Doses maiores

15 de dezembro de 2022

Muitas tréguas pra comemorar o Natal

Soldados combatendo em lados opostos, em plena guerra, resolvem fazer uma trégua para comemorar o Natal juntos. A situação aparece no filme “Feliz Natal”, de 2006, dirigido por Christian Carion. Em seu livro “Labirintos do Fascismo”, João Bernardo confirma esse e outros relatos parecidos.

No Natal de 1914, apenas cinco meses após o início da Primeira Guerra, tropas britânicas e alemãs estabeleceram uma trégua por conta própria para celebrar a data. Trocaram presentes, cantaram, jogaram futebol e caçaram “lebres onde antes se haviam caçado uns aos outros”.

Em 1915, o alto comando britânico estava decidido a não permitir a repetição do que se passara no ano anterior. Deu ordem para que na data natalina houvesse tiros de artilharia incessantes contra as trincheiras alemãs. Apesar disso, não conseguiu impedir as confraternizações.

No mesmo ano, na região de Reims, soldados franceses e alemães abandonaram em massa as trincheiras para festejar o Natal. Para obrigar as tropas a voltar para seus postos, os comandantes de ambos os lados ameaçaram mandar a artilharia disparar sobre os soldados misturados.

No início do inverno de 1916, perto do período natalino, ocorreram numerosos casos isolados de congraçamento, em setores da frente de batalha na Europa Ocidental. Mas situações semelhantes não eram desconhecidas no lado oriental da Europa. Em abril do mesmo ano, por exemplo, soldados de quatro regimentos russos estabeleceram uma trégua com tropas do Império Austro-Húngaro para festejar a Páscoa juntos.

Portanto, inimigos demonstrarem amor fraterno em plena guerra é até possível. Difícil é o mesmo acontecer em um país sob ataque dos fascistas como o Brasil.  

De qualquer maneira, boas festas!

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14 de dezembro de 2022

O quebra-cabeça e as cabeças quebradas

São muitas as peças a serem encaixadas. Ministérios disfuncionais, decretos absurdos, políticas públicas destruídas, órgãos inteiros abandonados, servidores perseguidos, números sem lógica.

No Congresso Nacional, o apoio a um governo de frente ampla exige alianças das mais razoáveis às mais temíveis. O espaço para traições e sabotagens é enorme. Fora dos palácios, a grande mídia faz de tudo para enquadrar o novo governo em sua agenda neoliberal e antipopular.

Mas algumas peças desse complicado quebra-cabeças são muito perigosas e de ajuste quase impossível. São peças de artilharia. Uma verdadeira derrama de armamentos ocorreu entre a população desde que o governo Bolsonaro facilitou sua aquisição.

O número de licenças para armas de fogo subiu 473% de 2018 a 2022, segundo dados do Anuário de Segurança Pública divulgados em junho passado. Antes, a população civil podia adquirir até 4 armas e 100 munições para cada arma por ano. Bolsonaro baixou portarias que permitem o acesso a até 60 armas e 180 mil munições, anualmente.

Os Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores possuíam cerca de 648 mil armas, em junho de 2021, enquanto as Polícias Militares totalizavam 583 mil. Até novembro de 2021 havia no país um total de 2,3 milhões de armas registradas. Trata-se de um aumento de 78% em relação a 2018, quando havia 1,3 milhão de armas contabilizadas.

Com toda a violência que marca nossa sociedade há séculos, desarmar essa bomba-relógio não será fácil. Mas ficará impossível se seu principal estopim não for desativado. É o aparato sob controle dos generais infiltrado nas instituições militares e civis.

São essas as cabeças a serem quebradas...

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13 de dezembro de 2022

E a encrenca continua enorme

Durante a campanha eleitoral, Lula disse que o orçamento secreto tornara Bolsonaro um bobo da corte, pois transferiu ao Legislativo a prerrogativa do Executivo de gerir os gastos da União. Até o momento, as negociações do governo eleito com o Legislativo caminham para a manutenção do orçamento secreto.

O teto de gastos aprovado durante o governo golpista de Michel Temer representou a constitucionalização de uma política fiscal feita sob encomenda para os grandes capitalistas que dominam a economia nacional. A necessidade de extingui-lo deveria ser obrigatória em um governo disposto a recuperar minimamente a capacidade do estado de implantar políticas públicas capazes de diminuir a catástrofe social que se abateu sobre o país nos últimos 5 anos. Mas as negociações com o Congresso têm se limitado a discutir flexibilizações do teto, não seu fim.

Recentemente, foi anunciada a indicação de José Múcio Monteiro para o Ministério da Defesa do novo governo. O nome agrada a cúpula militar. O problema é que o indicado foi relator no processo do TCU que condenou Dilma Roussef pelas pedaladas fiscais usadas como pretexto para o golpe que a depôs. Também é alguém por quem Bolsonaro já disse publicamente ter se “apaixonado”.

Em recente encontro com Lula, representantes das centrais sindicais cobraram dele a indicação de um progressista para o Ministério da Fazenda. O presidente eleito respondeu: “O progressista do governo sou eu”.

É isso. Não se trata de um governo petista ou progressista, mas de “salvação nacional”. Resta saber se nessas condições há como salvar alguma coisa que não sejam os interesses dos mesmos poderosos que elegeram Bolsonaro em 2018.

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O que era pra ser nunca deixou de ser o que é
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12 de dezembro de 2022

O que era pra ser nunca deixou de ser o que é

O que era pra ser eleições diretas, em 84, tornou-se eleição indireta, em 85. O presidente deveria ser o opositor Tancredo Neves. Acabou sendo seu vice, criatura da ditadura supostamente derrotada.

O que era pra ser uma anistia que faria justiça às vítimas dos generais ditadores, garantiu impunidade aos que as perseguiram e torturaram.

Era para ser uma nova constituição que assegurasse conquistas sociais. Muitas delas ficaram no papel, mas manteve-se a tutela militar sobre o poder civil.

Era pra ser Lula presidente em 89, representando uma década de lutas populares radicalizadas. O eleito foi um nordestino corrupto com o decisivo e fraudulento apoio da oligarquia sudestina.

Fracassada a aventura mafiosa collorida, o que era pra ser uma vitória eleitoral de Lula foi abortada pelo Plano Real. As perdas salariais foram congeladas e os conflitos sindicais neutralizados. A dívida externa transformada em dívida pública passou a saquear orçamentos como os da Educação, Previdência e Saúde. Bilhões de reais dos cofres públicos passaram a ser apropriados diariamente por rentistas nacionais e estrangeiros.

O PT só chegou ao poder após o neoliberalismo desarmar os movimentos populares e domesticar a esquerda institucional. O poder público transformado em dócil gerente da austeridade fiscal.

Todas essas contradições se acumularam até que a crise econômica mundial passou de “marolinha” a “tsunami”. E o que era pra ser Dilma reeleita, em 2014, tornou-se um golpe liderado por seu vice, em 2016.

Era pra ser Bolsonaro reeleito e o fascismo consolidado. Felizmente, Lula não permitiu. Mas continuamos dependendo do que era pra ser, enquanto as coisas nunca deixaram de ser o que são.

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8 de dezembro de 2022

 Tiktokização e ultraconservadorismo

“A dinâmica criada pelo Facebook é percebida como pré-histórica e nem mesmo 20 anos se passaram desde sua invenção”. Estas palavras são de Juan Gustavo Corvalán, diretor do Laboratório de Inovação e Inteligência Artificial da Universidade de Buenos Aires. Estão na reportagem “A ‘tiktokização’ dos negócios: como os algoritmos preditivos estão ganhando a batalha”.

A expressão “tiktokização” é obviamente inspirada no aplicativo TikTok, cujos algoritmos são considerados revolucionários “porque se ajustam aos detalhes de interesses e gostos além de qualquer outro algoritmo de conteúdo já criado”, explica um dos entrevistados pela reportagem.

Outro aplicativo semelhante é o Shein, utilizado para compras de vestuário. Considerada "irmã do TikTok", a empresa analisa os sites dos concorrentes para descobrir o que está em alta. Em seguida, cria designs rapidamente, prevê a demanda e ajusta o estoque em tempo real. “Assim como o Tiktok antecipa o conteúdo que você vai querer assistir, a Shein antecipa as roupas que você vai querer comprar”, diz a matéria.

Mas o conceito de “tiktokização” também pode caracterizar outro processo, decorrente do primeiro. Tal como já ocorre com o veterano Facebook, a principal função dessas tecnologias é puramente comercial, mas seus efeitos sociais deletérios continuam indo muito além.

Essa dinâmica voltada para o consumismo e diversão alienada contamina a chamada “esfera pública”. Ideias, propostas, convicções, passam a valer por sua capacidade de circulação, não por sua legitimidade social. No vazio de debates, a ausência de sentido se impõe. Surgem ressentimentos, preconceitos, intolerância. As aparências passam a ser o valor supremo. São ingredientes fundamentais para o surgimento de alternativas ultraconservadoras. É o algoritmo a serviço do pior.

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7 de dezembro de 2022

China: concentração de poderes (e de problemas?)

A extensão do governo de Xi Jinping não é uma grande surpresa. Mao Tsé-Tung permaneceu no poder por aproximadamente 30 anos, assim como Deng Xiaoping. A novidade é a forma como ele se mantém no poder. Mao Tsé-Tung continuou no poder como presidente do partido. Deng Xiaoping foi nomeado presidente da comissão militar. Mas Xi Jinping se mantém no poder mudando as regras e impondo um novo sistema sob seu controle exclusivo. Esta não é uma diferença pequena. 

As palavras acima são de Francesco Sisci, pesquisador da Universidade Popular da China. Estão em uma recente entrevista sobre a reeleição de Xi para um terceiro mandato como secretário-geral do Partido Comunista, presidente da República e chefe da Comissão Militar Central. Um acúmulo de cargos poderosos sem precedentes.

Sisci vê nessa concentração de poder um sinal de que os governantes chineses “estão em grande dificuldade, porque julgaram mal uma série de questões e opiniões e agora se sentem perdidos”. Precisaram apertar o controle para melhor responder a possíveis crises, afirma.

Segundo o entrevistado, os maiores erros relacionam-se à situação externa, envolvendo Rússia, Ucrânia e Estados Unidos. A questão, diz, não é “se a Rússia sucumbirá, mas quando”. Além disso, Sisci vê instabilidades em regimes aliados, como o iraniano. Desse modo, a China estaria ameaçada “de ser sitiada por países hostis”, conclui. 

A análise destoa de várias outras, que veem na aproximação russo-chinesa a formação de um polo estável e poderoso. O problema é que o gigantismo da economia chinesa não permite grande margem para erros graves. Inclusive, por seus possíveis efeitos desastrosos para o resto do mundo.

Leia também: Os rinocerontes e os cisnes de Xi Jinping

5 de dezembro de 2022

Os algoritmos e os ovos da serpente fascista

O Facebook tem 2,96 bilhões de usuários ativos mensais. O Instagram, 1,28 bilhão. E o WhatsApp, 2 bilhões. Os três são controlados pela holding Meta, de Mark Zuckerberg, e alcançam mais da metade da população on-line do planeta.

As informações acima estão em artigo de Pedro Doria. Publicado recentemente no Globo, o texto aborda as dificuldades enfrentadas pela Meta que a levaram a demitir 13% de sua força de trabalho.

Uma semana depois, outra coluna do mesmo autor informava que “sinais vindos do Vale do Silício” apontam “para a pior crise do mundo da tecnologia desde o estouro da bolha das ponto-com em 2000”.

Referia-se a grandes demissões em empresas como Snpachat, Netflix, Twitter e Amazon. “Todas demitiram mais de 10% da tropa”, diz Doria. Mesmo quem não demitiu, como Apple e Google, pararam de contratar, complementa.

Mas para o articulista está tudo bem. Afinal, “pessoas perdem seus empregos, a economia se contrai, uma recessão está com toda a cara de que vem por aí. Quem conseguir equilibrar suas contas é quem sobreviverá”.

Exemplo perfeito de fé irresponsável nos mecanismos de correção do todo poderoso mercado. Um fanatismo que despreza não apenas os desempregados da vez, mas os desastrosos efeitos que uma nova recessão mundial pode causar.

Segundo essa lógica, trata-se apenas das periódicas crises de ajuste típicas do capitalismo. O problema é que, em geral, elas aprofundam a barbárie social e ajudam a fortalecer o conservadorismo mais extremado.

Mas nesse caso específico, os algoritmos com que lucraram várias dessas empresas também funcionaram como ninhos onde foram chocados muitos ovos de serpentes fascistas.

Leia também: A sintonia do fascismo com as dissonâncias capitalistas

2 de dezembro de 2022

A paz dos banqueiros e a paz dos cemitérios

Em seu livro “Labirintos do Fascismo”, João Bernardo comenta o que considera um dos episódios menos conhecidos da segunda guerra mundial. Envolve o Banco de Compensações Internacionais (BCI), instituição criada na Basileia, Suíça, em 1930. Sua função era permitir que os bancos centrais dos vários países cooperassem tecnicamente sem intromissões políticas. Ainda hoje, seu conselho de administração é composto por dirigentes de bancos centrais.

É muito provável que durante os seis anos de guerra não houvesse outro organismo onde os países inimigos estabeleceram oficialmente uma colaboração tão sistemática, afirma o autor. Nada mais lógico. Por um lado, é precisamente no plano financeiro que a internacionalização do capital chegou mais longe, já que o dinheiro circula muito fácil e velozmente. Por outro lado, no plano estritamente técnico, as operações envolvidas ficaram distantes dos olhos leigos das populações tão duramente afetadas por elas.

A existência do BCI reunindo pacificamente todas as partes das nações beligerantes prova que o capital estava já completamente globalizado.

Bem antes do final da guerra, a tecnocracia financeira do Reich se ocupava, juntamente com os seus colegas anglo-americanos, em definir o lugar da Alemanha vencida num mundo politicamente democrático e economicamente liberal. Os serviços de espionagem nacional-socialistas pressentiam os novos rumos ou até os conheciam e tomavam parte neles.

Era a concórdia reinando entre os capitalistas em suas salas acarpetadas, fossem liberais ou fascistas. Independente de suas nacionalidades, os donos dos meios de produção sempre tiveram uma única pátria, a do capital. Enquanto isso, para os soldados nas trincheiras e as populações bombardeadas nas cidades, a única paz possível sempre foi a dos cemitérios.

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1 de dezembro de 2022

Austeridade fiscal e fascismo, tudo a ver

O país precisa “de um homem à frente do governo capaz de dizer não a todos os pedidos de novos gastos” e realizar “reformas ousadas” para promover “a austeridade fiscal”. 

São necessárias também uma “redução drástica dos gastos sociais” e a “demissão de funcionários públicos”. Igualmente inadiáveis são o aumento das taxas de juros e um programa de privatizações.

Ao contrário do que possa parecer, as providências acima não dizem respeito ao consenso neoliberal, foi imposto à opinião pública mundial desde os anos 1980. O tal homem capaz de promover a austeridade fiscal era Benito Mussolini e o país em questão, a Itália de 1922. 

Recém-chegado ao poder, Mussolini foi saudado pelo jornal The Economist e pela revista Times.

Essas informações estão no artigo “A paixão dos liberais por Benito Mussolini”, de Clara Mattei, professora de Economia da Nova Escola de Pesquisa Social, de Nova Iorque. O texto mostra o quanto é falsa a oposição entre liberalismo e fascismo.

Clara é autora do livro “A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”, ainda sem tradução do inglês. O título da obra recém-lançada diz tudo. 

Austeridade fiscal e fascismo têm tudo a ver. Um se alimenta do outro, há muitas décadas. Os desastres econômicos causados pela austeridade fiscal geram o enorme ressentimento social que alimenta os banquetes diabólicos dos fascistas.

Apesar disso tudo e após derrotarmos um governo fedendo a fascismo por todos os poros, os neoliberais cercam o candidato vencedor com propostas de... Adivinhem! Mais austeridade fiscal! O fascismo agradece, mantendo-se otimista quanto a um retorno em breve.

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30 de novembro de 2022

Barreiras naturais e ameaças catastróficas

Para Marx a capacidade de “afastar as barreiras naturais” constitui um traço essencial de nossa espécie. O bicho humano é biologicamente incapaz de voar ou de mergulhar a grande profundidade, por exemplo. Mas tais limitações foram superadas.

Ainda segundo Marx, a constante diminuição dessas restrições naturais é que nos tornariam cada vez mais humanos. Teoricamente, quanto menos necessidade tivermos de trabalhar pela reprodução meramente biológica, mais tempo teríamos para nos dedicar a atividades artísticas e intelectuais, ao lazer, às relações pessoais, a práticas lúdicas, etc.

O problema é que forçar os limites naturais também pode nos levar a situações arriscadas. É o que mostram os inúmeros desastres ecológicos ocorridos na história da humanidade.

Mas as coisas ficaram ameaçadoras mesmo quando a Revolução Industrial levou esse processo a um ritmo, alcance e intensidade inéditos. Desde então, passamos a destruir barreiras naturais pelo planeta todo na insana busca por lucros.

Um exemplo muito próximo foi a pandemia do covid-19. É muito provável que o vírus tenha se espalhado devido à invasão humana de espaços que antes estavam isolados por barreiras naturais.

Outro caso grave é o derretimento das calotas polares causado pelo aquecimento global. Um fenômeno que pode libertar patógenos que estão presos no gelo. Recentemente, cientistas franceses conseguiram “ressuscitar” vírus que estavam congelados há 48 mil anos na Sibéria.

Enquanto isso, a recém-encerrada conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas não conseguiu nem mesmo aprovar um cronograma para a eliminação dos combustíveis fósseis, importante fator de desequilíbrio ecológico.

É assim que o capitalismo vem fazendo as barreiras naturais avançarem perigosamente sobre nós.

Leia também:
A COP-25 e o princípio da sétima geração
A febre amarela e as barragens do capital

29 de novembro de 2022

O tamanho da encrenca

“A verdade muito além do fiscal”, diz o título de artigo de Míriam Leitão, publicado no Globo de 27/11/2022. “O que gera mais incerteza? O golpismo de Bolsonaro ou a falta de definição sobre a âncora fiscal do novo governo?”, pergunta a articulista.

Ela afirma que sempre defendeu “a sustentabilidade da dívida pública e o rigor nos gastos do governo”. Mas, diferente do que vem fazendo o grande capital em relação ao governo eleito, pede paciência porque “o país está em escombros”.

Na mesma página, uma reportagem alerta: “Alckmin diz que novo governo não vai desfazer reformas”. Em evento com empresários no Guarujá, o vice-presidente eleito defendeu a reforma trabalhista e prometeu “quatro anos de ajuste fiscal”.

Eis aí a explicação para a boa vontade de Miriam Leitão em relação ao próximo presidente. Um governo que nem tomou posse, já se encontra cercado e chantageado pelo neoliberalismo. E ainda corre elevado risco de continuar convivendo com as ações terroristas dos bolsonaristas. Práticas às quais a “institucionalidade”, incluídas as forças repressivas, assistem com uma passividade carregada de cumplicidade. 

O governo Lula dificilmente chegará a ser progressista, dadas as limitações impostas por forças que, mais do que o apoiar, o limitam. Mesmo assim, será tratado como esquerdista pelo “mercado” e comunista pela extrema-direita. 

Nesse cenário, caberá aos movimentos sociais e forças de esquerda assumir a defesa de um governo que nem será um aliado tão próximo assim contra ataques que virão de vários lados. Dos fascistas, dos neoliberais e de setores do próprio campo governista. Este é o tamanho da encrenca em que nos encontramos.

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28 de novembro de 2022

As correntes da dívida pública

Os números são espantosos: a dívida interna federal brasileira somava, em dezembro de 2021, o valor de RS 7.378.330.084.715 (sete trilhões, trezentos e setenta e oito bilhões. trezentos e trinta milhões, oitenta e quatro mil e setecentos e quinze reais). No mesmo ano de 2021, pagamos de juros e amortizações a escandalosa quantia de R$ 1.960.823.058.735 (um trilhão, novecentos e sessenta bilhões, oitocentos e vinte e três mil, setecentos e trinta e cinco reais). Isso corresponde a R$ 5,4 bilhões pagos a cada dia!
 
O trecho acima está no artigo “A dívida pública: falando sério com pessoas comuns”, de Virginia Fontes, publicado no livro “Brasil, 200 anos de (in)dependência e dívida”, recém-lançado pelo Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs).

Os números mostram o tamanho do buraco por onde escoam diariamente recursos que poderiam ser direcionados a políticas públicas, programas sociais, serviços essenciais, investimentos produtivos. Ao contrário disso, essa dinheirama vai para os detentores dos papéis da dívida pública. Em sua imensa maioria, grandes capitalistas com negócios sediados aqui e no exterior. Com essa situação, não há independência ou soberania nacional possível. 

Enquanto isso, manchete da Folha de hoje diz: “Mais pobres se endividam para comer e pagar contas”. Já entre os mais ricos, explica a matéria, “o principal motivo para pegar um empréstimo é empreender”.

O fato é que esse mecanismo perverso trocou a economia baseada nas correntes da escravidão pela economia acorrentada à escravidão das dívidas. No capitalismo atual, as dívidas atravessam toda a sociedade. Mas uma minoria poderosa as transforma em investimento. A grande maioria explorada é massacrada por elas.

25 de novembro de 2022

A falsa oposição entre autoritarismo e totalitarismo

Os liberais até toleram os regimes designados como autoritários, mas condenam fortemente os regimes ditos totalitários, uma categoria que englobaria o fascismo e o comunismo. 

Este debate é abordado por João Bernardo em seu livro “Labirintos do Fascismo”. Segundo ele, trata-se de uma polêmica que teve grande influência de Hannah Arendt. Para esta filósofa alemã, regimes totalitários seriam aqueles que liquidariam e pulverizariam as classes sociais, deixando as elites dirigentes diante de uma massa de “indivíduos atomizados, indefiníveis, instáveis e fúteis”. Ora, diz ele, esta visão das massas atomizadas é partilhada também pelo fascismo, o que torna impossível usá-la como elemento de distinção entre um e outro regime. 

Para Hannah, polícias políticas de regimes como o soviético teriam inventado sistemas de classificação e vigilância, capazes de mostrar as relações, e a ligação entre relações, de toda a população. Pode ser, diz Bernardo, mas é precisamente este também o objetivo da vigilância informatizada. É o que mostra, por exemplo, o sistema de cartões perfurados criado pela IBM para viabilizar a política de extermínio racial do Terceiro Reich.

Afinal, pergunta Bernardo, o que dizer da ampla adoção de computadores interligados em rede que torna possível “mostrar as relações, e a ligação entre relações, de toda a população”? É assim que chegamos à estranha conclusão de que toda sociedade que utiliza a internete é totalitária.

A verdade, conclui o autor, é que a separação entre autoritarismo e totalitarismo serve para situar este último no capítulo das anomalias da história. Apenas um hiato no desenvolvimento capitalista e não uma das várias consequências lógicas do seu processo de evolução.

Leia também: Marx e Engels também fizeram merda

24 de novembro de 2022

O negacionismo e a guerra civil não declarada

É costume definir guerra civil como um confronto entre cidadãos de uma mesma sociedade. Mas o que ocorre se as vítimas do conflito não são consideradas cidadãs?

Por exemplo, na antiguidade grega, quando cidadãos atenienses trocavam espadadas tratava-se de uma guerra civil. Mas essa classificação já não servia se a agressão partia dos cidadãos contra escravos ou estrangeiros.

Muitos séculos depois, essa regra continua valendo. Quando as vítimas são indígenas, negros, homossexuais, mulheres, pobres ninguém chama de guerra civil.

Mas e se universitários, profissionais liberais, pacatos frequentadores de restaurantes, enfim “cidadãos”, são agredidos apenas por usar roupas vermelhas? Aí, sim, é guerra civil.

O raciocínio acima serve para introduzir o que diz o professor de filosofia Pedro Rocha de Oliveira no interessante artigo “As razões do negacionismo: guerra civil e imaginário político moderno”.

Segundo Oliveira, o negacionismo não é uma recusa irracional de verdades estabelecidas. É uma postura ideológica compatível com as enormes contradições da sociedade contemporânea. Ele surge de um sistema social que se pretende justo, mas garante alguns direitos para uma minoria cidadã, enquanto castiga uma grande maioria marginalizada.

Diante de tanta disparidade, recusar fatos jornalísticos, evidências científicas, consensos historiográficos não é tão absurdo. Há muitos anos, Bolsonaro nega os crimes da ditadura. E suas promessas de matar “uns 30 mil” só escandalizavam quem estava distante das mortes violentas presentes no cotidiano da população pobre.

Quando o bolsonarismo toma como alvo aqueles tidos como esclarecidos e progressistas, fica oficializada a guerra civil. O problema é que dificilmente contaremos com grande apoio daqueles que já vinham sendo vítimas de uma guerra civil jamais declarada.

Leia também: A polícia bolsonarista é anterior ao bolsonarismo

23 de novembro de 2022

A revolta da chibata

Em 22 de novembro de 1910, João Cândido Felisberto, membro da Marinha Nacional, liderou uma revolta de 2.300 marinheiros. O movimento assumiu o comando de quatro navios de guerra, apontando seus canhões para o Rio de Janeiro, capital federal na época. A principal exigência era o fim das chibatadas como punição. Por isso, o motim recebeu o nome de Revolta da Chibata. João Cândido ficou conhecido como o Almirante Negro. 

Abaixo, um trecho da carta dos revoltosos endereçada ao então presidente Hermes da Fonseca:

Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira (...). Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os oficiais, os quais, tem sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Excia. faça aos Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilitam, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira...

Caso não fossem atendidos, os marinheiros ameaçavam bombardear a capital. Temeroso, o governo prometeu atender todas as exigências. Mas com exceção do fim das chibatadas, nada mais foi cumprido. Dos 600 revoltosos presos, 18 foram jogados em um cárcere cheio de cal virgem. Somente dois sobreviveram. Um deles era Cândido.

“Vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos”, diz a carta dos marinheiros. Mais de 130 anos depois, nos fazem falta muitas outras revoltas da chibata.

Leia também: A chibata continua a castigar

22 de novembro de 2022

Ajuda-nos a te ajudar

“Temos que incluir o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”, declarou Lula em entrevista à CBN, em agosto de 2021.

Sintético, claro e inteligente como costuma ser, Lula estava se referindo a dois elementos fundamentais para começar a pensar em distribuição de renda em um país tão injusto como o nosso.

Primeiro, criar ou ampliar o lugar dos programas e direitos sociais nos orçamentos públicos. Segundo, cobrar menos impostos sobre o consumo e priorizar taxação pesada sobre grandes patrimônios e fortunas. 

Mais do que isso, é preciso cobrar impostos sobre lucros e dividendos. Desde 1995, o Brasil é um dos únicos países do mundo a isentar de tributação esse tipo de ganhos, beneficiando uma minoria de magnatas.

Durante a campanha eleitoral, Lula também reafirmou que despesas com saúde e educação não são gastos, mas investimentos. Era um recado para os defensores do teto de gastos aprovado durante o governo golpista de Michel Temer. 

Essa medida provavelmente coloca o Brasil como o único país do mundo a constitucionalizar uma política fiscal. Um absurdo criado apenas para garantir o enorme fluxo de recursos públicos para o pagamento da dívida pública, cujos títulos estão em poder do grande capital nacional e estrangeiro. 

Mas para além de esperar que Lula consiga fazer valer suas próprias palavras, seria importante avançar algumas propostas. Que tal tirar da Constituição o teto de gastos e colocar nela o Bolsa-Família, por exemplo? 

Nós, aqui do lado de fora, temos a obrigação de ajudar. Mas, como fazem os melhores cristãos, também somos obrigados a dizer: ajuda-nos a te ajudar, Lula.

Leia também: Preparando a cama para Lula

21 de novembro de 2022

Preparando a cama para Lula

Nas últimas semanas, a grande imprensa vem dando voz a uma entidade chamada “mercado”, que estaria muito nervoso. Na verdade, trata-se do grande capital, que exige de Lula um compromisso selado com sangue de irrestrita fidelidade à responsabilidade fiscal. 

Responsabilidade fiscal nada mais é que o desvio de enormes montantes de recursos públicos para o pagamento dos juros da dívida interna. Os beneficiários desse pagamento são capitalistas, detentores de títulos da dívida pública. E não se trata apenas de banqueiros, mas dos grandes empresários em geral, tanto nativos como estrangeiros.

Enquanto isso, a enorme maioria pobre da população vê seus direitos desrespeitados ou eliminados e programas sociais fundamentais para garantir o mínimo de dignidade para milhões de pessoas amargam a mais extrema penúria. Tantas perdas humanas apenas para honrar uma dívida que já foi paga várias vezes, sem que jamais tenha diminuído.

Na mitologia grega, um sujeito chamado Procusto costumava deitar suas vítimas numa cama. Se o coitado fosse maior que o leito, decepava-se o que ficava sobrando. 

É nesse leito cruento que o grande capital está querendo meter o governo Lula. Com a diferença de que mesmo que o encaixe entre a cama fiscal e o orçamento público fique do tamanho exigido pelo poder econômico, continua sendo grande o risco de graves mutilações. 

Afinal, não nos esqueçamos que Dilma aceitou as imposições desse mesmo Procusto fiscal, em 2015. Na época, ela delegou ao neoliberal Joaquim Levy a tarefa de conferir as medidas do catre a ser ocupado. O resultado todos testemunhamos. Foi um verdadeiro esquartejamento transmitido ao vivo, em cores e aos berros.

Leia também: A cama de Dilma

18 de novembro de 2022

Sou o Deus que transtorna, diz o Capital

Os tempos anunciados chegaram: como os monstros vorazes dos mares e as feras raivosas dos bosques, os homens se devoram selvagemente.

“Trabalhe, e a escassez fugirá de você; trabalhe e seus celeiros ficarão cheios de provisões”, diz a sabedoria antiga.

Eu digo: “Trabalho, constrangimento e miséria serão seus companheiros fiéis; trabalhe e você esvaziará sua casa no Monte da Piedade.”

Eu sou o Deus que transtorna os impérios: sob meu jugo igualitário submeto os orgulhosos; reduzo a individualidade humana à insolência e ao egoísmo; torno a humanidade estúpida para a igualdade. Conduzo trabalhadores e capitalistas ao desenvolvimento comunista da sociedade futura.

Os homens expulsaram do céu Brahma, Júpiter, Jeová, Jesus, Alá... Eu me suicido.

Quando o comunismo for a lei da sociedade, terminará o reinado do Capital, o Deus que encarna as gerações do passado e do presente. O Capital não dominará mais o mundo: obedecerá ao trabalhador, a quem odeia. O homem não mais se ajoelhará diante do trabalho de suas mãos e de seu cérebro; ele se levantará e, de pé, olhará para a natureza, como um mestre.

Os trechos acima encerram as pílulas sobre o livro “A Religião do Capital”, de Paul Lafargue.

A título de breves comentários, importante destacar o caráter suicida que o autor parece atribuir ao Capital. Uma ideia que não encontra fundamento nos escritos de Marx, autor que inspira a obra de Lafargue.

Quanto a considerar o animal humano como ser destinado ao papel de “mestre da natureza”, apresenta-se em descompasso com o debate ecológico atual, que denuncia o caráter ambientalmente destrutivo que tal concepção pressupõe.

No mais, amém!

Leia também: Eu sou o Deus da tormenta e do sofrimento

17 de novembro de 2022

Lula e STF facilitando para o bolsonarismo

“Discurso de Lula na COP27 resgata papel do Brasil”, diz o título do editorial do Globo de hoje sobre o pronunciamento do presidente eleito na conferência do clima das Nações Unidas.

Mas, segundo o jornalão, Lula “errou feio” ao aceitar carona no avião de José Seripieri Junior, dono da Qualicorp, um dos maiores grupos de saúde privada do País.

Depois de saudar o pronunciamento de Lula, o editorial termina, esperando que “doravante” ele saiba “separar o espaço público de interesses privados”.

Por falar em mistura de interesses públicos e privados o jurista Conrado Hübner Mendes, tratou do tema em sua coluna publicada também hoje, na Folha. Mendes destacou a presença de seis ministros do STF na "Lide Brazil Conference", em Nova York.

O evento foi organizado pela "Lide - Grupo de Líderes Empresariais", empresa de João Doria, que segundo o articulista, dedica-se a "fazer pontes" entre o mundo corporativo e o mundo público. “Não precisa chamar de lobby se tiver apego ao eufemismo”, adverte ele.

Realmente, não há o que justifique seis dos togados mais poderosos do país juntos e misturados com quem manda em grande parte da economia nacional. Apesar disso, não houve editoriais condenatórios nem toda a comoção que se verificou no caso de Lula.

Além disso, comparando os dois casos, note-se que, diferente de magistrados pretensamente neutros, Lula nunca escondeu suas amizades com empresários desde que era metalúrgico.

Mas, de um jeito ou outro, é preciso levar a sério a advertência do colunista da Folha: “há várias formas de Bolsonaro sair vitorioso após a derrota eleitoral”. Toda essa promiscuidade é uma delas.

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16 de novembro de 2022

O partido das Panteras Negras

Uma busca na internete por imagens com as palavras “Partido Pantera Negra” mostrará homens pretos, usando jaquetas de couro e boina, em posição militar e portando armas. Mas essas imagens estão longe de mostrar toda a verdade. 

Acaba de ser lançado nos Estados Unidos o livro “Comrade Sisters - Women of the Black Panther Party”, que pode ser traduzido como “Camaradas Irmãs - Mulheres do Partido Panteras Negras”. A edição conta com um prefácio da grande ativista e teórica antirracista e anticapitalista Ângela Davis. Melhor apresentação, impossível.

A obra mostra como seis em cada dez integrantes daquela importante organização política eram mulheres. Muitas delas eram responsáveis pela elaboração dos jornais e boletins do partido. Também estavam nas manifestações e lutas contra o racismo e o capitalismo. Mas sua presença era ainda mais majoritária na luta por melhores condições de saúde, educação, alimentação e, principalmente, justiça social para o povo preto e pobre. Apesar da enorme importância simbólica e política das armas em punho, era essa atividade comunitária que garantia ao partido o indispensável apoio social diante de um aparelho repressivo disposto a tudo para esmagá-lo.

O livro traz fotos de Stephen Shames, feitas quando ele tinha 20 anos de idade e estudava em Berkeley, nos anos 1970. A parte escrita é de Ericka Huggins, uma das primeiras integrantes do Partido, ao lado de Bobby Seale e Huey Newton. Encarcerada por 15 anos, Ericka jamais abandonou a luta e ainda tornou-se mestra em Sociologia pela Universidade do Estado da Califórnia.

A luta antirracista, ou melhor, a luta antifascista deve muito a essas mulheres. 

Leia também: Panteras Negras: armados contra o racismo policial

11 de novembro de 2022

Lula sob ameaça de prisão

Uma pílula publicada em agosto passado já alertava que Lula, vitorioso nas eleições, seria nosso homem infiltrado na direita, “sozinho e muito mal acompanhado”.

Hoje, os jornais parecem confirmar essa ideia. Bastou o presidente eleito criticar a “responsabilidade fiscal que sacrifica o combate à fome e enche o bolso dos banqueiros” para o dólar disparar e a Bolsa despencar.

Também são recorrentes as cobranças pela nomeação imediata do sacrossanto Ministro da Fazenda, mesmo que gente como os pais do Plano Real e um neoliberal certificado e homologado como Henrique Meirelles estejam na equipe de transição. 

Falando em equipe de transição, há ótimos nomes em sua composição, como Silvio de Almeida, Sônia Guajajara, Guilherme Boulos, Anielle Franco. Mas resta saber quais deles realmente comporão o governo. Podem estar apenas aplainando o terreno para os tratores da direita passarem. 

Uma coisa é estabelecer um programa de diretrizes para os futuros ministérios. Outra é quem realmente será o titular das pastas. Não adianta, por exemplo, prever fortes medidas ambientais se a área correspondente ficar com representantes do agronegócio, como Simone Tebet ou Kátia Abreu.

Mas tudo isso já estava na conta desde que se impôs a necessidade de impedir a reeleição de Bolsonaro. Por mais que lamentemos, Lula já está com o cheque assinado em favor da austeridade fiscal.

O que não pode entrar nessa conta é impunidade para a indisciplina do aparato repressivo, os oficiais golpistas na máquina pública e a ação miliciana dentro e fora dos quartéis. Ou Lula dá um basta nisso tudo ou vai retornar à prisão. Desta vez, a do Alvorada.

Leia também: Lula: nosso homem infiltrado na direita

10 de novembro de 2022

Marx e Engels também fizeram merda

As últimas duas pílulas abordaram um grave equívoco teórico cometido por Marx e Engels. Trata-se da ideia de que nações e povos inteiros podem ser classificados como reacionários ou revolucionários. 

Em seu livro “Labirintos do Fascismo”, João Bernardo argumenta que esse erro teria aberto uma brecha política que foi aproveitada por forças de direita para iniciar um processo que viria a desembocar no fascismo. 

Afinal, se há povos reacionários, como eslavos e turcos, seria justo que fossem atropelados pela vanguarda revolucionária da civilização. Que alguém tirasse conclusões racistas disso não deveria surpreender.

Mas em defesa de Marx e Engels, é importante considerar que as evidências documentais utilizadas por Bernardo saíram principalmente de suas correspondências. Em suas obras de maior fôlego, aqueles raciocínios estapafúrdios praticamente não aparecem.

Além disso, já no fim da vida, Marx começou a manter contato frequente com os revolucionários russos, fazendo questão de aprender seu idioma. Mais do que isso, ele chegou a admitir um caminho russo para o socialismo, ainda que achasse que isso dependeria da vitória da revolução no Ocidente. O desprezo que a dupla nutria pelos povos eslavos parecia ter ficado no passado. 

De qualquer maneira, Marx e Engels tiveram sorte de não viverem para ver o surgimento do fascismo entre os trabalhadores ser facilitado por algumas de suas teses infelizes. Assim como foi pena não terem visto os eslavos abrirem uma ruptura histórica sem precedentes em 1917. E tampouco tiveram o desgosto de testemunhar sua Alemanha, que consideravam um berço de revolucionários, enviando tropas para esmagar a vitoriosa revolução socialista russa. 

Pois é, até grandes revolucionários podem fazer merda.

Leia também: Do socialismo nacional ao nacional-socialismo 

9 de novembro de 2022

Do socialismo nacional ao nacional-socialismo

Entre 1908 e 1910 o político e pensador nacionalista Enrico Corradini começou a apresentar a Itália como uma “nação proletária”. Tratava-se de transformar a luta de classes numa luta entre nações. 

“Há nações que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras, tal como há classes que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras classes”, escreveu Corradini em outubro de 1910.

Nos anos que precederam a Primeira Guerra, Corradini esforçou-se por consolidar uma aliança entre nacionalistas radicais e sindicalistas revolucionários, que transportasse a luta da classe trabalhadora do interior da Itália para o exterior, convertendo uma nação proletária numa nação imperial.

O génio de Corradini consistiu em renovar a direita politicamente, usando para isto o proletariado. Residiu aqui a substância mesma do fascismo. Era o socialismo, mas um socialismo encerrado na nação logo transformou-se no nacional-socialismo. Assim começou a maior tragédia do século passado. Se Mussolini levou o fascismo para as massas, Corradini forneceu a formulação teórica que nortearia a fundação do Partido Nacional Fascista, em 1923. Mussolini não inovou nada; realizou.

O relato acima é do livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo. Segundo ele, uma das raízes dessa enorme confusão teórica está na própria obra de Marx e Engels. Afinal, diz o autor, foram eles que cometeram o terrível erro de separar nações e povos entre reacionários e revolucionários em muitos de seus escritos. Equívoco que seria mantido pela 2ª Internacional, quando sua ala alemã considerou a entrada de seu país na Primeira Guerra como uma intervenção modernizadora contra o atraso das colônias. Outro enorme disparate. 

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também:  Um grande equívoco de Marx e Engels

8 de novembro de 2022

Um grande equívoco de Marx e Engels

Em uma carta endereçada a Wilhelm Liebknecht, em fevereiro de 1878, Marx afirmou que só conseguia ver por detrás das lutas de independência nacional dos sérvios a sinistra mão do Império Russo. 

Em 1839, Engels escreveu que a “próxima guerra mundial não só fará desaparecer do globo terrestre as classes e as dinastias reacionárias, mas igualmente povos reacionários inteiros. E também isto será um progresso”.

Nas palavras de Engels, em uma correspondência de 1849, “o ódio à Rússia foi e continua a ser a primeira paixão revolucionária dos alemães”.  

As informações acima são do livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo. Estão no capítulo em que o marxista português condena Marx e Engels por cometer um de seus equívocos teóricos mais lamentáveis. 

Segundo o autor, em muitas de suas análises geopolíticas, os pais do marxismo teriam “convertido cada um dos campos das lutas nacionais em representante de uma ou outra classe social”. O alvo favorito dos ataques da dupla eram os eslavos, considerados povos “sem história”.

Tratar alguns povos como inerentemente reacionários, enquanto outros seriam vocacionados para a revolução é um equívoco sério demais para ser ignorado. E não só porque foram exatamente os eslavos que, no século seguinte, protagonizariam a primeira revolução socialista, em plena Rússia. 

Como diz Bernardo, tal posicionamento também “teria aberto a brecha teórica e prática onde mais tarde o fascismo haveria de se instalar”. Para dar um exemplo concreto, essas concepções teriam sido fundamentais para fazer Mussolini de um revolucionário socialista um ditador fascista. 

Muito grave, não? Voltaremos a isso na próxima pílula.

Leia também: A histórica tolerância dos “democratas” com o fascismo

7 de novembro de 2022

É hora do exorcismo

“Ninguém sofreu tantas injustiças e foi tão ‘satanizado’ como o próprio Satã”. Estas palavras são de Leonardo Boff, no artigo “Dessatanizar a Satã ou o Diabo”

No texto, Boff lembra que Satã era um dos anjos de Deus. O problema é que na Bíblia recebeu a tarefa “inusitada e ingrata” de colocar à prova a fé do pobre e bondoso Jó, num dos momentos mais cruéis do Antigo Testamento.

Depois, veio a influência de Zoroastro, durante o exílio dos judeus na Babilônia, cuja cosmologia dividia o mundo entre o bem e o mal. Em seguida, veio a criação do inferno por teólogos da Idade Média. Daí foi um passo para que o inferno e suas criaturas servissem aos interesses colonialistas.

Os sacerdotes cristãos ameaçavam os povos originários com o inferno, caso não negassem suas crenças. Além de acusarem suas entidades espirituais de serem criaturas malignas. Prática, aliás, que não mudou muito. Ao contrário, tivemos provas muito recentes de que só vem se fortalecendo.

Como diz Boff: 

...o inferno e os demônios e o principal deles, Satã, são projeções nossas da maldade que existe na história ou que nós mesmos produzimos e das quais não queremos nos responsabilizar e as projetamos nestas figuras sinistras.

Ele também afirma que é apelando a Satã “que hoje, em tempos de ira e ódio social, procura-se desqualificar o adversário, não raro, feito inimigo a ser desmoralizado e, eventualmente, liquidado”. 

O autor está certo. Mas, cá entre nós, após quatro anos de um governo genocida, só dessatanizar parece muito pouco. Um bom e velho exorcismo é altamente recomendável. Sai, capeta!

Leia também:
O anticomunismo neopentecostal escolhe as coisas loucas
Machado, o Diabo e sua igreja

4 de novembro de 2022

Eu sou o Deus da tormenta e do sofrimento

“Eu sou o rei do mundo”, diz o livro “A Religião do Capital”, de Paul Lafargue, no capítulo em que o Capital se apresenta conforme segue abaixo.

Ando escoltado por mentiras, inveja, ganância, chicana e assassinato. Trago divisão na família e guerra na cidade. Semeio, onde quer que eu vá, ódio, desespero, miséria e doença.

O trabalhador não pode fugir de mim: se fugir de mim, ele atravessa as montanhas, encontra-me além das montanhas; se cruzar os mares, eu o espero na praia onde ele desembarca. O trabalhador é meu prisioneiro, a terra é sua prisão.

Encho os capitalistas com um bem-estar pesado, estúpido e rico em doenças. Eu emasculo física e intelectualmente meus escolhidos: sua raça está morrendo na imbecilidade e na impotência.

Encho os capitalistas com tudo o que é desejável e os castro com todo desejo. Encho suas mesas com pratos apetitosos e suprimo o apetite. Encho suas camas com moças e entorpeço seus sentidos. Todo o universo é sem graça, tedioso e cansativo para eles: eles bocejam suas vidas; eles invocam o nada e a ideia da morte os transita com medo.

Quando é do meu agrado e sem a razão capaz de ser sondada pelos homens, golpeio meus eleitos, precipito-os na miséria, no inferno dos assalariados.

Os capitalistas são meus instrumentos. Eu os uso como um chicote com mil tiras para açoitar seu estúpido rebanho. Elevo meus trabalhadores eleitos para a vanguarda da sociedade e os desprezo.

Eu sou o Deus implacável. Deleito-me no meio da discórdia e do sofrimento. 

Sou o Deus que conduz os homens e confunde sua razão.

Leia também: A teologia do Capital. Resistente, coerente, diabólica

3 de novembro de 2022

Fazendo o L de Lênin

Não. Não se trata de defender a revolução socialista após a vitória de Lula sobre a extrema-direita. Nem de criar um partido revolucionário, fortemente centralizado e hierarquizado, guia absoluto das massas proletárias. 

Em geral, muito do que se costuma chamar de leninismo despreza grande parte da obra teórica e prática do grande revolucionário russo. 

Lênin sempre procurou ser um seguidor fiel de Marx. Assim, em junho de 1920, por exemplo, ainda em plena guerra em defesa da Revolução Russa, Lênin escreveu num artigo: “aquilo que constitui a própria essência, a alma viva, do marxismo é a análise concreta da situação concreta”.

Somente a análise concreta da realidade pode fornecer pistas sobre o que fazer para alcançar objetivos revolucionários. Ou seja, aquilo que muitos identificam como sendo a fórmula leninista para todas as revoluções resume-se à escolha de determinados caminhos feita por ele e seus camaradas nas condições da Rússia do início do século passado.

Lênin aprendeu com Marx que a realidade é o resultado de múltiplas determinações. Portanto, nossa análise da realidade deve levar em consideração o máximo de determinações que a constitui para nos aproximarmos de sua concretude. 

São, certamente, muitas as determinações que levaram à terrível situação que estamos vivendo. A herança escravocrata, um aparato de dominação extremamente brutal, enorme injustiça social, forte conservadorismo social, superexploração econômica, uma institucionalidade totalmente corrompida. Estas são apenas algumas delas.

Dialeticamente, porém, esses anos de terrível sofrimento com a extrema-direita no poder revelaram muitas dessas determinações da forma mais crua. É preciso agarrar essa dialética pelos cabelos. Fazer o L de Lula, de Lênin, mas principalmente da luta.

Leia também: Uma vitória de Pirro? Uma vitória da porra!

1 de novembro de 2022

Os rinocerontes e os cisnes de Xi Jinping

No 20° Congresso do Partido Comunista Chinês, encerrado há poucos dias, Xi Jinping foi reeleito secretário-geral do partido e presidente da China e da Comissão Militar Central. É a maior concentração de poder desde Mao Tsé-Tung. 

Em janeiro de 2018, Xi fez um discurso em um seminário para os membros do Comitê Central do PCCh. Por seu caráter elucidativo, a publicação Vozes Chinesas divulgou um resumo do pronunciamento.

No discurso, Xi reafirma o socialismo chinês como parte do processo iniciado há mais de 170 anos, com Marx e Engels, e continuado por Lenin.

Mas a parte mais curiosa do pronunciamento é aquela em que Xi adverte “que a China entrou em um período de desenvolvimento em que oportunidades estratégicas, riscos e desafios são concomitantes e as incertezas e fatores imprevistos estão aumentando”. 

Assim, continua ele, vários eventos de "cisne preto" e "rinoceronte cinza" podem ocorrer a qualquer momento. Portanto, “devemos estar mais atentos aos perigos potenciais, estar preparados para lidar com os piores cenários e estar prontos para resistir a ventos fortes, águas agitadas e até mesmo tempestades perigosas”. 

A metáfora do rinoceronte cinza foi criada pela especialista em riscos Michele Wucker para descrever perigos altamente óbvios e prováveis, mas ainda assim negligenciados. Já cisnes negros simbolizariam riscos imprevisíveis ou altamente improváveis.

Difícil saber o que quis dizer o poderoso líder chinês. Mas ao se colocar a tarefa de construir o socialismo à frente de uma nação que vem se tornando importante pilar da globalização capitalista, Xi vai precisar encarar manadas de rinocerontes cinzas ferozes e bandos de cisnes negros desorientados.

Leia também: A China preocupada com o capitalismo digital

31 de outubro de 2022

Uma vitória de Pirro? Uma vitória da porra!

Os exércitos se separaram e, diz-se, Pirro ter respondido a um indivíduo que lhe demonstrou alegria pela vitória que "uma outra vitória como esta o arruinaria completamente". Pois ele havia perdido uma parte enorme das forças que trouxera consigo, e quase todos os seus amigos íntimos e principais comandantes... 

O relato acima é do historiador grego Dioniso de Halicarnasso e refere-se a batalhas travadas contra os romanos pelo rei macedônio Pirro, no século 3 A.C.

A partir daí, “vitória de Pirro” passou a ser aquela cuja conquista tem um preço quase tão alto quanto uma derrota. Não seria difícil utilizar a expressão em relação à eleição de Lula, ontem. Para obtê-la, Lula e o PT tiveram que abrir mão não só de muitos de seus princípios como devem perder vários dos principais postos em seu próprio governo. 

E muitos de nós, das velhas tropas da esquerda, acabamos marchando ombro a ombro com antigos generais inimigos, responsáveis por tantas de nossas derrotas e muitas de nossas baixas.

Mas era imperioso impedir uma recondução do bolsonarismo ao Poder Executivo. Situação que levaria a ainda mais atrocidades contra os pobres e outros setores vulneráveis da população e à implantação definitiva do fascismo no País.

Além disso, é preciso levar em conta os inúmeros crimes eleitorais cometidos por Bolsonaro. Em especial, o orçamento secreto e a imensa derrama de recursos públicos em favor de sua candidatura, contando com a omissão e cumplicidade vergonhosas de uma institucionalidade pretensamente republicana. 

Tudo isso torna a eleição de nosso heroico Pirro de Garanhuns uma enorme conquista. Uma vitória da porra! 

Leia também: Não há cheque em branco nenhum para Lula

13 de outubro de 2022

A teologia do Capital. Resistente, coerente, diabólica

“Quem são os eleitos do Capital” é o nome de um dos capítulos da versão do “Eclesiastes” bíblico, criada por Paul Lafargue em seu livro “A Religião do Capital”. Nele se destacam os “versículos” abaixo:

– O mineiro vive entre o gás venenoso e os deslizamentos de terra; o operário se move entre as rodas e correias da máquina de ferro; a mutilação e a morte estão diante do trabalhador; o capitalista que não trabalha está protegido de todo perigo.

– Não se tira vinho de pedra, nada se aproveita de um cadáver: exploram-se apenas os vivos. O carrasco que guilhotina um criminoso priva o capital de um animal a ser explorado.

– O patrão que faz os empregados trabalharem 14 das 24 horas não desperdiça o seu dia.

– Não poupe nem o bom nem o mau trabalhador, porque tanto o cavalo bom como o mau precisam da espora.

– A árvore que não dá fruto deve ser arrancada e queimada; o trabalhador que não traz mais lucros deve ser condenado à fome.

– O trabalhador que se revolta, alimenta-o com chumbo.

– Roubar grande e devolver pequeno é filantropia.

– O capitalista, libertário fanático, não dá esmola; pois isso priva os desempregados da liberdade de morrer de fome.

– Digo em verdade, há mais glória em uma carteira recheada de notas, do que no homem carregado de talentos e virtudes ou no burro carregando legumes no mercado.

Há muito mais verdades como estas na obra de Lafargue. Mas a amostra evidencia que o Capital inspira uma das religiões mais resistentes e coerentes. Como se ele fosse, assim, uma espécie de deus. Ou diabo.

Com essas doses profanas, as pílulas entram em breve recesso.

Leia também: Eclesiastes ou a Natureza do Deus-Capital

11 de outubro de 2022

A luta socialista como sistema de sentido

“Por que Bolsonaro surpreendeu no primeiro turno” é o título de artigo recentemente publicado por Frei Betto. Em meio a tantas análises sobre as eleições, o texto mostra um pouco mais da floresta e menos das árvores ao utilizar o conceito de “sistema de sentido”.

Um exemplo de sistema de sentido é a religião. “Ela ‘explica’ desde a origem do Universo até o que ocorre a cada pessoa após a morte. Como ironizam os cientistas, os físicos têm perguntas; os teólogos, respostas”, diz Betto.

O problema é que desde o enfraquecimento da Teologia da Libertação e de outras iniciativas religiosas progressistas, o campo da espiritualidade foi dominado por uma combinação reacionária de empreendedorismo individual e fanatismo. 

O texto é muito preciso na análise dos erros da esquerda nessa esfera fundamental da disputa hegemônica. Mas também pode servir de provocação para a luta da esquerda em geral. Há muito tempo, as concepções socialistas perderam sua condição de sistema de sentido. Mas não se trata de retomar a dogmática stalinista, cujo caráter conservador nada tinha de socialista.

Uma tarefa crucial é romper nossa dependência em relação à farsa da institucionalidade burguesa. Outra ruptura importante é com a influência do relativismo paralisante do pensamento pós-moderno sobre grande parte da produção teórica da esquerda. Esses, porém, são só alguns dos fenômenos que desarmaram a luta socialista.

Para vencer a disputa de hegemonia com a burguesia é fundamental construir uma concepção socialista que atribua sentido à vida das pessoas. Mas isso só será possível se for feito a partir das lutas concretas travadas no cotidiano delas.

Leia também: O que, afinal, vem se desmanchando no ar?

10 de outubro de 2022

A histórica tolerância dos “democratas” com o fascismo

Durante os anos 1930, os chamados regimes “democráticos” viam com bons olhos a perseguição feita pelos fascistas às organizações da classe trabalhadora. Afinal, no começo de 1939 já existiam campos de concentração na França, onde foram internados anarquistas, comunistas e republicanos espanhóis, que haviam lutado contra as tropas fascistas de Franco e buscaram refúgio em território francês. Enquanto isso, falangistas espanhóis, fascistas italianos, russos contrarrevolucionários e nazistas autênticos passeavam livremente pela França.

Só quando o exército germânico se aproximou de Paris, o ministro do interior francês ordenou a captura de meia dúzia de notórios jornalistas e políticos partidários de Hitler. Tarde e sem efeito.

No Reino Unido, em julho de 1940, contavam-se já 27 mil detidos. Alguns eram reconhecidamente partidários de Hitler e Mussolini, mas muitos outros haviam emigrado por razões políticas e eram antifascistas de longa data ou judeus fugidos do Reich.

O conflito entre os regimes parlamentares e os regimes fascistas surgiu do expansionismo alemão e japonês, que ameaçava o equilíbrio internacional. Só a necessidade de conquistar a população trabalhadora para o esforço de guerra levou os governos aliados a dar um verniz antifascista ao que, na realidade, constituía apenas uma preservação de esferas de influência.

O morticínio causado pela Segunda Guerra serviu depois para que as chamadas democracias, adulterando o seu passado, apresentassem como uma incompatibilidade o que fora uma estreita colaboração com o fascismo.

As informações acima estão no livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo. Não são histórias do passado. A tolerância dos falsos democratas de direita com o fascismo se renova periodicamente. Estamos vivendo um desses momentos. Inclusive, no Brasil.

Leia também: O irracionalismo fascista da psicologia de capitão

8 de outubro de 2022

Deus nos salve da América

“Ideias de 'guerra civil' nos EUA incendeiam redes sociais” diz reportagem de Ken Bensinger e Sheera Frenkel publicada no The New York Times e reproduzida pelo Globo, em 06/10/2022. 

Segundo o texto: 

Mais de um século e meio depois do fim da Guerra Civil verdadeira, o mais violento conflito da História dos EUA, as referências a uma nova guerra civil se tornaram lugar comum na direita. Embora o termo seja usado de maneira dispersa em alguns casos, como em uma analogia à crescente divisão partidária no país, especialistas afirmam que, para alguns, a expressão é bem mais do que uma metáfora.

Após a apreensão de documentos na residência do ex-presidente Donald Trump, “publicações no Twitter mencionando uma ‘guerra civil’ dispararam quase 3.000% em questão de horas”, diz a reportagem.

Mas o fenômeno não se limita à internete. Em campanha para as eleições legislativas de novembro, multiplicam-se os casos de republicanos prevendo uma guerra civil nos comícios que realizam por todo o país. 

“No final de agosto, informa o texto, uma pesquisa com 1,5 mil adultos conduzida pelo instituto YouGov e pela revista Economist apontou que 54% dos entrevistados que se identificaram como ‘republicanos convictos’ acreditavam que uma guerra civil era algo provável na próxima década.”

Estamos falando de uma sociedade com elevado índice de armamento da população. Some-se a isso a mentalidade delirante que prevalece em grande parte do país, além do racismo a rasgar-lhe as entranhas. Por fim, trata-se da nação cuja contribuição para todo tipo de desequilíbrio no planeta já é decisivo. Imagine se resolver se dilacerar...

Deus nos salve dessa América dos infernos!

Leia também: Destino Manifesto: a doutrina genocida estadunidense