Doses maiores

30 de setembro de 2023

Big thecs e a Mentalidade do capitalismo extremo

Abaixo, mais trechos do livro “A sobrevivência dos mais ricos”, de Douglas Rushkoff. Neles, o autor descreve o que chamou de “A Mentalidade”, fenômeno que tomou conta do Vale do Silício no início do atual século.

Em vez de continuar apenas fornecendo resultados de pesquisa a seus usuários, a Google entrou no negócio ainda mais lucrativo de fornecer dados dos usuários a seus verdadeiros clientes: os especialistas em mercado que procuram abordar os usuários e manipular seu comportamento.

Da mesma forma, Mark Zuckerberg mudou sua atividade da veiculação de anúncios para a venda de dados. Quanto mais tempo e mais emocionalmente ficamos envolvidos com a plataforma, mais o Facebook aprende sobre nós para enriquecer seus investidores às nossas custas.

Nessa nova versão do capitalismo extremo, a tecnologia digital é valorizada pela sua capacidade de expandir os negócios sem necessidade de contratar muita gente. Fórmula quase exclusiva para proporcionar maiores lucros e vender a imagem de empresa inovadora, turbinando o preço das ações.

Como explicou Scott Galloway, professor de administração da Universidade de Nova York, “decidimos que capitalismo significa ser amoroso e empático com as corporações e darwinista e severo com os indivíduos”. O governo socorreu prontamente bancos e empresas na recessão de 2008 e a crise da Covid aumentou a riqueza dos bilionários de 8,9 para 10,2 bilhões de dólares apenas no primeiro ano.

A Mentalidade incentiva uma forma de “vitória” que eleve seus vencedores humanos e empresariais acima daqueles que serão necessariamente deixados para trás. Deixados para trás literalmente, já que a ideia deles é abandonar o planeta que vêm ajudando a destruir.

Doses suspensas até meados de outubro.

Leia também: Da contracultura psicodélica às big techs neoliberais

28 de setembro de 2023

Da contracultura psicodélica às big techs neoliberais

Em seu livro “A sobrevivência dos mais ricos”, Douglas Rushkoff relata sua experiência como parte da geração que participou da onda tecnológica surgida no Vale do Silício.

No começo da década de 1990, diz ele, os mundos da contracultura e da informática pareciam idênticos. Os membros da comunidade psicodélica da Califórnia eram particularmente adequados para imaginar ambientes virtuais e novos modos de comunicação.

Recrutando sua força de trabalho em ambientes de rebeldia cultural, a revolução cibernética seria caracterizada menos pela burocracia militar do pós-guerra, ou pelas corporações de alta tecnologia, do que pelos “novos comunalistas”.

Se a internete tinha um inimigo, diziam os filhos da geração hippie, não seriam as empresas que ofereciam brinquedos para nossa diversão e ainda pagavam pelo nosso tempo. Era o governo, que usava computadores para jogos de guerra, prendia jovens hackers sob falsas acusações e tentava censurar nossa comunicação online.

A “Declaração de Independência do Ciberespaço” publicada por John Barlow, em 1996, atacava o autoritarismo governamental sobre a internete, considerada um novo “projeto coletivo da humanidade”. Mas poucos se lembram do lugar em que o documento foi lançado: “Davos, Suíça”. Em pleno Fórum Econômico Mundial, ponto de encontro dos campeões da globalização neoliberal.

Não percebíamos, conclui o autor, que banir o governo da internete criaria uma zona livre para a colonização corporativa. Foi aí que começaram a surgir monstrengos empresariais como Google, Facebook, Uber e Airbnb.

Novamente, um movimento surgido com pretensões rebeldes foi capturado pela lógica do capital. Contra isso não há garantias, a não ser a constante vigilância e mobilização militantes.

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27 de setembro de 2023

Ludismo e capitalismo de plataformas

“Movimento radical de resistência operária surgido na Inglaterra no século 19, promovendo a destruição de máquinas fabris”. Esta é uma resposta-padrão quando se busca por “Ludismo” na internete.

Mas desde que Edward Palmer Thompson abordou o fenômeno em seu livro “A formação da classe operária inglesa”, sabemos que o movimento foi bem mais que isso.

Segundo o historiador inglês, a luta ludita era contra a liberdade dos capitalistas de destruir tradições da vida produtiva, seja através de novas máquinas ou pela concorrência predatória, que arruinava pequenos negócios e achatava salários.

Os industriais que construíram sua fortuna por estes meios eram vistos pela maioria dos trabalhadores como alguém envolvido em práticas imorais e ilegais.

Thompson esclarece que os luditas defendiam uma comunidade democrática, na qual o crescimento industrial seria regulado de acordo com prioridades éticas e a procura do lucro subordinada às necessidades humanas.

Estamos em um momento em que se destroem empregos em alta velocidade. A experiência ludita pode ser importante, não pela destruição de máquinas, até porque muitas das ferramentas usadas para eliminar ocupações são aplicativos quase sem materialidade.

Os ludistas participaram da vanguarda das lutas que levaram à limitação da jornada diária de trabalho a dez horas, na Inglaterra. Para Marx, uma conquista em que, pela primeira vez, “a economia política da burguesia sucumbiu à economia política da classe operária".

É disso que se trata. Ficarmos atentos para lutas que possibilitem vitórias da economia política dos trabalhadores. Provavelmente, envolvendo força de trabalho explorada pelo capitalismo de plataforma, como entregadores e motoristas de aplicativos, empacotadores de gigantes varejistas, programadores e outros proletários digitais.

Leia também: A luta contra a exploração digital

26 de setembro de 2023

Bilionários sem vestígios de humanidade

Nos Estados Unidos, é famosa a história do elevador de comida inventado por Thomas Jefferson para evitar que seus escravizados tivessem que subir as escadas carregando pratos e tigelas. No andar de cima, os comensais tinham apenas que abrir uma portinhola e o jantar estava servido.

Mas a engenhoca não foi criada para poupar as energias dos cativos. O objetivo era preservar os convidados da visão de pessoas bufando e suando. A comida chegava, sem nenhum sofrimento humano visível.

Muitos dos atuais processos tecnológicos são baseados nessa mesma lógica. Na etapa final da montagem dos celulares, por exemplo, os trabalhadores limpam cada unidade com um solvente que remove suas impressões digitais dos aparelhos. O produto pode causar abortos, câncer e reduzir a expectativa de vida de quem os manipula. Mas o que importa é a eliminação de todos os vestígios humanos.

Algumas das grandes inovações da Amazon existem somente para proteger seus clientes da realidade desagradável de seus processos de produção. Os entregadores nem tocam a campainha. Uma foto do pacote na varanda chega automaticamente à sua caixa de mensagens, enquanto Alexa emite um aviso. Não precisamos encarar a pobre alma que dirige o caminhão, muito menos aqueles que correm entre os robôs no galpão.

Robôs não substituem os custos humanos e as condições degradantes de trabalho. Eles os escondem.

As informações acima são do livro “A sobrevivência dos mais ricos”, de Douglas Rushkoff. Convidado a falar para alguns bilionários das big techs, o autor fez esse relato para tentar explicar que tipo de pessoas encontrou pela frente. Gente sem qualquer vestígio de respeito humano.

Leia também: O medo egoísta de bilionários diante do apocalipse

25 de setembro de 2023

Colonização do futuro e distopias

Já se tornou comum dizer que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

Em seu livro “Uma arqueologia da era contemporânea”, Alfredo Gonzalez-Ruibal alerta para o que chamou de “colonização do futuro” pela “modernidade tardia”, conceito que ele usa para caracterizar o capitalismo.

De fato, é o que se verifica ao observarmos a indústria cultural e suas inúmeras megaproduções audiovisuais sobre o pós-apocalipse. Aquelas em que o mundo tal como conhecemos aparece em um futuro não tão distante, quase totalmente destruído.

São cidades habitadas por poucos e tomadas por destroços. Ruas e estradas cheias de carcaças de veículos. Grandes prédios em ruínas, ocupados por sobreviventes que lutam entre si em selvagem competição. A diversidade biológica substituída por algumas raras espécies, tão resistentes quanto perigosas para a vida humana.

Na melhor das hipóteses, muitas dessas produções passam por ser uma advertência sobre as consequências dos desequilíbrios ambientais e da barbárie social causada pela distribuição cada vez mais injusta da renda e da riqueza.

Mas na medida em que só conseguem apresentar o futuro como uma versão piorada do presente, esses filmes e séries acabam por nos impor a catástrofe como inevitabilidade. Também nos distraem do apocalipse que já chegou para alguns setores da população, que a ele resistem heroicamente. É o caso dos povos indígenas e dos moradores de regiões empobrecidas das grandes cidades.

É a distopia nos impedindo de enxergar a existência de utopias concretas, representadas pela solidariedade surgida das lutas dos explorados e oprimidos.

Enquanto nossa imaginação se restringir aos elementos doentios e suicidas do capitalismo será assim.

Leia também: Capitalismo, arqueologia, mandantes e executores

22 de setembro de 2023

Cangaço, criminalidade e lutas populares

Lançada em agosto, "Cangaço novo" está entre as séries mais assistidas da Amazon no Brasil e em mais 10 países, como Canadá, Paraguai, Emirados Árabes e Papua-Nova Guiné.

Com ótima produção, elenco excelente e direção idem, tem como personagem principal Ubaldo, que chefia uma gangue de ladrões de banco, atuando no interior cearense.

O enredo não chega a opor mocinhos e bandidos, mas desperta simpatia por Ubaldo e seus liderados de origem pobre. Afinal, contra eles estão a truculência e a corrupção da polícia e dos políticos da cidade onde moram.

Matéria do portal Terra explica que Ubaldo foi criado com base em Valdetário Carneiro, considerado o precursor do “novo cangaço”, caracterizado por ataques a bancos cometidos por quadrilhas fortemente armadas em cidades pequenas.

Nascido em Caraúbas, no Rio Grande do Norte, Valdetário foi o responsável por pelo menos 100 ataques a bancos no final do século 20. Admirador de Lampião, usava um chapéu idêntico ao do famoso cangaceiro.

Mesmo involuntariamente, a série pode invocar um mito popular recorrente na história brasileira. A do cangaceiro cruel, mas justo. Porém, há fortes evidências históricas de que Lampião estava mais para uma versão antecipada dos atuais milicianos.

O fenômeno do “banditismo social”, popularizado pelo historiador Eric Hobsbawm, presta-se a leituras muito perigosas. O caminho da criminalidade muito dificilmente pode contribuir para o avanço das lutas populares. Em regra, só serve para facilitar o trabalho das forças repressivas e isolar os setores de esquerda de parcelas importantes da população. Há muitas leis que precisam ser quebradas, mas somente a partir da ampla mobilização dos explorados e oprimidos.

Leia também: A aliança entre o fascismo e a ralé criminosa

21 de setembro de 2023

Derrotas de baixo para cima

“A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. As melhores tradições da esquerda sempre acreditaram nessas sábias palavras ditas por Marx.

Ou seja, transformações radicais que coloquem um fim à sociedade capitalista só acontecerão a partir do rés-do-chão social.

Essa foi a inspiração daqueles que atuaram na resistência à ditadura militar, à democracia tutelada que a sucedeu e aos ataques neoliberais dos anos seguintes. Mas esse trabalho de base praticamente desapareceu no final do século passado.

Há até pouco tempo, considerávamos isso apenas um momentâneo atraso em nossas lutas. Como se os espaços que abandonamos aguardassem pacientemente nosso retorno.

Não demorou muito para que fôssemos lembrados da pior forma possível que a direita também sabe atuar no solo sujo do capitalismo.

Nos bairros pobres rasgados pela violência e desesperança, igrejas dominadas por lideranças ultraconservadoras estenderam uma rede que finge amparar, enquanto prega o pior fanatismo e elege os maiores canalhas.

Já a criminalidade, na ausência de qualquer trabalho de conscientização progressista, organizou-se, modernizou-se, adotou métodos racionais, fez da delinquência empreendedorismo.

O mesmo empreendedorismo que ONGs bem intencionadas semearam pelas periferias para que a uberização do trabalho viesse fazer sua farta colheita. No lugar da dura luta por empregos e salários dignos, a competição feroz por corridas e encomendas valendo uns poucos reais.

Por fim, nos deparamos com lideranças fascistas infiltradas nos próprios movimentos sociais, sindicatos, conselhos tutelares. Presentes em alianças que vão da vereança ao senado, do prefeito ao presidente, do fisiologismo de direita a seu equivalente de esquerda.

Mas não há como consertar nada disso pelo alto porque foi de lá que desabamos.

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20 de setembro de 2023

Alexandre Lex Moraes

Lex Luthor é conhecido pelos aficcionados em histórias em quadrinhos como um dos mais poderosos antagonistas do Superman.

O apelido “Lex” vem do nome Alexander. Mas há algum tempo, as buscas pelo nome do vilão nas redes podem retornar imagens com o rosto de outro Alexandre. O Moraes.

Muito provavelmente, o atual ministro do STF ganhou esse apelido de setores da esquerda quando ainda era considerado um conservador linha dura. Principalmente, em sua gestão à frente da secretaria de segurança pública do governo Alckmin. Foi nessa época, por exemplo, que blindados israelenses foram utilizados pela primeira vez para reprimir manifestações dos movimentos sociais.

Agora, Alexandre virou “Xandão”. Ao que parece, o primeiro a chamá-lo assim foi Roberto Jefferson em vídeos que o ameaçavam. O ódio que atraiu do bolsonarismo bastou para que boa parte da esquerda passasse a tratá-lo como um aliado.

Mas seria bom lembrar o que diz Thais Bilenky no último episódio do podcast “Alexandre”:

Pela ordem de chegada no Supremo, Alexandre de Moraes assumirá a presidência do tribunal daqui a quatro anos. Vai chefiar o Poder Judiciário inteiro, ambição de muita gente na Justiça. Em meados de 2029, se tudo correr como esperado, estará com 60 anos e uma avenida aberta pela frente.

O podcast revela que no final de 2022, Alexandre recebeu Lula para um jantar. Os dois corintianos roxos estreitaram relações em clima de grande simpatia, “sem que nenhuma notícia sobre o encontro vazasse”, informa Thais.

Alexandre não chega a ser vil e poderoso como Lex Luthor. Mas Lula e, principalmente a esquerda, estão longe de serem inexpugnáveis como o Superman.

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19 de setembro de 2023

O medo egoísta de bilionários diante do apocalipse

Convidado a ir a um resort superluxuoso para debater com cerca de cem banqueiros, fui apresentado como um futurólogo.

Realmente, como humanista que escreve sobre o impacto da tecnologia digital nas nossas vidas, sou frequentemente confundido com um explorador do futuro. Mas nunca gostei muito de especulações desse tipo, especialmente diante de pessoas muito ricas.

Logo, ficou clara a verdadeira preocupação do grupo: Nova Zelândia ou Alasca? Qual região será menos impactada pela próxima crise climática? Só piorou a partir daí. Qual era a maior ameaça: as alterações climáticas ou a guerra biológica? Um abrigo deve ter seu próprio suprimento de ar? Qual é a probabilidade de contaminação das águas subterrâneas? Finalmente, o executivo-chefe de uma corretora explicou que havia quase concluído a construção de seu próprio bunker subterrâneo e perguntou: “Como posso manter a autoridade sobre os homens de minha força de segurança após o evento?” O evento. Esse era o eufemismo deles para colapso ambiental, agitação social, explosão nuclear, tempestade solar, pandemia ou um vírus malicioso de computador que destrói tudo.

Então, eu, descaradamente, sugeri que a maneira de garantir que seu chefe de segurança não cortasse sua garganta, amanhã, seria pagar uma festa de aniversário para a filha dele, hoje. Eles gargalharam. Pelo menos, eu os estava divertindo.

O relato acima é do livro “A sobrevivência dos mais ricos: fantasias de fuga de bilionários da tecnologia”, de Douglas Rushkoff, ainda sem edição nacional. É a experiência de um teórico marxista dos meios de comunicação contratado para explicar a ricaços onde instalar e como planejar seus bunkers do Juízo Final.

A leitura promete...

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18 de setembro de 2023

Serviços públicos e uberização do trabalho

No início de agosto, o governo anunciou “a substituição do controle de frequência dos servidores federais por um controle de produtividade”. Segundo os autores da proposta, “bater ponto nunca foi garantia de produtividade”.

Mas a verdade é que uma das consequências das novas regras é a possibilidade de vários setores do funcionalismo passarem a cumprir suas tarefas parcial ou integralmente em casa. Parece bom, mas não é.

Em primeiro lugar, a medida transfere os custos da manutenção das condições operacionais aos servidores. Levando também à fusão muito provável do trabalho assalariado com os cuidados domésticos, que sobrecarrega principalmente as mulheres.

Em segundo lugar, reforça a fragmentação do local de trabalho, dificultando ainda mais as mobilizações coletivas em defesa de direitos, condições dignas de trabalho e atendimento de qualidade à população.

Mas essa é só mais uma etapa em um longo processo de mudanças feitas em direção a uma concepção neoliberal que vem corroendo o serviço público silenciosamente.

São as inúmeras terceirizações ao invés de contratações diretas. Empregos temporários no lugar de servidores permanentes. Concursos cada vez mais raros. E constantes ameaças à melhor defesa dos serviços públicos diante de desmandos e politicagens dos governantes de plantão: a estabilidade no emprego.

O fato é que os servidores públicos são umas das últimas categorias a contar com um mínimo de condições para se organizar coletivamente, enquanto milhões de trabalhadores viram seu poder de resistência sindical enfraquecido pela informalidade imposta nas últimas décadas.

Pode ser prematuro considerar esse processo uma espécie de uberização do trabalho no serviço público. Mas tudo indica que o destino final já está programado.

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15 de setembro de 2023

Capitalismo, arqueologia, mandantes e executores

Uma das tarefas da arqueologia dos tempos contemporâneos é reconstituir ligações e genealogias, diz Alfredo Gonzalez-Ruibal, em seu livro “Uma arqueologia da era contemporânea”.  

Segundo ele, o desempenho dessa função assemelha-se à crítica do fetichismo proposta por Marx. Na maioria dos casos, as ligações já são vagamente conhecidas, mas esquecidas: dissociamos as mercadorias das suas origens obscuras e da violência dos seus efeitos. É por isso que nos sentimos tão chocados quando somos forçados a comparar o contexto do consumo de mercadorias ao das suas condições de produção.

As ligações entre o consumo de carne bovina e a destruição da Amazônia, por exemplo, são sistematicamente apagadas, e esse apagamento é essencial para a continuação e expansão do sistema capitalista, cujo caminho de destruição é “apagado, escondido ou ignorado”

Em 2006, Gonzalez-Ruibal trabalhou em um projeto arqueológico em acampamentos madeireiros e fazendas de gado estabelecidas ilegalmente dentro de uma reserva indígena no Maranhão. Foram mapeadas áreas desmatadas, rotas e acampamentos de madeireiros e inventariados os diversos objetos que ficaram para trás após uma operação policial. A “feiura” da floresta violada, os rios sujos e a miséria dos acampamentos contrastam com o luxo dos móveis feitos com madeiras “nobres” e o alegre consumo de carne no Brasil e em outros lugares.

O caso acima exemplifica como, muitas vezes, a modernidade torna difícil estabelecer as ligações entre crimes ambientais, de um lado, e consumismo glamourizado, do outro.

Ou seja, entre os mais importantes mecanismos de manutenção do capitalismo está o ocultamento das relações entre mandantes e executores. Não poucas vezes, apelando aos sangrentos préstimos de jagunços e capangas.

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Um Tribunal de Nuremberg para os crimes da pandemia

Renato Tasca, Rebeca Freitas, Júlia Pereira e Evelyn Santos publicaram um artigo na Folha, em 12/09/2023, com importantes informações e fatos a serem lembrados sobre o Covid-19.

Em primeiro lugar, a pandemia acabou, mas o coronavírus ainda circula no Brasil, infectando muitos e, às vezes, matando. Entre janeiro e junho deste ano, cerca de 10 mil morreram em decorrência da Covid-19. Mais do que doenças como diabetes e muitos tipos de câncer.

Em segundo lugar, em 2022, no Brasil, foi notificado quase o mesmo número de casos de Covid-19 do que em 2021. No entanto, os óbitos caíram seis vezes de um ano para o outro graças à vacinação, que finalmente chegou, apesar do criminoso boicote bolsonarista.

Falando em bolsonarismo, não podemos esquecer as 700 mil mortes, entre as quais destacam-se as de 4,5 mil profissionais de saúde, principalmente, auxiliares ou técnicos de enfermagem e enfermeiros.

O texto cita ainda um estudo que calcula que mais de quatro em cada 10 pessoas tiveram problemas de ansiedade por conta da pandemia, para não mencionar o aumento da violência doméstica e da taxa de suicídio. Também merece destaque a elevada mortalidade da população negra e entre os mais pobres, em relação à média da população.

Tudo isso deveria estar sendo julgado em uma espécie de “Tribunal de Nuremberg” relacionado aos crimes cometidos durante a pandemia do coronavírus no Brasil.

Um julgamento paralelo ao que começou ontem sobre o 8 de Janeiro. Ainda que com a dificuldade operacional, mas não intransponível, de exigir a presença de muitos de seus réus tanto em um como no outro tribunal.

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13 de setembro de 2023

8 de Janeiro: nenhuma graça, só tragédia

Começou hoje o julgamento pelo STF dos golpistas de 8 de janeiro. Naquela data, as sedes dos três poderes em Brasília foram invadidas por fascistas que defendiam uma intervenção militar para depor o governo Lula.

Marx popularizou a ideia de que a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa.

Seguindo essa lógica, o tribunal que se instalou hoje poderia ter como causa a ser julgada apenas uma comédia tosca, encenada por bolsonaristas que tentaram repetir o trágico golpe de 1964.

Ou será que o Supremo poderia redimir o embuste sinistro produzido pela lei da anistia aprovada no final dos anos 1970? Aquela que assegurou impunidade aos assassinos e torturadores a serviço de uma ditadura que, naquele momento, começava a se recolher aos bastidores.

Mais de 40 anos depois, os togados da mais alta corte estariam prontos a levar a julgamento não apenas os golpistas patéticos de agora, mas também aqueles que, outrora, ficaram livres para voltar a cometer suas tenebrosas transações?

Ocorre que da mesma forma que Marx falava da famosa alternância histórica entre drama e comédia em termos puramente metafóricos, não há nada de caricato ou burlesco em todo esse processo.

Muitos dos que, hoje, deveriam ter amanhecido sentados no banco dos réus ocupam tranquilamente tribunas e gabinetes parlamentares e cargos no próprio governo que foi ameaçado de deposição.

Sem falar que na mesma corte cujas dependências foram depredadas pelos golpistas sentam dois juízes que se opuseram ao indiciamento dos responsáveis pelo vandalismo.

Enquanto isso, os porões das casernas continuam a reproduzir e chocar seus ovos de serpentes. Graça, nenhuma. Só desgraça persistente.

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12 de setembro de 2023

Padre Júlio no meio do inferno

As polícias brasileiras mataram quase 50 mil pessoas de 2012 a 2022, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram 12 mortes diárias.

O site Observatório de Mortes e Violências contra LBGTI+ registrou 273 mortes violentas envolvendo essa população, em 2022. O número representa uma pessoa LGBTI+ assassinada a cada 32 horas, no Brasil.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, uma mulher foi morta a cada seis horas no país, num total de 1.437 vítimas de feminicídio.

Estudo do Unicef, divulgado em maio de 2022, identificou 35 mil mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes no Brasil, entre 2016 e 2020.

Levantamento do Observatório Polos de Cidadania da UFMG mostra que a população de rua era de 220 mil pessoas no país, em junho passado.

Os números acima poderiam ser os de uma guerra. Não são porque apenas um dos lados está armado. O lado da violência estatal e paraestatal (milícias). Mas também o da criminalidade, que mantém embaixo a violência que deveria ser dirigida para cima.

Boa parte da esquerda não sabe como responder a essa situação, a não ser com argumentos retóricos ou defendendo uma democracia que não funciona para a grande maioria.

Ítalo Calvino disse certa vez que é preciso “reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno”. Já seria um primeiro passo. E um bom exemplo é o Padre Júlio Lancellotti. Sua luta tem como alvo mais os efeitos que as causas da pobreza e da violência de classe. Mas é uma clareira no meio do inferno que precisa ser defendida e ampliada.

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11 de setembro de 2023

Inteligência artificial e planejamento socialista

Reportagem do Globo publicada em 10/09/2023 anuncia que “Empresas já usam inteligência artificial para prever descontos e efeitos climáticos”.

Segundo a matéria, empresas dos mais variados setores vêm empregando algoritmos e aprendizado de máquina para tentar prever desde fenômenos climáticos ao comportamento dos preços de matérias-primas.

A C&A, por exemplo, com um portfólio de 90 mil itens, usa Inteligência Artificial para definir “o melhor mix de produtos para cada uma de suas 330 lojas”.

A Nestlé captura informações para prever os movimentos futuros da cadeia do leite e sua rede de abastecimento em “uma arquitetura de dados com mais de seis milhões de combinações diárias”.

As ferramentas da Gerdau conseguem “avisar” com antecedência o melhor dia para a empresa fazer compras e aproveitar as melhores oportunidades.

Já a Vale desenvolveu modelos computacionais capazes de prever níveis perigosos de precipitação, e, em caso de tempestade, “retirar os empregados do local de trabalho antecipadamente”. Quanto às populações do entorno, nenhuma palavra.

A reportagem não esclarece que tais ferramentas ultrassofisticadas devem eliminar empregos. Muito menos, mostram que elas só existem por causa da enorme base de dados fornecidos gratuitamente por milhões de consumidores e do sequestro dos saberes e habilidades dos trabalhadores das áreas envolvidas.

São dados públicos apropriados por uma dúzia de monopólios. Deveriam estar alimentando um amplo e ágil sistema de planejamento estatal. Um sistema capaz de equilibrar a economia, distribuir recursos de modo socialmente mais justo e evitar impactos ambientais e humanos desastrosos.

É uma força produtiva que poderia fazer maravilhas em uma sociedade socialista, mas está submetida às destrutivas e injustas relações de produção capitalistas.

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7 de setembro de 2023

Seremos capazes de ouvir as baleias?

A inspiração é a chave. Se pudéssemos comunicar com os animais, fazer-lhes perguntas e receber respostas – por mais simples que essas perguntas e respostas possam revelar-se – o mundo poderá em breve ser motivado o suficiente a, pelo menos, iniciar um processo capaz de deter a destruição descontrolada da vida.

As palavras acima são do biólogo estadunidense Roger Payne e aparecem na reportagem “Can We Talk to Whales?” (“Seremos capazes de conversar com baleias?”), recentemente publicada na revista New Yorker. Payne trabalha na Iniciativa de Tradução de Cetáceos, criado em 2017. A sigla do projeto em inglês é “Ceti”, lembrando propositalmente “Seti” (Search for Extraterrestrial Intelligence), cuja tradução é “Busca por Inteligência Extraterrestre” e está em operação desde os anos 1980.

Mas enquanto o Seti procura inteligência nas estrelas, o Ceti volta seus esforços para gravar a linguagem usada pelas baleias cachalotes. As gravações estão sendo feitas na ilha caribenha da Dominfica. Com caráter interdisciplinar, a iniciativa inclui biólogos e linguistas, mas também pesquisadores de inteligência artificial (IA), robótica e computação.

Pois é, não se trata de entrar em contato com possíveis civilizações alienígenas como nas obras de ficção científica, mas robôs e cérebros eletrônicos também estão envolvidos.

Os robôs são, principalmente, para capturar os sons nas enormes profundidades a que chegam as baleias. A inteligência artificial, para dar conta das milhares de combinações possíveis na enorme massa de áudios já captados.

Agora, é torcer para que das profundezas oceânicas nos cheguem bons conselhos sobre como poderemos escapar das catastróficas confusões ambientais que estamos provocando. Isso se não fizermos ouvidos moucos, claro.

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5 de setembro de 2023

Sobre bobagens e ciência zumbi

Pílula rápida.

A luta contra o fascismo não foi nem é uma luta contra forças obscurantistas, um termo mais apropriado aos debates teológicos do que às análises políticas. Analiticamente “obscurantismo” não diz nada, até porque, se me permitem, sempre se é o “obscurantista” de alguém. O que não poderia ser diferente, já que o conceito de racionalidade é um conceito histórico e em disputa, a ciência não é um espelho da natureza, e não há nada de “relativista” nessa posição. Não sendo uma luta contra o “obscurantismo”, nossa guerra contra o fascismo é uma luta política (...) contra uma junção devastadora de ultraliberalismo econômico, indiferença social, violência estatal e organização da sociedade a partir da generalização da lógica de milícias.

O trecho acima está em artigo publicado por Vladimir Safatle, em 29/08/2023. É mais um na polêmica envolvendo o livro “Que bobagem!”, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi.

“Vocês já pararam para pensar quanto do que se produz na Ciência é tão ruim que deveria ir direto para a lata de lixo?”, pergunta Bruno Gualano em artigo publicado em 04/09/2023. Segundo ele, uma recente edição da prestigiada revista “Nature” divulgou levantamento revelando que um em cada quatro ensaios clínicos contém indícios de falha ou fraude. Outro levantamento foi feito pela publicação científica “Anaesthesia”, abarcando mais de 500 estudos. Desse total, 44% apresentavam um ou mais equívocos. Mais de 1/4 continha erros tão esdrúxulos que o editor da revista os apelidou de “estudos de zumbis”.

Este último texto não faz referência ao livro de Pasternak, mas também vale a leitura. Ambos ajudam a combater as verdadeiras bobagens.

Leia também: Como combater as fake news: a ciência segundo o Nobel

4 de setembro de 2023

Um palavrão com a letra C

“Quando certas palavras são eliminadas do discurso público, certos pensamentos também o são”, diz Michael Parenti no livro “Os camisas negras e a esquerda radical”.

É o caso de “classe”, exemplifica ele. Um vocábulo que, geralmente, é rejeitado porque expressaria uma noção marxista ultrapassada, sem relevância para a sociedade contemporânea. É curto, tem seis letras. Mas é tratado como um palavrão.

A partir disso, ficou fácil descartar outros conceitos politicamente inaceitáveis, como privilégio de classe, poder de classe, exploração de classe, interesse de classe e luta de classes. É a negação classista do conceito de classe.

A palavra iniciada com C também é um tabu quando aplicada aos milhões que fazem o trabalho da sociedade por salários geralmente mesquinhos, a “classe trabalhadora”.

A palavra iniciada com C é um termo aceitável apenas quando seguida do adjetivo tranquilizador “média”.

Ao incluir quase todos, a “classe média” funciona como um conceito convenientemente amorfo que mascara a exploração e a desigualdade das relações sociais. É um rótulo de classe que nega a realidade do poder de classe.

Essas são, sem dúvida, ótimas e oportunas observações do historiador e economista estadunidense.

Faltou apenas falar de duas palavras. A primeira é a palavra iniciada com F: fascismo. A segunda começa com B: burguesia. Nessa sopa indigesta de letras, muitas vezes é omitido que a segunda faz uso do primeiro sempre que lhe é conveniente.

Principalmente, quando tudo isso fica escondido sob o vocábulo “antifascismo”, que, isolado, costuma ser utilizado para esconder nexos causais comprometedores para as classes dominantes.

Antifascismo, mesmo, só acompanhado de outra palavra iniciada por A: anticapitalista!

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1 de setembro de 2023

Marco temporal: atualizando o apocalipse indígena

Grande parte do registro arqueológico da contemporaneidade é constituída por ruínas. Nenhum outro período da história produziu tantas delas, tão diferentes e tão rapidamente, afirma Alfredo González-Ruibal em seu livro “Uma arqueologia da era contemporânea”.

Mas é melhor entender “ruína” como um verbo, em vez de um substantivo, porque trata-se de um processo, não de um estado, diz ele.

Os habitantes urbanos ocidentais costumam imaginar o apocalipse como cidades desertas, mas para muitas comunidades indígenas e camponesas em todo o mundo o apocalipse são as metrópoles lotadas. Apocalipse para essas populações é a destruição do mundo delas pelo nosso.

Eric Hobsbawm, lembra o arqueólogo, afirmou que, da perspectiva de um futuro historiador, as guerras mundiais pareceriam um acontecimento relativamente menor no século 20. O que os estudiosos de amanhã verão com mais clareza é o desaparecimento das sociedades agrárias que predominaram nos últimos oito mil anos. Os arqueólogos não precisam esperar pelo futuro. Podem compreender no presente as consequências desta interrupção fatal de sociedades que anteriormente foram extremamente resistentes.

Da China ao Peru, sistemas sociais foram dizimados pelas multinacionais do agronegócio, pelo êxodo urbano e pela modernização predatória do campo. A modernidade colonial e pós-colonial fraturou uma paisagem em padrões de povoamento que permaneceram pouco alterados durante muitos séculos.

Todo um sistema desmoronou em apenas algumas décadas: casas, arados, caminhos, celeiros, palheiros, moinhos d’água, capelas, curtumes, cercas e todos os outros elementos imagináveis que sustentavam as paisagens rurais tradicionais desapareceram num piscar de olhos, conclui.

Seguindo esse raciocínio, podemos dizer que a imposição do marco temporal é mais uma tentativa de atualizar o apocalipse indígena.

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