Doses maiores

31 de março de 2021

Entre divergências falsas ou verdadeiras, milhares de mortes

Em 2014, o Alto Comando do Exército liberou o acesso de Bolsonaro aos quarteis. Enquanto isso, o general Villas Boas proclamava o caráter “legalista” e “apolítico” da corporação.

Em 2015, Mourão declarou que seria preciso "despertar para a luta patriótica" como saída para crise política do país. Foi exonerado por Villas Boas do Comando Sul. Parecia punição. A participação de ambos na campanha de Bolsonaro mostraria que era encenação.

Na campanha eleitoral e no próprio governo, surgem fortes divergências entre Bolsonaro e Mourão ou entre Bolsonaro e militares. Ou, ainda, entre uma “ala ideológica” e uma “ala militar”.

A sequência acima está no livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, de Piero Leirner. Para o autor, todas essas polarizações procuram criar uma “cisão artificial”. O objetivo, diz ele:

...é deixar Bolsonaro numa posição que permita aos militares (com Mourão na posição de “vice”) blindados – e isso foi um movimento tanto na campanha quanto é no governo. Eles têm o bônus e dificilmente ficam com o ônus – inclusive quando os militares que estão no governo tentam se “dissociar” da instituição militar.

Os acontecimentos dos últimos dias parecem desmentir essa hipótese. Mas mesmo que se trate de outra jogada ensaiada, sobram contradições que não cabem nas relações entre a cúpula militar e o gabinete do ódio.

Trata-se do Centrão, mas também dos vários setores do grande capital. Conciliar interesses de atores tão poderosos exige mais do que uma farsa bem montada.

O grande problema é a ausência quase completa de representantes dos interesses dos principais atingidos: os pobres e trabalhadores, que estão morrendo aos milhares diariamente.

Leia também: O pelotão do ódio e o exército da inteligência

30 de março de 2021

O pelotão do ódio e o exército da inteligência

A partir do impeachment, alguns comandantes militares começaram a enxergar em Bolsonaro sua grande chance de ocupar o centro do poder. Com Lula inelegível, essa chance melhorou muito.

Mas ainda restava providenciar a “neutralização da concorrência no campo da direita”, diz Piero Leirner, em seu livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”.

Desse modo, em fevereiro de 2018, ocorreu a intervenção Federal no Rio de Janeiro, sob comando do general Braga Netto. Esse tipo de operação impede votações de emendas constitucionais no Congresso.

Assim, a reforma da Previdência, que era uma forte bandeira de Temer, foi inviabilizada. E a dupla Bolsonaro/Paulo Guedes, começou a ser vendida ao grande capital como a única capaz de aprová-la.

Por outro lado, a intervenção funcionava como um recado subliminar de como o País poderia ficar melhor sob comando militar. Apesar de seus resultados fracos, a grande imprensa reproduziu amplamente o discurso do general Villas Boas saudando a operação como um exemplo de que “nenhum problema no Brasil é insolúvel”

Nessa altura, todo o grupo que articulou diretamente o impeachment estava neutralizado: Eduardo Cunha preso, Temer arrasado pela gravação de Joesley, o PSDB pulverizado.

Em abril de 2017, Moro foi condecorado na “Semana do Exército”. Em setembro de 2018, o general Fernando Azevedo e Silva foi nomeado Assessor Especial de Dias Toffoli, presidente do STF.

Tempos depois, a revista Época revelou que Silva participou da formulação de propostas para a campanha de Bolsonaro e ofereceu almoço a seu vice, general Mourão.

Se Bolsonaro era capitão do pelotão do ódio, os generais comandavam o exército da inteligência.

Leia também: Guerra híbrida: sobre falsas bandeiras e fraudes verdadeiras

29 de março de 2021

Guerra híbrida: sobre falsas bandeiras e fraudes verdadeiras

Durante a campanha eleitoral, e mesmo depois de vitorioso, Bolsonaro vivia repetindo que desconfiava de fraudes nas eleições. Para muita gente, não parecia fazer muito sentido. Mas...

Diante das declarações de Bolsonaro, o que fez Fernando Haddad, seu principal oponente?

Reafirmou que confiava plenamente na Justiça e no sistema de votação, uma semana depois de abandonar o lema “eleição sem Lula é fraude”.

Posteriormente, quanto mais Bolsonaro aumentava o tom “antissistema”, mais Haddad procurou se vincular à Justiça: primeiro ao dizer que Sergio Moro “fez um bom trabalho”, e que “confiava na justiça” para “corrigir erros processuais”; depois ao procurar Joaquim Barbosa, que condenou o PT no processo do “Mensalão” com base na “teoria do domínio do fato”, primeira versão das “provas por convicção” de Sérgio Moro.

Desse modo, Haddad acabou por se constituir no fiador da vitória do adversário. Ele e o PT não só endossaram o papel da Justiça, quanto o dos militares, levando à frente o discurso de que “as instituições estão funcionando”.

O relato acima está no livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, de Piero Leirner. Ele caracterizaria uma manobra típica da “guerra híbrida”, chamada “falsa bandeira”. Aquela em que um lado da guerra assume como sua uma bandeira que acaba ajudando seu inimigo.

Claro que houve fraudes, mas não são aquelas que Bolsonaro espertamente denuncia. São bem mais antigas e foram elas que possibilitaram sua vitória.

Não se trata apenas do julgamento do “Mensalão” ou da Operação Lava-Jato. Mas de uma democracia que sucedeu o regime empresarial-militar sem jamais julgar os responsáveis por seus crimes.

Leia também: Augusto Heleno e Villas Boas, a dupla de generais golpistas

26 de março de 2021

Augusto Heleno e Villas Boas, tira bom e tira ruim

Em seu livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, Piero Leirner coloca os generais Heleno e Villa Boas nos papéis de “tira ruim” e “tira bom”, respectivamente.

O malvado Heleno começou sua carreira de “líder” dos golpistas a partir do atrito público com Lula, por conta da demarcação da Raposa serra-do-Sol.

Já o bonzinho Villas Boas, assegurava que o Exército não se metia em política e era guiado pelo respeito à legalidade. Enquanto isso, também garantia livre acesso ao candidato Bolsonaro para fazer campanha em instalações militares.

Mas, bem antes disso, em 2012, Villas Boas já havia aprovado o Projeto de Força do Exército Brasileiro. A justificativa do projeto previa que nos conflitos para o futuro próximo:

...a tendência de a opinião pública (população) integrar o centro de gravidade dos conflitos será acentuada. A versão da notícia deverá permanecer decisiva para a conquista da opinião pública e para o êxito das operações. A batalha pela comunicação será primordial para o sucesso das campanhas. Os conflitos tendem a ter menor número de baixas, tanto pela atual característica das operações como, principalmente, devido ao impacto negativo que tais perdas provocam no seio das sociedades organizadas. (...) Os estudos indicam que os conflitos do futuro continuarão a exigir elevado grau de autonomia, com planejamento centralizado e execução descentralizada, e terão de considerar novos fatores, como a influência das redes sociais na liberdade de ação dos exércitos.

Segundo Leirner, o trecho acima inspira-se claramente no conceito de guerra híbrida defendida pelo Pentágono. Mas ninguém parece ter notado, até que fosse tarde demais. E alguns nem a isso chegaram.

Leia também: O papel da Missão Haiti na conspiração militar

25 de março de 2021

O papel da Missão Haiti na conspiração militar

Em 2004, teve início a Missão da ONU no Haiti, chefiada por militares brasileiros. Lula era presidente e por trás de pretensas intenções humanitárias, muitos enxergaram oportunidades de negócios para as chamadas “multinacionais brasileiras”. Em especial, empreiteiras como a Odebrecht.

Mas os
oficiais que dela participaram tinham outros objetivos. Em primeiro lugar, um laboratório para aperfeiçoar a repressão a pretos e pobres. Experiência que seria muito bem aproveitada posteriormente nas dezenas de operações denominadas GLOs (Garantia da Lei e da Ordem), em vários estados do Brasil.

Não só isso. Como diz Piero Leirner, no livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, para os comandantes envolvidos:

...a experiência do Haiti, além de bélica, foi de governo. Não se tratava de apenas “pacificar”, mas também de coordenar inúmeras agências, ONGs, setores da administração, relações com as elites locais, com o governo incipiente, elaborar eleições, cuidar de catástrofes naturais, promover alocação de recursos, administrar o “cenário psicossocial”, além, é claro, de comandar uma tropa multinacional. Tudo isso somado foi um verdadeiro laboratório, onde os comandantes experimentaram a expertise de ser o centro do Estado e da “reconstrução haitiana”.

Não à toa, vários membros do governo Bolsonaro passaram pelo Haiti. Entre eles, o general Augusto Heleno, atual titular do Gabinete de Segurança Institucional.

Segundo Leirner, em 2015, Heleno voltou do Haiti “apto a conduzir uma guerra psicológica de espectro total”. Foi nesse momento também que começava a ficar clara sua parceria com o general Villas Boas.

Os dois formaram uma dupla do tipo tira bom/tira ruim a serviço dos golpistas. Mas isso será tema da próxima pílula.

Leia também:
Torturadores e carrascos conspirando à luz do dia
Os generais de Bolsonaro

24 de março de 2021

Torturadores e carrascos conspirando à luz do dia

Em 1969, surgiu o grupo “Centelha Nativista” no meio dos paraquedistas do Exército. Sua proposta era radicalizar a repressão contra a esquerda com ações armadas independentes. Sua palavra-de-ordem, “Brasil, acima de tudo!”.

Como se organizou sem autorização superior, o coletivo foi dissolvido pela cúpula militar da época. Seus componentes foram transferidos para várias unidades no país. Isso acabou criando outro problema: diversas bases militares passaram a abrigar células do Centelha.

Nas décadas seguintes, vários de seus membros começaram participar intensamente de atividades promovidas pelas inúmeras sedes do Clube Militar espalhadas pelo Brasil.

Bem mais recente é o grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma). Criado em 1998, seu nome procura justificar os crimes denunciados pelo dossiê “Tortura Nunca Mais”. Não à toa, um de seus fundadores foi o Coronel Ustra, responsável por muitas sessões de tortura nos porões da ditadura e ídolo de Bolsonaro.

Com a eleição de Lula, esses grupos ganharam mais adeptos e organicidade. Mas, antes disso, durante o governo FHC, os clubes militares passaram a promover diversos debates e se articular com juristas, empresários e “intelectuais”. Dentre estes, Olavo de Carvalho.

Durante as eleições de 2010, esses coletivos se manifestaram publicamente contra a possibilidade da eleição de uma “guerrilheira comunista” à presidência da República.

As informações acima estão no livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, de Piero Leirner, de 2017. Mas já estavam disponíveis há muito tempo. Inclusive, é obvio, para os vários governos civis.

Ou seja, uma conspiração também pode ser organizada às claras. Basta que seus integrantes contem com a impunidade garantida por uma democracia que respeita torturadores e carrascos.

Leia também: Guerra híbrida e o padrão Rambo

23 de março de 2021

Guerra híbrida e o padrão Rambo

“A guerra híbrida justamente consiste na obliteração dos reais agentes que a acionam”, diz Piero Leirner em seu livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”.

O autor cita o artigo “Neocortical Warfare”, publicado em 1994 pelo coronel dos Fuzileiros Navais Richard Szafranski. Segundo o militar estadunidense, a chave mais importante para vencer as guerras dos dias de hoje seriam ataques que procuram embaralhar o processo de cognição da população.

Pouco depois, as redes virtuais viriam a permitir ampla disseminação dessas “bombas cognitivas” “através de um padrão de enxame ou manada”, diz Leirner.

Mais importante, elas facilitam operações “padrão Rambo”, do tipo “solta os caras na missão e, junto com o objetivo, vem a instrução: você jamais recebeu esta ordem, nunca nos vimos antes”.

Quando “os membros não têm que recorrer a uma hierarquia porque ‘eles sabem o que têm que fazer’”. Isso faz das unidades individuais “uma só mente” e “impõe um desafio extremamente difícil de contrapor por causa de todo o ‘turvamento’ entre ações ofensivas e defensivas”.

Para o autor, seria um novo tipo de conflito social:

...onde redes ‘sem líderes’ compostas principalmente por atores desvinculados do Estado aproveitar-se-iam da revolução da informação (...) para travar uma luta amorfa de baixa intensidade contra o Establishment.

Porém, dizer que as redes virtuais tornaram bem mais difícil rastrear a linha de comando por trás dos ataques, não significa que seja impossível identificar neles as digitais de seus mandantes.

No caso dos recentes e decisivos acontecimentos políticos nacionais, vários indícios apontam para uma operação articulada pelas cúpulas militares. Mesmo Rambo não passa de um soldado.

Leia também: Guerra híbrida e a grande inversão subversiva

22 de março de 2021

Guerra híbrida e a grande inversão subversiva

O livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, do antropólogo Piero Leirner, é produto de mais de 25 anos de pesquisa etnográfica do autor junto aos militares.

Nesse período, Leirner notou a crescente importância do conceito de “guerra híbrida” entre os oficiais. E uma das principais características dela seriam os processos de inversão que promove.

Por exemplo, sempre que falavam sobre guerra híbrida, os oficiais diziam que era o PT que a estava praticando, ao minar as instituições e se apropriar de recursos públicos em conluio com o “comunismo” chinês e russo.

Para responder a esses pretensos ataques, os militares alegavam que também precisavam usar táticas de guerra híbrida.

Claro que por trás disso tudo estava o anticomunismo quase secular das Forças Armadas. Mas, mais recentemente, outros elementos surgiram. Entre eles, as palestras que Olavo de Carvalho vinha fazendo na Escola Superior de Guerra (ESG), desde os anos 1990. Sempre com o mesmo tema: ainda sob a ditadura militar, o comunismo teria tomado o controle de instituições, mídia, entidades, ONGs, universidades...

A ESG, por sua vez, tornou-se um poderoso meio de transmissão dessas ideias, não apenas para dentro das Forças Armadas. Afinal, seus cursos são abertos a civis, contando, inclusive, com painéis permanentes em lugares como a FIESP.

Em 2012, por exemplo, um dos principais cursos da Escola, o Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia, teve entre seus formandos membros do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. O mesmo tribunal que confirmaria a condenação de Lula à prisão, em abril de 2018.

Se havia subversivos nisso tudo, não eram os petistas. Infelizmente...

Leia também: A esquerda e a guerra híbrida

20 de março de 2021

A esquerda e a guerra híbrida

Há muita gente que entende as recentes derrotas impostas ao PT e à esquerda em geral como produto de uma “guerra híbrida”. O problema é que esse conceito tornou-se elemento central de certas teorias da conspiração.

Mas em seu livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, Piero Leirner lembra que “as guerras sempre foram algo híbridas”. Afinal, diz ele, se Carl von Clausewitz afirmava que a guerra é uma “extensão da política por outros meios”, o contrário também é verdadeiro.

Leirner destaca teóricos como Pierre Clastres e Lévi-Strauss, segundo os quais, ao surgir, o Estado não elimina a “guerra de todos contra todos”, mas passa a administrá-la.  Ou seja, não há nem jamais houve uma oposição rígida entre paz e guerra, política e violência.

Porém, alerta o autor, nada disso quer dizer que as guerras sempre foram hibridas. A “guerra híbrida tem algo que nenhuma outra conseguiu tornar explícita: a ideia de que não existe mais um ponto final para ela própria”.

E esta ideia fica clara quando o neoliberalismo procura reduzir o Estado a seu núcleo duro, cuja função principal é assegurar uma ordem claramente a serviço do capital, enquanto intensifica a militarização da vida social.

Mas, muito antes disso, o general Golbery já dava o seu recado. No livro “Geopolítica do Brasil”, de 1966, ele dizia que “hoje” a “guerra estritamente militar” passou a ser “guerra global”. E “de guerra global a guerra indivisível e (...) permanente”.

A partir desses elementos, Leirner argumenta que os militares jamais deixaram de travar uma guerra hibrida contra a esquerda brasileira. Infelizmente, com vitórias expressivas.

Continua...

Leia também: Militares no poder ou a volta dos que não foram

18 de março de 2021

Militares no poder ou a volta dos que não foram

“A ESG voltou ao poder?” é o título de reportagem de Edelberto Behs, disponível aqui. A sigla refere-se à Escola Superior de Guerra e o texto fala sobre um trecho do livro “Segunda Guerra Mundial: todos erraram, inclusive a FEB”, de Joel Silveira. A obra é sobre a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra.

Participante da FEB, o então tenente-coronel Castello Branco teria ouvido pela primeira vez na Itália sobre a “necessidade de reformas de base para o Brasil”. Os princípios dessa reforma se tornariam os mesmos que orientariam a fundação da ESG:

a) as elites civis do Brasil faliram;
b) tem havido um completo descaso pelos problemas fundamentais do país;
c) os quadros dirigentes vêm sendo mal escolhidos e quase sempre se põe à testa de uma tarefa relevante a pessoa menos indicada para isso;
d) tem prevalecido, no trato da coisa pública, o interesse pessoal, sempre colocado acima do interesse nacional;
e) o alastramento da corrupção.

Com base nesses princípios, diz Silveira, a Escola pretendia formar:

...uma elite militar estudiosa, aplicada, em dia com os problemas do país, impaciente por participar não só da solução desses problemas, mas da direção de toda a vida nacional.

Esse projeto só se materializaria com a ditadura empresarial-militar de 1964. Finda esta, porém, ele jamais foi engavetado. Ao contrário, como observa Behs, na segunda década do século 21:

Um capitão foi escolhido pelo voto para a presidência da República e recheou o governo de militares em seis mil postos na estrutura federal.

Mas será que a ESG alguma vez realmente ficou longe do poder?

Leia também: A ditadura militar acabou. O poder militar, não

17 de março de 2021

A pandemia e o reset capitalista

Em setembro do ano passado, o Financial Times defendeu um “recomeço” para o capitalismo. Para o diário ultraliberal, o “capitalismo de livre iniciativa mostrou uma capacidade notável para se reinventar”. Mas às vezes, “é necessário reformar para preservar. Hoje, o mundo chegou a esse momento. É tempo para um reinício".

Reinício em inglês pode ser “reset”. E foi esse o termo utilizado por Klaus Schwab, fundador e presidente do Fórum Econômico Mundial, em uma reunião realizada em junho de 2020. Entre os participantes, o Príncipe Charles, o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, e executivos da Mastercard e Microsoft.

Schwab defendeu o que chamou de “Great Reset” e apontou como seu gatilho a Covid-19, cujo impacto teria aberto uma “oportuna janela” para centrar as novas tecnologias “do mundo digital, biológico e físico no homem”.

Não demorou para que a extrema-direita surgisse com uma teoria da conspiração nas redes virtuais. Segundo ela, o tal reset nada mais seria que a implantação do comunismo global.

Delírios à parte, o fato é que o capitalismo já sofreu outros “reinícios” e o gatilho de um deles realmente tem a ver com o comunismo. Quando a Revolução Russa abalou o mundo, foi preciso preparar uma resposta rápida.

Há quem diga que essa resposta viria a ser a adoção da economia keynesiana. Mas a teoria de Keynes jamais sairia do papel sem a Segunda Guerra Mundial e esta foi produto da reação fascista ao avanço das lutas dos trabalhadores, evidenciado pelo surgimento da União Soviética.

O capitalismo não precisa de um reset. Precisa de um shutdown.

Leia também: Pandemia e oportunismo: veio a guerra, veio a peste

16 de março de 2021

O racismo como ciência a serviço do escravismo

Para encerrar esta série de comentários sobre o livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”, de Juremir Machado da Silva, algumas considerações sobre o racismo.

O racismo enquanto doutrina científica não precedeu e justificou a escravização humana. Foi a descoberta de que o cativeiro e o comércio de pessoas podiam ser altamente lucrativos que demandou do nascente capitalismo uma justificativa pretensamente científica. Mas uma vez abolido o escravismo, o racismo persistiu.

Segundo Silva:

O maior paradoxo talvez esteja em que o racismo cresceu ao longo da campanha abolicionista. Afinal, os imigrantes brancos europeus deveriam ser trazidos como membros de uma raça superior. Para muitos brasileiros, o principal argumento para a abolição não fora a infâmia da escravidão nem a condição humana do escravo, mas a suposta inferioridade intelectual do negro - apresentada como dado científico -, que deveria ser substituído no trabalho por gente de raça mais inteligente, produtiva e rentável.

Em 1878, o médico francês Louis Couty, por exemplo, professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, afirmou o seguinte sobre os negros:  

Como as crianças, eles têm os sentidos inferiores e, sobretudo, o paladar e a audição relativamente desenvolvidos. O negro gosta de tabaco (...) ele adora as coisas açucaradas, a rapadura; mas o que ele gosta acima de tudo é de cachaça (...) Para conseguir cachaça, ele rouba (...) e sacrificando tudo a essa paixão, inclusive a própria liberdade, ele trabalhará até no domingo.

O conhecimento científico é uma conquista da humanidade. Mas como qualquer atividade humana, pode se curvar aos interesses dos poderosos. E na defesa deles pode tornar-se instrumento das piores barbáries.

Leia também: A violência racista não poupa nem autoridades

15 de março de 2021

A violência racista não poupa nem autoridades

“Por que cada escravo brasileiro, nos confins das fazendas ou na solidão dos lares urbanos, não matou seu senhor em um momento de descuido?”, pergunta Juremir Machado da Silva em seu livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”. Ele levanta possíveis respostas e hipóteses:

Por medo? Por instinto de sobrevivência? Por falta de uma cultura do atentado/suicídio? Pela força disseminada da repressão? Por ideologia introjetada? Por amor à vida? Por conformismo?

(...)

Os escravos viviam sob vigilância permanente. Revoltaram-se, fugiram, suicidaram-se ou abortaram seus filhos. Mataram seus senhores. Acima de tudo, porém, predominou uma aura vitalista. Não chegaram a ver no assassinato individual de seus proprietários uma estratégia revolucionária coletiva. Embora tudo os autorizasse a atentar contra a vida de seus algozes, foram, de modo geral, mais generosos, humanistas e civilizados do que seus selvagens senhores, raptores, torturadores e, muitas vezes, assassinos...

Em contraste, Silva destaca uma notícia publicada em 18 de fevereiro de 1888, na Revista Illustrada. Trata-se do assassinato do delegado de polícia Joaquim Firmino de Araújo Cunha, em Penha do Peixe, São Paulo.

O delegado teve sua casa invadida por “200 ou 300 sicários”, que o assassinaram “com uma crueldade e uma covardia como não há memória”. Abatido pelas pancadas, um dos bandidos “quebra-lhe o pescoço, volta-lhe a cabeça para as costas” e pergunta aos comparsas: "Já viram um homem nesta posição? É medonho!". 

Seriam escravos revoltados? Não, eram jagunços de fazendeiros castigando o delegado por ter se recusado a perseguir cativos fugidos.

Qualquer semelhança com ataques mais recentes a autoridades que ousaram se rebelar contra a política racista oficial não é coincidência.

Leia também: Dragões e caifazes na luta contra o trabalho escravo

12 de março de 2021

Dragões e caifazes na luta contra o trabalho escravo

Na luta pelo fim do trabalho escravo, as batalhas travadas nos parlamentos foram muito importantes. Mas jamais seriam vitoriosas sem a rebeldia popular nas ruas e locais de trabalho. Abaixo, dois exemplos retirados do livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”, de Juremir Machado da Silva.

No Ceará, a jangada era usada no transporte dos escravos do Norte para o Sul. Em 1881, os jangadeiros dirigidos por Francisco José do Nascimento resolveram dificultar o transporte de negros nas suas embarcações. Também ajudavam na fuga de escravos, escondendo-os no meio do seu pessoal.

Nascimento tornou-se o Dragão do Mar, líder da resistência ao tráfico interprovincial. Segundo o autor:

As façanhas do Ceará, onde Nascimento tornara famoso o grito "no porto do Ceará não se embarcam mais escravos", (...) repercutiram por toda parte: de Porto Alegre, Uruguaiana, Viamão, São Borja e Conceição do Arroio, no Rio Grande do Sul, a São Paulo.

Em São Paulo, Antônio Bento, criou na década de 1880, a organização secreta dos Caifazes cujo principal objetivo, afirma Silva, era:

...subtrair escravizados ao poder dos senhores. O cocheiro de praça, o carregador, o caixeiro, o negociante, o operário, o acadêmico, o jornalista, o advogado, o médico, todos, todos, que não tinham escravos, queriam fazer jus ao título de caifazes, subtraindo um escravo ao irmão, ao pai, à sogra, a quem quer que fosse, contanto que o dono perdesse a cabeça a procurá-lo, sem saber como se deu a fuga, e indo queixar-se à polícia para pedir providências.

No Nordeste, no Sudeste, de um lado a outro do País, a resistência a partir de baixo foi fundamental.

Leia também: Sudeste escravocrata, nordeste abolicionista

11 de março de 2021

Sudeste escravocrata, nordeste abolicionista

A primeira cidade brasileira a abolir a escravidão foi Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1883. Depois veio a cearense Redenção, em 1884. O nordeste foi a região que mais apoiou a Abolição. O sudeste, a que mais lutou contra.

Dentre as províncias mais escravocratas, São Paulo se destacava, junto com Minas, Rio e Espírito Santo.

Mas, calma, nada disso se deve a qualquer simpatia das elites nordestinas pela causa dos escravizados. Em um lado do país como no outro o que importavam eram interesses econômicos muito concretos.

Quem explica é Juremir Machado da Silva em seu livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”:

Quanto mais o nordeste vendia escravos para o sudeste, mais ficava livre para ser abolicionista. Quanto mais o sudeste recebia os escravos do norte e do extremo sul, mais se tornava refém de um "produto" em extinção.

O nordeste tornou-se abolicionista quando seus produtos perderam competitividade no mercado internacional. Sobravam escravos. No Sudeste, a lavoura do café precisava adquirir mais deles. Segundo Silva:

As peças compradas eram transportadas a pé pelo sertão nordestino. Era preciso abastecer os mercados das ruas do Ouvidor e Direita no Rio de Janeiro, que dispunham de catálogo com descrições precisas: a rapariga 61, oferecida em uma loja da esquina da rua do Ouvidor com Ourives, na década de 1850, tinha "muito bom leite" e era vendida "com cria".

Claro que houve muitas lutas de corajosa resistência entre as camadas populares das províncias nordestinas. Uma deles foi liderada pelo jangadeiro Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar.

Falaremos dele e de outros heróis abolicionistas nas próximas pílulas.

Leia também: A escravidão e a verdadeira história universal da infâmia

10 de março de 2021

A escravidão e a verdadeira história universal da infâmia

O que matou mais, o capitalismo ou o comunismo? Esta é uma pergunta “ideológica e ardilosa”, observa Juremir Machado da Silva em seu livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”.

O ardil da questão está no fato de que “não passa pela cabeça de quase ninguém incluir na conta do capitalismo as mortes da escravidão moderna”, diz ele.

Afinal, o capitalismo nasceu muito antes do período em que surgiu o que muitos costumam chamar de comunismo. E a escravidão não foi uma atividade externa ao sistema econômico que já dominava o mundo no século 19. Ao contrário, foi um dos pilares sobre o qual ele se ergueu.

Como disse Marx em “O Capital”:

As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, a escravização das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior de minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África num vasto campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam os albores da era da produção capitalista.

O comércio de cativos foi também uma oportunidade de investimentos na bolsa, lembra Silva. Empresas privadas de comércio de escravos vendiam ações nas bolsas de valores de Amsterdã, Londres e Paris.

Como diz o autor:

A "banalidade do mal" nazista foi precedida pela banalidade da ganância capitalista, que inventaria o racismo contra os africanos para legitimar e naturalizar o comércio que ceifou milhões de vidas. No ponto de partida, era só um bom negócio com carne humana encontrada fartamente na África.

A história da acumulação primitiva do capitalismo é a verdadeira história universal da infâmia.

Leia também:
A Lei Feijó e as fezes todas do cálice
As raízes negras de nossas lutas operárias

9 de março de 2021

A Lei Feijó e as fezes todas do cálice

“Talvez a primeira lei importante a não pegar no Brasil tenha sido a Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831”, observa Juremir Machado da Silva em seu livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”.

Aprovada com o apoio de Diogo Antônio de Feijó, ministro da Justiça, ela proibia o tráfico de escravos e libertava todo africano que tivesse entrado no País a partir de sua aprovação.

Como explica o autor, a Lei Feijó foi produto de pressões da Inglaterra, que condicionou o reconhecimento da independência brasileira à proibição do tráfico negreiro até 1830. Mas como denunciaria um representante dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, em 1846, ministros, senadores e deputados continuavam a participar tranquilamente do vergonhoso negócio.

Afinal, acabar com a importação de escravizados implicava enfrentar interesses de uma poderosa cadeia de escravocratas. E o elo final dessa corrente era a Justiça, composta, em geral, por homens brancos ricos ligados aos interesses escravistas mais ferrenhos, diz Silva.

Além disso, usavam-se as mais diversas fraudes para burlar a lei. Entre elas, antecipar a data de nascimento do escravizado para data anterior a novembro de 1831. Assim, não era raro encontrar escravos no auge da força física com mais de sessenta anos de idade.

Resultado, entre a aprovação da lei e a Abolição, mais de 500 mil escravos entraram no país. Era só pra inglês ver mesmo.

Como disse Joaquim Nabuco, em 1883:

A lei de 7 de novembro de 1831 está até hoje sem execução, e os mesmos que ela declarou livres acham-se ainda em cativeiro. Nessa questão do tráfico bebemos as fezes todas do cálice.

Leia também: Os persistentes elos entre escravocratas e grande imprensa

8 de março de 2021

Os persistentes elos entre escravocratas e grande imprensa

O Conselheiro Antônio Prado é outro personagem que mereceu destaque em “Raízes do conservadorismo brasileiro”, livro de Juremir Machado da Silva sobre a atuação dos escravocratas no Segundo Império.

Prado votou contra a Lei do Ventre Livre e só abraçou a causa da abolição quando não havia mais volta, diz Silva. Além disso, como adversário do que chamava de "abolicionismo cego e apaixonado", Prado:

...aderiu à abolição na reta final para ajudar seus amigos fazendeiros a tirarem o que ainda fosse possível dos escravos: um período adicional de trabalho de cada negro como indenização aos donos, o que chamou de política razoável, sensata e flexível. Prado é o autor de uma das pérolas contra os escravos fujões. Segundo ele, a miséria e a fome eram os "primeiros castigos de sua negra ingratidão para com seus ex-senhores".

Em 1882, passou a controlar o jornal Correio Paulistano. Silva cita palavras de Lilia Moritz Schwarcz:

O Correio (...) passa de monarquista conservador e escravocrata, até 1887, a abolicionista e republicano em 1889, ganhando louvores e principalmente postos destacados na nova configuração política que se montava.

“De uma costela do Correio Paulistano, explica o autor, surgiria, em 1875, A Província de São Paulo, que se tornaria abolicionista em 1884, mesmo publicando anúncios de venda de escravos, e mais tarde passaria a ser o para sempre conservador O Estado de S. Paulo. Tudo se encadeia”, conclui Silva.

Um dos sentidos do verbo “encadear” é ligar os elos de uma corrente. No caso acima, trata-se de uma ligação entre os de cima que até hoje procuram manter acorrentados muitos dos de baixo.

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5 de março de 2021

José de Alencar, o escravocrata dos lábios de sangue

José de Alencar mereceu capítulo à parte no livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”, de Juremir Machado da Silva.

Segundo Silva, na condição de parlamentar conservador no Segundo Império, o criador de Iracema dos “lábios de mel” encarnou o pior da retórica conservadora brasileira do século XIX.

Morreu antes da Abolição, mas enquanto viveu lutou com unhas e dentes pela manutenção do trabalho escravo. Para exemplificar, Silva cita trechos de uma carta de Alencar ao Imperador:

Sem a escravidão africana e o tráfico que a realizou, decerto, não existiriam as duas grandes potências do novo mundo, os Estados Unidos e o Brasil. A brilhante civilização americana, sucessora da velha civilização europeia, estaria por nascer.

(...)

A raça branca, embora reduzisse o africano à condição de uma mercadoria, nobilitou-o não só pelo contato, como pela transfusão do homem civilizado.

(...)

Não nos recordamos que os povos nossos progenitores foram também escravos e adquiriram, nesta escola do trabalho e do sofrimento, a têmpera necessária para conquistar seu direito e usar dele?

Em relação a esta última pérola, Juremir Silva não resiste e comenta:

É o mesmo argumento, guardadas as proporções, usado ainda hoje por certos defensores do trabalho infantil que acreditam ser essa uma forma de dar suposta oportunidade de emprego aos mais carentes ou de formar desde cedo para o trabalho em condições "adequadas".

Em uma sociedade em que o analfabetismo era a regra, Alencar tinha mais fama do que era lido. Não era como escritor que se destacava. Era como orador. Mas sua boca salivava não o mel de Iracema, e sim o sangue dos escravizados.

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4 de março de 2021

Abolição: a propriedade valia mais que pessoas. Ainda é assim

Os discursos dos escravagistas fincaram raízes na cultura brasileira. Sempre em nome da legalidade, da ordem, da produção, da produtividade, do direito, da Constituição, das famílias, das fortunas adquiridas dentro da lei, do respeito à propriedade, da paz, da segurança jurídica e alimentar, das instituições e do bem comum.


A citação acima está em “Raízes do conservadorismo brasileiro”, livro de Juremir Machado da Silva.

A obra mostra como as raízes de que fala o título já se mostravam firmes na resistência conservadora à abolição do trabalho escravo. Por exemplo, durante a votação da Lei do Ventre Livre, o senador Barros Cobra afirmou:

O fruto do ventre escravo pertence ao senhor deste tão legalmente como a cria de qualquer animal do seu domínio. (...) Há, sem dúvida, um direito adquirido a esse fruto, tão rigoroso como o do proprietário da árvore aos frutos que ela pode produzir...

Já o deputado federal Alencar Araripe foi vergonhosamente explícito:
 
A decretação da liberdade do ventre, sem prévia indenização, viola a propriedade, é evidente; porquanto contraria o princípio de nossas leis civis, consagrado nesta muito conhecida fórmula: partus sequitur ventrem. Em consequência deste princípio, o filho da escrava é também escravo, e pertence ao dono desta. Logo, o proprietário do fruto procedente do ventre servil não pode ser privado de sua propriedade sem prévia indenização, conforme o preceito constitucional.

Como os latifundiários ao longo do século XX, diz Silva, os senhores de escravos repetiam insistentemente o mantra: "A Constituição só permite a desapropriação mediante indenização."

“Em dois séculos, a retórica conservadora variou muito pouco”, conclui o autor, com toda razão.

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3 de março de 2021

Abolição: para jornais, ex-escravos eram vadios em potencial

“Um furacão varreu o Brasil entre 8 e 13 de maio de 1888”, diz Juremir Machado da Silva no livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”.

A imprensa brasileira estava eufórica. Ele cita o Diário de Notícias, edição do dia 14/05/1888:

Quem dissera há três meses que seria um fato antes do fim do século o sucesso glorioso que todos festejamos?! No entanto, o fato realizou-se rápida e incruentamente! Não há mais escravos no Brasil!

Enquanto isso, O Paíz comemorava: “Fizemos sem derramar uma gota de sangue uma revolução que a outros países custou todos os horrores de uma guerra fratricida”.

Mas a “festa ainda estava nas ruas e já o Diário do Maranhão cobrava”:

Centenas de indivíduos sem ofício, e que terão horror ao trabalho, entregando-se por isso a toda sorte de vícios, precisam ficar sob um rigoroso regime policial para assim poderem ser mais tarde aproveitados, criando-se colônias, para as quais vigore uma lei, como a que foi adotada na França, recolhendo a estabelecimentos especiais os vagabundos, sujeitando-os à aprendizagem de um ofício, ou da agronomia, para que mais tarde o país utilize bons e úteis cidadãos. Assim se praticou nos Estados Unidos depois da emancipação.”

E propunha:

...legislação para o trabalho agrícola; aumento das polícias nas províncias; escolas e núcleos agrícolas nas comarcas; leis coercitivas do vício e da ociosidade; tribunais correcionais com processos sumários...

“Desde o primeiro dia do fim da escravidão, o negro liberto seria visto como vagabundo e bêbado em potencial”, conclui Silva.

Essa era a verdadeira linha editorial da imprensa da época. Não muito diferente do que acontece nos jornais atuais.

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2 de março de 2021

130 anos depois da Abolição, a mentalidade escravocrata domina

Quantas vezes os brasileiros seriam assustados com a ameaça vermelha? Quem poderia imaginar que, já nas lutas em torno da abolição da escravatura, o fantasma comunista fosse agitado, como seria em 1954 e em 1964, para tentar frear o ímpeto dos progressistas ou as aspirações da população? Quem poderia imaginar que até a dom Pedro II um escritor e político famoso como José de Alencar citaria o espectro vermelho?!

O trecho acima é do livro “Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social”, de Juremir Machado da Silva.

Publicada em 2017, a obra apareceu num momento em que poucos esperavam testemunhar a tragédia política e social como a que vivemos hoje.

Mas o autor, certamente, identificou já naqueles dias a necessidade de buscar na persistência da escravidão negra um dos principais elementos para explicar o extremo conservadorismo da estrutura social e política nacional.

Pesquisando os jornais dos período da abolição da escravidão, Silva consegue demonstrar como era terrível a mentalidade escravocrata. E mais que isso, como essa mentalidade persiste 130 anos depois.

Afinal, nas eleições presidenciais de 2018, o candidato que se tornou vitorioso referiu-se a quilombolas como animais reprodutores, cujo peso deveria ser medido em arrobas.

No trecho destacado acima, aparece o nome de um dos mais respeitados escritores brasileiros. Infelizmente, José de Alencar revelou-se um dos mais acirrados defensores da escravidão, colocando toda sua capacidade argumentativa e erudição a favor dessa vergonhosa causa.

Respeitadas as gigantescas diferenças intelectuais entre os dois, Alencar até poderia ser considerado uma espécie de Olavo de Carvalho do período imperial.

Mais nas próximas pílulas.

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1 de março de 2021

A ditadura militar acabou. O poder militar, não

Em 04/10/2020, Olavo de Carvalho escreveu no Facebook:

Somente a direita mais imatura e boboca do mundo pode ter tido a ideia magnífica de conquistar a Presidência da República antes de haver dominado nem mesmo um pedacinho das universidades, da mídia e dos sindicatos.

Segundo Olavo, findo o regime militar, o comunismo dominou instituições, entidades classistas, universidades, escolas, mídia e indústria cultural.

Em nível mundial, o fim da própria União Soviética foi pensado para que os comunistas pudessem continuar seu trabalho de subversão da ordem sem levantar suspeitas.

Delirantes, essas afirmações representam uma total inversão do que vem acontecendo na realidade há décadas.

Não foi uma crescente “comunistização” da sociedade que seu seguiu ao fim da ditadura militar. Foi a militarização do cotidiano que se manteve e se aprofundou.

As torturas continuam ocorrendo nas delegacias. As PMs permanecem fortes e independentes em relação aos governantes eleitos. Representam o único braço do Estado realmente presente nos bairros pobres. Há uma legislação de exceção voltada especificamente contra os movimentos sociais.

Por fim, destaquemos recentes notícias segundo as quais desde que tomou posse, Bolsonaro dobrou o número de militares em cargos estratégicos em seu governo e triplicou a presença deles na administração pública.

Não foram os comunistas que continuaram a subverter a ordem, apesar de terem perdido sua “pátria socialista”. São os militares que se mantiveram em lugares-chave das estruturas de poder, mesmo privados de poderes ditatoriais.

A Bolsonaro coube apenas coroar esse trabalho ocupando a cadeira presidencial. Não sem antes ter seu caminho aberto pela quase totalidade das instituições desde a preparação e execução do golpe de 2016.

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