Doses maiores

20 de maio de 2021

A Comuna de Paris como dobra espacial

A Comuna abriu uma espécie de fenda no tempo histórico, diz Kristin Ross, em seu livro “Luxo Comunal: o imaginário político da Comuna de Paris”. Marx estava atento a isso, mas também a importantes implicações espaciais.

Para ele, o efeito mais importante e imediato dos diferentes modos de organização da vida social e econômica propostos pela Comuna foi dar maior visibilidade à existência de sociedades não capitalistas fora da Europa.

Na comuna camponesa russa, ele vê traços do "comunismo primitivo" que observara na Comuna de Paris: “indivíduos que se comportam não como trabalhadores, mas como membros de uma comunidade. Comunidade que também trabalha”.

Mas tanto num caso como no outro, Marx considerou sua primeira fraqueza o isolamento.

As comunas podem se constituir como núcleos autônomos, mas, afirma a autora, sua sobrevivência depende de mediações relacionais. Aqui, bem antes de Gramsci e Mariátegui, e numa perspectiva bastante semelhante à que cada um deles desenvolveria 40 anos depois, Marx coloca a necessidade de uma aliança entre camponeses e operários, mas em escala mundial.

Para Marx, diz Kristin, a Comuna de Paris deu origem a um aprendizado prático no desenvolvimento de relações entre a cidade e o campo francês, depois entre o campo e o mundo além da Europa.

A realidade vivida no campo russo poderia doravante ser percebida em sua especificidade. Não como um território atrasado, segundo um modelo evolucionário, mas em meio à estreita interdependência global das transformações sociais: a cidade e o campo na escala do mundo.

Segundo Marx, a Comuna foi um assalto ao céu. Com direito a saltos temporais e dobras espaciais.

PS: As pílulas vão sofrer um lapso temporal de algumas semanas.

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19 de maio de 2021

A Comuna de Paris como cápsula do tempo

Em 1871, ano da Comuna, Pyotr Kropotkin já havia abandonado sua origem aristocrática para militar pelo anarquismo. Mas como secretário da Sociedade Geográfica Imperial de São Petersburgo, estava em missão de reconhecimento na Finlândia. Na mesma época, o marxista William Morris viajava pelo interior da Islândia.

O que a Finlândia ensinou a Kropotkin foi muito semelhante ao que a Islândia mostrou a Morris: apesar da grande pobreza, finlandeses e islandeses levavam uma vida simples, baseada na ausência de hábitos fúteis. Praticavam uma forma de luxo comunitário, arrisca-se a dizer Kristin Ross, em seu livro “Luxo Comunal: o imaginário político da Comuna de Paris”.

Os anos passados em meio às extensões geladas da Sibéria podem ter permitido a Kropotkin ver na Comuna de Paris o que se tornaria, para ele, um exemplo do esforço cooperativo sob condições extremamente duras.

Para Morris, a Islândia foi uma espécie de cápsula do tempo, em que os vestígios de um antigo modo de vida comunitário e democrático ainda podiam ser detectados na autogestão e no ritmo diário de suas relações sociais.

Tais povos estavam ligados, como em outras sociedades pré-capitalistas, por afinidades, proximidades ou mesmo ódio e hostilidade, mas de forma alguma por dinheiro.

Para ambos os viajantes, essas experiências, diz a autora, sublinhavam ou coroavam, de alguma forma, os efeitos da extraordinária notícia do que acabara de acontecer em Paris.

A Comuna abriu uma espécie de fenda no tempo, que permitia enxergar um passado comunitário acontecendo no presente de uma grande cidade europeia. Comunistas do mundo todo deram uma espiada e viram o futuro. Incluindo, claro, Marx e Engels.

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18 de maio de 2021

A Comuna de Paris e Joãosinho Trinta

Continuamos a falar do “luxo comunal”, expressão destacada por Kristin Ross em seu livro sobre a Comuna de Paris. O conceito surgiu no manifesto da Federação dos Artistas de Paris, de abril de 1871.

A ideia era que a beleza desabrochasse nos espaços públicos e não apenas em lugares privados e vigiados. Que a arte se integrasse plenamente à vida cotidiana, ao invés de permanecer escondida em palacetes.

A arte precisava ser vivida - não supérflua ou fútil, mas vital e indispensável para a comunidade. Criada ao nível dos municípios autônomos, contra a organização centralizadora do espaço monumental. Mas jamais restrita aos limites locais. O manifesto falava em partir do luxo municipal rumo à República Universal.

Se nos livrássemos dos enormes custos do desperdício que financia o sistema de classes atual, argumentavam os comunardos, acabaríamos com a superprodução de pobreza e também com todas as dicotomias entre o prático e o belo, o utilitário e o poético, entre o que descartar e o que conservar. O luxo insano da sociedade atual não pode existir sem alguma forma de escravidão. Por isso, deve ser substituído pela igualdade em abundância.

Encontrar critérios de riqueza diferentes dos que impulsionam a corrida quantitativa por crescimento e superprodução era uma forma de imaginar e realizar a transformação social. Uma concepção que desmentia as imagens de pobreza da vida parisiense sob a Comuna, propagadas por seus inimigos.

O "luxo comunitário" negava a ideia da pobreza compartilhada. Oferecia um mundo absolutamente diferente: um mundo onde todos tivessem sua parte do melhor.

Ou como diria um famoso carnavalesco, “quem gosta de miséria é intelectual”.

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17 de maio de 2021

Paris nunca foi tão luxuosa como durante a Comuna

“Embora eu faça sapatos, tenho direito a tanto respeito quanto aqueles que acreditam trabalhar segurando uma pena”. Essas palavras são de Napoleão Gaillard e estão no livro “Luxo Comunal: o imaginário político da Comuna de Paris”, de Kristin Ross. Elas servem para mostrar uma das mais radicais inovações trazidas pela Comuna de Paris.

Segundo Kristin:

Ser reconhecido como artista ou como alguém que efetivamente "assina" sua criação é o que o sapateiro Napoleão Gaillard, que dirigia a construção das barricadas sob a Comuna, parecia ter em mente quando teve sua fotografia tirada à frente da barricada que desenhou na Place de la Concorde, apropriando-se do estatuto de autor ou artista.

 Antes da Comuna, diz ela:

O mundo estava dividido entre aqueles que podiam e aqueles que não podiam se dar ao luxo de brincar com palavras ou imagens. Superada esta divisão, como demonstra a expressão “luxo comunal”, o que conta mais do que todas as imagens expressas, as leis promulgadas ou as instituições estabelecidas, são as capacidades postas em prática, em movimento.

Era essa concepção que estava por trás da criação da Federação de Artistas de Paris. Sua proposta era subverter a relação hierárquica entre arte e indústria. Seu programa, a arte livre de toda tutela governamental e de privilégios ligados ao status social.

A Federação defendia uma união onde a dignidade de cada artista é protegida pela dignidade de todos os outros. Artistas "proletarizados" ao lado de artesãos orgulhosos de suas técnicas centenárias. Todos se tornando os novos trabalhadores das ocupações envolvendo o fazer artístico.

Se isso não é um luxo, nada mais é!

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15 de maio de 2021

Aprendendo com as escolas da Comuna

“Luxo comunal”. Essa expressão utilizada no título do livro de Kristin Ross sobre a Comuna de Paris foi inspirada no Manifesto da Federação dos Artistas, publicado em abril de 1871. Este documento defendia a implementação de uma série de medidas revolucionárias em educação, artes e ciência.

Para começar, defendia uma educação “politécnica” ou “integral”, na qual é superada a divisão entre mãos e cabeça. Uma concepção pedagógica que buscava a criação de escolas onde meninas e meninos aprendem a ganhar a vida com seu trabalho, mas também se formam intelectualmente.

Durante o curto período de existência da Comuna, a educação tornou-se pública, gratuita, obrigatória e secular para todas as crianças, independente do sexo. Foram fechadas todas as escolas confessionais. Removidos crucifixos e imagens religiosas das instituições de ensino.

Também foi criada uma escola profissional de arte industrial para meninas. Nela, se ensinava desenho, escultura em madeira, argila e marfim, assim como cursos de aplicação do desenho e da arte à indústria.

As bibliotecas públicas foram reorganizadas para permitir amplo acesso à “plebe”. Professores do sexo masculino e feminino passaram a receber igual remuneração. O trabalho prático e a educação física alternavam-se com o estudo de teorias científicas e artes industriais.

Ou seja, diz Kristin, para os comunardos, aquele que maneja uma ferramenta também deve ser capaz de escrever um livro. O artesão deve relaxar de seu trabalho diário cultivando as artes, letras ou ciências, sem deixar de ser um produtor. Produzir não só pelos braços, mas também pela inteligência.

Na próxima pílula, o sapateiro que construía barricadas como se fossem obras de arte.

Leia também: Elisabeth Demetrioff nas barricadas da Comuna

13 de maio de 2021

Elisabeth Demetrioff nas barricadas da Comuna

Continuamos acompanhando a trajetória de Elisabeth Demetrioff, seguindo os relatos do livro “Luxo Comunal: o imaginário político da Comuna de Paris”, de Kristin Ross.

Em 11/04/1871, a jovem militante russa ajudava a fundar a União das Mulheres em Defesa de Paris e Socorro aos Feridos. A maior e mais eficaz das organizações da Comuna, criou comitês que se reuniam diariamente em quase todos os distritos parisienses. Participavam dela uma grande variedade de trabalhadoras, mas a maioria vinha das tecelagens.

O objetivo da União era uma reorganização completa do trabalho feminino, pondo fim à desigualdade econômica com base no gênero. Como o próprio nome indica, suas integrantes respondiam tanto pela assistência aos caídos em combate, como pela construção de barricadas, onde também empunhavam armas.

A União não estava interessada em demandas parlamentares. Para elas, a participação na vida pública nada tinha a ver com o direito ao voto. Preocupava-as muito mais encontrar trabalho remunerado para as mulheres. Criar cooperativas destinadas a se desenvolver para além das muralhas da cidade. Entrar em contato com associações semelhantes na França e no exterior, para facilitar a troca de produtos.

Era a comuna russa que Elisabeth conhecia tão bem sendo criada em uma grande capital europeia. Seus princípios coletivos e solidários vieram do passado nacional eslavo. Mas na urbanizada Paris, poderiam tornar-se internacionalistas, cultivados no laboratório comunitário da Comuna, ao mesmo tempo em que serviam para dissolver a burocracia estatal.

À frente disso tudo, Elisabeth Demetrioff e suas companheiras. Transformando algumas belas ideias em atos libertadores para as grandes maiorias exploradas e oprimidas.

Leia também: Elisabeth Demetrioff desafia as certezas de Marx

12 de maio de 2021

Elisabeth Demetrioff desafia as certezas de Marx

Na última pílula, falávamos sobre o romance “O que fazer?”, escrito pelo socialista russo Nikolaï Tchernyshevski.

Segundo Kristin Ross, em seu livro “Luxo Comunal: o imaginário político da Comuna de Paris”, o romance relata como a jovem Vera Pavlovna busca transformar a sociedade por meio do trabalho cooperativo. Por exemplo, ao ajudar costureiras a fundar uma cooperativa não só de produção, mas também de consumo, demonstrando que a ação solidária entre trabalhadores pode englobar todos os aspectos do cotidiano.

“O que fazer?” espalhou-se pela Rússia como um rastilho de pólvora. Sua mensagem, diz Kristin, afirmava que são as ações que dão origem aos sonhos, e não o contrário. E foi a leitura desse livro que levou a jovem Elisabeth Demetrioff a participar do movimento populista russo, do qual Tchernyshevski era um dos líderes.

Simpáticos às ideias marxistas, os populistas russos acreditavam que a teoria de Marx não era incompatível com a gestão coletiva das comunas camponesas russas. Com isso em mente, em 1869, Elisabeth foi a Genebra para conversar com Marx e entregar-lhe alguns escritos de Tchernyshevski.

Para Marx, o encontro com Elisabeth teve efeitos consideráveis, pois o levou a começar a pensar na possibilidade de uma pluralidade de caminhos para o socialismo. Uma inflexão teórica que se completará alguns anos depois, em sua correspondência com outra jovem militante russa, Vera Zasulich.

Mas Elisabeth não tinha preocupações apenas teóricas. Durante a Comuna, criou a União das Mulheres em Defesa de Paris e Socorro aos Feridos. Uma iniciativa que tentava colocar em prática a convergência teórica entre Marx e Tchernyshevski.

Falaremos dessa rica experiência na próxima pílula.

Leia também: Elisabeth Demetrioff, guerreira da Comuna

11 de maio de 2021

Elisabeth Demetrioff, guerreira da Comuna

Na última pílula, ficamos sabendo que a Comuna de Paris representou uma ruptura com aspectos conservadores da Revolução Francesa de 1789. Pelo menos, é assim que relata Kristin Ross em seu livro “Luxo Comunal: o imaginário político da Comuna de Paris”. E para ilustrar isso, ela cita três atos importantes:

...a queima da guilhotina na praça Voltaire, em 10 de abril; a destruição, em 16 de maio, da coluna Vendôme, construída para glória das conquistas imperiais napoleônicas; e a criação, em 11 de abril, da Associação das Mulheres.

Quando um grupo formado em sua maioria por mulheres arrastou uma guilhotina para baixo da estátua de Voltaire e a incendiou, foi, muito provavelmente, uma forma de mostrar que não podia haver qualquer identidade entre revolução e cadafalso. A destruição da coluna Vendôme representou (...) um ato de protesto contra as guerras entre os povos e em defesa da fraternidade internacional.

Uma das fundadoras da Associação das Mulheres era Elisabeth Demetrioff, militante russa de 20 anos de idade.

Mas antes de chegar a Paris, Elisabeth esteve em Genebra, onde se encontrou com Marx. Sua missão era tentar criar uma convergência teórica entre as concepções marxistas e a crença de Nikolaï Tchernyshevski no potencial emancipatório da comuna camponesa tradicional.

Foi um romance escrito por Tchernyshevski que despertou Elisabeth, ainda adolescente, para a militância revolucionária. Trata-se de “O que fazer?”, cujo título Lênin pegaria emprestado para batizar seu famoso livro teórico, décadas depois.

Na próxima pílula, mais sobre essa jovem cuja atuação militante equivale a um fio vermelho a ligar os principais acontecimentos e nomes da esquerda revolucionária da época.

Leia também: O internacionalismo revolucionário da Comuna de Paris

10 de maio de 2021

O internacionalismo revolucionário da Comuna de Paris

Kristin Ross inicia seu livro “Luxo Comunal: o imaginário político da Comuna de Paris” destacando o caráter fortemente internacionalista do mais importante evento da história do proletariado até a Revolução Russa. Segundo ela:

Sob a Comuna, Paris não queria ser a capital da França, mas uma coletividade autônoma dentro de uma federação universal de povos. Não queria ser um estado, mas um dos elementos, uma das entidades, de uma federação de municípios que deveria se desenvolver à escala internacional.

É por isso que no dia seguinte a sua proclamação, todos os estrangeiros se tornaram cidadãos da Comuna. Um de seus principais líderes foi Elisée Reclus. Segundo ele:

Não basta emancipar cada nação em particular da tutela dos reis, é preciso também libertar-se da supremacia das outras nações, é necessário abolir os limites, as fronteiras que transformam em inimigos homens semelhantes (...). Nosso grito de guerra não é mais: Viva a República! (...) Nosso grito é: Viva a República Universal!

República Universal. Era assim que as dezenas de comitês, clubes e associações populares responsáveis pelo levante plebeu que tomou Paris concebiam o poder que estavam instaurando.

Com isso, os “comunardos” marcavam sua ruptura com a Revolução Francesa de 1789, cujo legado foi distorcido de forma oportunista pela burguesia para assumir um caráter predominantemente nacional e patriótico.

E coerente com essa vocação internacionalista e operária, afirma Kristin, a Comuna também combatia a dominação colonial. A ponto de um orador despertar ampla aprovação em uma plenária, ao afirmar: “A África jamais florescerá se não quando governar a si mesma”.

A Comuna começou em Paris, mas queria emancipar o mundo.

Leia também: Os 72 dias que abalaram o mundo

7 de maio de 2021

Os 72 dias que abalaram o mundo

Dizem que Lênin teria dançado na neve, em frente ao Palácio de Inverno, quando a Revolução Russa completou 73 dias. Ele estaria comemorando o fato de que o poder dos sovietes resistira mais tempo que os 72 dias da Comuna de Paris.

Verdadeiro ou não, o relato mostra como até aquele momento, o maior acontecimento para os comunistas do mundo todo foi a façanha realizada pelo povo parisiense entre 18 de março e 28 de maio de 1871.

Foram poucos mais de dois meses em um espaço geográfico relativamente pequeno. Mas além de ocorrer em uma das cidades mais importantes do mundo, a Comuna foi atravessada por processos radicais: participação popular, desafio a preconceitos e hierarquias, combate ao clero obscurantista, à xenofobia e ao machismo, tendo sido palco, inclusive, de experimentos estéticos arrojados e ousadias no campo do imaginário.  

As cabeças brilhantes e veteranas de Karl Marx, Pyotr Kropotkin, William Morris, Elisée Reclus, Nikolaï Tchernychevski voltaram-se para o que ocorria em Paris como adolescentes maravilhados diante de novos e espantosos acontecimentos.

A começar por um internacionalismo radical, que afirmava que aquilo que se estava instaurando em Paris era uma República Universal, na qual não cabia o culto a bandeiras e heróis nacionais. Ali estavam no controle de suas vidas, cidadãos e cidadãs, camaradas solidários em busca da “regeneração da humanidade”, não de pátrias ou impérios.

Tudo isso e muito mais estão no belo livro “Luxo comunal: o imaginário político da Comuna de Paris”, de Kristin Ross, professora da Universidade de Nova York. A obra foi lançada recentemente no Brasil e será tema das próximas pílulas.

Leia também: As guerreiras da Comuna de Paris

6 de maio de 2021

Entregadores na luta pela expropriação das plataformas capitalistas

Chegamos ao final das pílulas sobre o livro “Riding for Deliveroo”, de Callum Cant”. Em seu capítulo conclusivo, o autor cita reflexões de Raniero Panzieri sobre o papel da tecnologia no capitalismo.

Segundo esse teórico italiano do movimento autonomista, no capitalismo, as contradições ficam mais agudas nos ramos produtivos onde é esmagadora a preponderância do capital constante sobre o trabalho vivo. É aí que o investimento em tecnologia escraviza a força de trabalho humana de modo mais claro.

Panzieri estava se referindo à fabricação de automóveis, diz Cant, mas suas palavras se aplicam perfeitamente ao capitalismo de plataformas, como é o caso do Deliveroo e seu aplicativo de entrega de alimentos.

Em seu relato, Cant não quis mostrar apenas que mesmo os trabalhadores precários podem se auto-organizar. Mas que há três possíveis desdobramentos em sua luta.

Primeiro, novos desenvolvimentos tecnológicos nas plataformas para aumentar ainda mais a exploração e o desemprego no setor. Segundo, reformas superficiais, incapazes de atender as necessidades mínimas dos trabalhadores. Ou, terceiro, a expropriação das plataformas para colocá-las sob controle dos trabalhadores e a serviço da maioria da população.

Mas para chegarmos a esse último objetivo, o único aceitável, é fundamental que a luta dos trabalhadores do Deliveroo e de outras plataformas se tornem parte do movimento emancipatório da classe trabalhadora.

Na verdade, diz o autor, os trabalhadores estão se recompondo para formar um novo sujeito político. Mas um que continua a não ter nada a perder e um mundo a ganhar.

No Brasil, o livro de Callum Cant já está em pré-venda pela Editora Veneta. Merece que seja lido na íntegra.

Leia também: Algumas lições das lutas dos entregadores

5 de maio de 2021

Algumas lições das lutas dos entregadores

Estamos quase chegando ao final dos comentários sobre o livro “Riding for Deliveroo”, de Callum Cant”. Hora de olhar para o que os entregadores aprenderam com suas lutas em Brigthon e em outras cidades britânicas.

Cant acha que é necessária uma série de modificações para adequar a organização sindical ao contexto do capitalismo de plataformas digitais. A começar pela consulta direta aos trabalhadores.

Não há muito segredo. A ideia é periodicamente reunir vários trabalhadores e perguntar: “Com o quê vocês estão realmente chateados, quais são seus problemas reais?”. Não adianta chegar dizendo: “Vocês deveriam lutar por direitos trabalhistas”, porque a resposta costuma ser: “Não estamos preocupados com isso no momento. O que realmente nos preocupa é ter que esperar muito tempo para retirar pedidos no McDonalds ou Burger King, ou ser constantemente humilhados pelos gerentes das lanchonetes”.

São as condições de trabalho do dia-a-dia que estão na vanguarda das lutas, diz o autor. É o concreto, não o abstrato. Além disso, a experiência das lutas na Deliveroo levou a uma organização em rede com três camadas.

Primeiro, a própria rede de entregadores, que se comunica por aplicativos de mensagens. Depois, vêm os entregadores militantes cuja função é agitar a força de trabalho, identificar e recrutar líderes orgânicos. Por fim, vêm os militantes ligados ao Sindicato dos Trabalhadores Autônomos, que agem como reforço sempre que necessário. Mas são voluntários, sem remuneração.

É assim que a organização de longo prazo parece estar substituindo a mobilização de curto prazo entre os entregadores no Reino Unido desde 2016, afirma Cant. Na luta, mas pela base e combatendo a burocratização.

Leia também: A luta contra o capitalismo de plataformas está só começando

4 de maio de 2021

A luta contra o capitalismo de plataformas está só começando

Como mostra o livro “Riding for Deliveroo”, de Callum Cant, as greves dos entregadores de aplicativos do Deliveroo, de Brigthon, foram as primeiras desse tipo naquela cidade.

As paralisações aconteceram em 2017, mas os pioneiros foram os entregadores de Londres. Eles cruzaram os braços, ou melhor, desativaram seus aplicativos, já em 2016. Na sequência, no mesmo ano, fizeram o mesmo trabalhadores de Turim, Marselha, Paris, Berlim, Barcelona, Valência, Madrid, Bordéus e Lyon.

Então veio a terceira onda, na mesma época da segunda greve de Brigthon. Ocorreram paralisações de entregadores de diversas plataformas em Amsterdam, Bruxelas, Bolonha, Turim e Berlim, todas em novembro de 2017.

Importante destacar a mobilização na China. Lá o equivalente do Deliveroo é a Meituan, capaz de entregar colossais 13 milhões de encomendas por dia. Seus entregadores foram responsáveis por 11% das greves no setor de serviços chinês durante o primeiro semestre de 2017.

Em 09/10/2018, foi a vez dos motoristas britânicos da Uber realizarem sua primeira greve nacional. Assembleias foram organizadas no lado de fora de três escritórios da empresa, em Londres, Birmingham e Nottingham. Pela quarta vez em um mês, escritórios da Uber eram alvo de manifestações desse tipo. Numa delas, motoristas de origem italiana começaram a cantar o famoso hino antifascista, “Bella Ciao”.

Enquanto isso, em 26/10/2018, representantes de entregadores de alimentos, organizados em 35 coletivos de 12 países, se reuniram em Bruxelas para formar a Federação Transnacional de Entregadores.

Ou seja, a luta parece estar só no começo. No Brasil, a primeira greve aconteceu apenas em julho de 2020. Mas, certamente, vem mais por aí.

Continua...

Leia também: Entregadores em greve: “Ou lutamos ou eles nos fodem”

3 de maio de 2021

Entregadores em greve: “Ou lutamos ou eles nos fodem”

Com os bons resultados organizativos da primeira greve dos entregadores do Deliveroo em Brighton, os controladores da plataforma começaram a reagir. Eles não podiam simplesmente desligar do aplicativo os principais responsáveis pelo movimento de paralisação.

Isso seria admitir uma relação de subordinação incompatível com o discurso de que os conflitos não passavam de ajustes entre parceiros. Mas logo ficou claro que os algoritmos estavam destinando mais entregas para os motociclistas que para os ciclistas.

Podia haver alguns motivos operacionais para isso. Maior rapidez nas entregas, por exemplo. Principalmente numa cidade montanhosa como Brighton. Por outro lado, o braço sindical que estava sendo construído era composto principalmente por ciclistas.

“Mas a caixa-preta dos algoritmos não nos permitia afirmar que se tratava de algo deliberado”, diz Callum Cant no livro “Riding for Deliveroo”, que descreve toda essa experiência de luta.

Muitas lideranças começaram a se desvincular do aplicativo. Os grupos de zap mais usados para a mobilização ficaram mudos. Parecia um fim triste e precoce.

Até que nova alteração no sistema de pagamento fez caírem as remunerações. E às 18h do dia 25/11/2017, começava uma segunda paralisação. O Deliveroo tentou manter o ritmo das entregas, mas o caos se instalou novamente.

Segundo Cant, essa segunda greve provou que a luta direta entre trabalhadores e patrões tem que continuar ou a situação piora. Sem a estabilidade de uma relação contratual, as condições de trabalho ficam em constante renegociação. Os patrões querem cada vez mais lucros, mas os trabalhadores precisam sobreviver.

“Temos que lutar ou eles nos fodem - não há outra opção”, conclui Cant.

Na próxima pílula, mais luta!

Leia também: Chegou a hora. Entregadores desativam seus aplicativos

1 de maio de 2021

Chegou a hora. Entregadores desativam seus aplicativos

Na última pílula sobre o livro “Riding for Deliveroo”, de Callum Cant, o boletim “Roo Rebelde” já estava circulando entre os entregadores do Deliveroo, em Brighton, Inglaterra.

A publicação ajudou a criar o clima necessário para uma paralisação. Ela aconteceu em 04/02/2017, quando mais de 100 trabalhadores se concentraram na principal praça de Brighton, com suas bicicletas e motos. Desativaram seus aplicativos e iniciaram uma assembleia. Os pedidos passaram a sofrer atrasos de até 3 horas e as vendas caíram mais de 50%.

A assembleia aprovou por unanimidade a criação de um braço sindical da categoria e três exigências: aumento de £5 por entrega; estabilidade nas contratações; e nenhuma perseguição aos organizadores da greve. O Deliveroo tinha duas semanas para responder. Depois da votação, os grevistas atravessaram Brighton em um comboio gigante.

Manifestações semelhantes voltaram a acontecer nos dias seguintes tanto lá, como em outras cidades. Trabalhadores e simpatizantes percorriam os restaurantes mais populares. A cada parada, um discurso do lado de fora, bloqueio temporário das ruas e uma delegação tentava conseguir apoio dos estabelecimentos para as exigências do movimento.

Solidariedade, mesmo, só a dos funcionários, raramente de gerentes e proprietários. De qualquer forma, foi o suficiente para exercer pressão sobre toda a cadeia de suprimentos e também sobre o Deliveroo. A plataforma passou a ter que responder as denúncias feitas pelos entregadores junto aos clientes.

No final, não houve ganhos econômicos, mas a vitória foi organizativa. O Sindicato dos Trabalhadores Autônomos reconheceu o movimento como um braço sindical em construção. Um ótimo começo.

Mas os patrões logo dariam o troco.

Veremos na próxima pílula.

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