerca de 17%), a situação, por ora, é confortável. Pensando bem, esta é a verdadeira proeza: um governo que entrega muito pouco, que passa os dias criando falsas polêmicas e batendo cabeça com aliados, ter 1/3 da população, achando que está tudo ótimo.

Como tem sido dito, não se trata, para este governo, de buscar dialogar com a maioria, mas de garantir a “melhor minoria” – a mais fidelizada, engajada e barulhenta. O risco maior para a democracia brasileira é o bolsonarismo conseguir, enquanto governo, levar adiante a estratégia de campanha bem-sucedida dos últimos quatro anos e fazer sua minoria barulhenta aumentar, chegando à metade do eleitorado. Hipótese que para muitos parece improvável, mas ainda hoje tenho arrepios quando me lembro dos analistas, em meados de 2016, que diziam que o teto do bolsonarismo estava entre 6 e 8% do eleitorado.


Arrepios não nos faltam, mas precisamos deixá-los para trás urgentemente.


Leia também:No fundo do poço, rosnados e grunhidos

10 de maio de 2019

Além da Imaginação, temporada 2019

Uma mulher negra descobre que sua antiga câmera de vídeo tem a capacidade de fazer o tempo voltar atrás, quando acionada sua função “rebobinar”. Mas não importa o quanto utilize o recurso, ela e o filho sempre acabam vítimas da violência racista de um policial.

Um garoto de 11 anos é campeão de visualizações no Youtube. Um marqueteiro político enxerga nele potencial para se candidatar a presidente dos Estados Unidos. Inicialmente, a campanha mirim faz muito sucesso. Mas uma atuação desastrosa num debate coloca a candidatura em crise.

A comoção em torno de uma notícia falsa sobre um câncer terminal no cachorro de estimação do garoto recoloca a candidatura no páreo. Eleito, o novo presidente exige o cumprimento de suas promessas de campanha. Entre elas, um vídeogame para cada cidadão do país. Diante do aviso de assessores de que isso jamais seria possível, o garoto bate os pés no chão e grita: “Eu quero, eu quero e acabou. Não sou presidente dos Estados Unidos?”

Uma chuva de meteoros espalha pequenas rochas vindas do espaço em uma cidade média americana. Ao entrarem em contato com elas, os homens do local tornam-se violentos, assediadores, abusadores. Atacam-se uns aos outros, xingam por qualquer motivo, consideram que todas as mulheres devem ir para cama com eles.

Estes são apenas alguns dos episódios da nova temporada de “Além da Imaginação”, lançada pela CBS alguns meses atrás. Pelas sinopses acima, é possível ver que a antiga série sobre fenômenos sobrenaturais agora dedica-se apenas a documentar fatos sobre a vida contemporâneos dos Estados Unidos. Dos Estados Unidos e mais além.

Leia também: Na era Trump, um pesadelo utópico feminino

9 de maio de 2019

Clara Zetkin e o Terceiro Período

Na luta de Clara Zetkin contra o fascismo, ela também teve que enfrentar os erros cometidos pela Internacional Comunista. Especialmente, a adoção da tática conhecida como “Terceiro Período”, formulada por Stálin.

Segundo essa linha política, no primeiro período teria surgido a onda revolucionária que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, o segundo se caracterizaria pela estabilização do capitalismo e o terceiro seria marcado pelo colapso capitalista e pela revolução mundial.

Na Alemanha, por exemplo, essa tática significava a rejeição de qualquer possibilidade de formar uma frente única com os socialdemocratas contra o nazismo.

Diante da proximidade do colapso do capitalismo, tanto socialdemocratas como nazistas seriam igualmente varridos pela vitória do proletariado internacional. Hitler seria esmagado pela revolução mundial.

Clara sabia que esta avaliação era um erro muito grave. Por isso, foi dela o único voto contrário à resolução do Terceiro Período aprovada em reunião da direção da Internacional, ocorrida em fevereiro de 1928.

Foi somente após Hitler se tornar um ditador sanguinário que a Internacional abandonou sua tática desastrosa. Passou a defender a formação de “frentes populares” contra o fascismo.

Mas, na prática, essa linha colocou os trabalhadores a reboque de forças conservadoras, que não hesitavam em trair seus aliados sempre que necessário.

A oposição liberal ao fascismo está sempre pronta a negociar com nossos inimigos. Principalmente, se estiverem em jogo conquistas populares e a cabeça de lideranças socialistas.

Este debate está mais atual que nunca. Se a união mais ampla possível é fundamental para combater o fascismo, ela tem que se dar entre as forças anticapitalistas. Esta era a essência do antifascismo de Clara Zetkin.

Leia também:
Clara Zetkin e a luta antifascista

Os terríveis erros de Stálin no combate ao nazismo

8 de maio de 2019

No fundo do poço, rosnados e grunhidos

A economia brasileira pode estar na antessala da recessão. É o que afirma reportagem de Eduardo Maretti, publicada pela Rede Brasil Atual, em 05/05/2019.

A matéria ouviu João Sicsú, professor do Instituto de Economia da UFRJ. Segundo ele, a economia nacional:

...mergulhou no fundo do poço e está lá, dando suspiros. Nesses suspiros, às vezes há sinais positivos, às vezes negativos. O saldo é que caminhamos no fundo do poço e estamos nessa situação. Desde o final de 2014, e em 2015 e 2016, mergulhamos no poço. E em 2017, 2018 e 2019, estamos dando suspiros dentro do fundo do poço.

Sicsú diz que Bolsonaro não apresentou nenhum programa de retomada do crescimento e redução do desemprego. Seu foco, afirma ele, são as reformas como a da Previdência. Para o economista, independentemente de se concordar com tais propostas:

...o fato é que não dão nenhum resultado imediato. Portanto, o governo não tem instrumento de combate à depressão. O problema imediato é o desemprego, que só pode ser reduzido com política de retomada de crescimento, que não é o foco do governo. O resultado é a continuidade do estado de depressão.

Com esse governo, no entanto, nunca se sabe se a situação tal como está não serve a algum propósito perigoso e traiçoeiro. Um “quanto pior, pior”, que convidaria a soluções conservadoras extremas. Afinal, Bolsonaro nunca escondeu que, para ele, a ditadura nunca deveria ter acabado.

Talvez, não sejam apenas suspiros que saiam do fundo do poço. Com alguma atenção, também seria possível ouvir os grunhidos e rosnados de uma besta que se alimenta do desespero popular.

7 de maio de 2019

Clara Zetkin e a luta antifascista

Clara Ketkin foi uma das lideranças mais importantes da luta revolucionária do século passado.

Junto com Rosa Luxemburgo e Eleanor Marx, foi uma das pioneiras do feminismo socialista radical.

Também apoiou Lênin e a Revolução Russa contra seus próprios companheiros de partido, na Alemanha.

Mas sua luta mais importante foi contra o fascismo. Em 1932, os nazistas alemães estavam em plena ascensão. Nas eleições daquele ano, chegaram a 37,4% dos votos contra 2,6%, em 1928.

Em julho de 1932, aconteceria a abertura dos trabalhos do parlamento. Clara, sendo a mais antiga parlamentar, tinha o direito de fazer o discurso da primeira sessão.

A imprensa nazista disparou terríveis insultos contra ela e a ameaçou de agressão durante seu pronunciamento. Mas, aos 74 anos, muito fraca, sujeita a desmaios e quase cega, Clara subiu à tribuna ajudada por seus camaradas de partido.

Diante de um plenário apinhado de deputados nazistas vestindo uniformes da SA e da SS, ela iniciou seu discurso centrado na necessidade de esmagar o fascismo:

Todas as diferenças que nos dividem e nos bloqueiam - sejam políticas, sindicais, religiosas ou ideológicas - devem ceder diante dessa imperiosa necessidade histórica.

Mas as alianças não incluíam qualquer setor não alinhado ao fascismo. Segundo Clara, a precondição urgente e indispensável para participar dessa frente unida era “o combate ao modo de produção capitalista”.

Tratava-se de uma posição oposta à linha estalinista ditada em Moscou, que considerava socialdemocratas e nazistas farinha do mesmo saco. Um erro que facilitaria muito a ascensão de Hitler ao poder.

Continuaremos a destacar a luta antifascista de Clara Zetkin nas próximas pílulas.

Leia também:

6 de maio de 2019

O risco de nos tornarmos peixes vermelhos

Nos tornamos peixes vermelhos trancados no aquário das nossas telas, sujeitos ao cuidado de nossos alertas e de nossas mensagens instantâneas.

Estas palavras são de Bruno Patino, autor do livro “A Civilização do Peixe Vermelho”. Ainda sem tradução do francês, a obra denuncia a ilusão da utopia digital promovida pelos grandes monopólios das redes virtuais.

À reportagem de Fabienne Schmitt, publicada por “Les Echos”, em 18/04/2019, Patino cita as palavras de um dos fundadores da Web, Tim Berners-Lee:

Ninguém roubou nada, mas houve captura e acumulação. O Facebook, Google, Amazon, com algumas agências, são capazes de controlar, manipular e espionar como nenhum outro antes.

O autor concorda e acrescenta:

Os novos impérios construíram um modelo de servidão voluntária, sem ter consciência disso, sem tê-lo previsto, mas com uma determinação implacável. No coração do reator não há um determinismo tecnológico, mas um projeto econômico que reflete a mutação de um novo capitalismo. No coração do reator está a economia da atenção.

Patino até acha possível encontrar um caminho para sair dessa situação:

Esse caminho possível é a vida em sociedade. Mas não podemos abandonar a essas plataformas o cuidado de se organizarem sozinhas, se quisermos que ela não seja povoada de humanos com um olhar hipnótico que, acorrentados às suas telas, não conseguem mais olhar para cima.

Para encerrar, a reportagem explica a metáfora utilizada pelo escritor:

De acordo com a Associação Francesa do Peixe Vermelho, “ele é feito para viver em bando, entre vinte e trinta anos, e pode chegar a 20 centímetros. O aquário atrofiou a espécie, acelerou a mortalidade e destruiu a sociabilidade...”

Leia também: