Doses maiores

16 de novembro de 2018

No canto mais escuro do medo, uma luz

O capítulo “O Sobrado” inaugura a saga “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo. O ano é 1895, cidade de Santa Fé, finalzinho da guerra entre gaúchos republicanos e federalistas.

O primeiro personagem a aparecer é o tenente republicano José Lírio, o Liroca. Sua missão é manter o cerco a um sobrado em que federalistas se refugiam. Deve ocupar a torre da igreja voltada para o casarão e impedir a tiros o acesso ao poço que fica na praça em frente. O objetivo é matar de fome e sede os ocupantes do casarão.

O problema de Liroca é sua covardia. Para chegar à igreja, é preciso atravessar a praça, sob risco de ser alvejado pelos ocupantes do sobrado. “Donde lhe vinha tanto medo?”, pergunta-se Liroca. Paralisado, murmura para si mesmo: "Lírio é macho, Lírio é macho”. Palavras que sempre repetia quando ia entrar em combate.

Por fim, mais por vergonha que por coragem, em correria trôpega e desesperada, José Lírio acaba chegando a seu posto. Lá do alto, aguarda e vigia. De repente, alguém sai do sobrado e corre até o poço. Liroca aguarda que ele encha seus baldes e atira. Erra os disparos de propósito. Não tem coragem de privar os inimigos, principalmente as mulheres e crianças que estão com eles, de um pouco de água.

Se o pior acontecer, o medroso Liroca poderia nos servir de inspiração. É a coragem arrancada com muito sofrimento do canto mais escuro do medo. Dignidade suficiente apenas para vencer a covardia, mas o bastante para não se render a toda crueldade que a barbárie impõe.

Até dezembro!

14 de novembro de 2018

As incríveis contradições da “universidade com partido” chinesa

Nas últimas semanas, pelo menos 12 estudantes universitários em cinco cidades chinesas foram detidos pelo governo. Seu crime? Promover manifestações em favor de direitos dos trabalhadores, como liberdade de organização sindical e melhores condições de trabalho.

O curioso é que os acusados se reivindicam marxistas e foram inspirados pelas obras de Marx que estudam em sala de aula. O ensino do marxismo é obrigatório nas universidades chinesas. Uma espécie de “universidade com partido” oficializada.

Além disso, nas comemorações pelo 200º aniversário de Marx, o presidente Xi Jinping afirmou que o revolucionário alemão estava “totalmente correto”.

Tudo muito contraditório, sem dúvida. Mas nada que deveria surpreender em um país cujo regime político continua se afirmando comunista, ao mesmo tempo em que sua economia tornou-se fundamental para o equilíbrio do capitalismo mundial.

Além disso, há certa coerência no que disse Jinping. Muito do que aconteceu no capitalismo global nas últimas décadas dificilmente pode ser explicado sem auxílio da teoria econômica marxista. Não à toa, as obras de Marx voltaram às livrarias no mundo todo.

O problema é que Marx nunca foi apenas um teórico. Se não existe prática revolucionária sem teoria revolucionária, o oposto também é verdadeiro. E os estudantes entenderam isso muito bem. Para azar deles, mas também do governo chinês.

Tudo isso, porém, pode ser apenas uma advertência. No país que tem a maior classe operária de todos os tempos, é razoável a chance de que seus membros construam seu próprio marxismo. Na periferia das universidades, mas no centro da luta de classes.

Seria um desastre para o regime chinês. Uma esperança para a humanidade.

Leia também:
Nova crise mundial pode arrastar até a China

13 de novembro de 2018

Pequeno teste sobre mídias sociais

Pawel Kuczynski
Considere as seguintes afirmações sobre as mídias do mundo contemporâneo:

… distorceram lentamente nossos hábitos mentais e atrofiaram continuamente nossa capacidade e disposição de nos envolvermos uns com os outros como cidadãos responsáveis.

Sua ascensão e domínio na vida cotidiana de bilhões de pessoas a transformaram em um "meta-mídia", uma tecnologia que contém, estrutura, altera e continua muitas, se não todas, as formas de mídia anteriores.

Um instrumento que direciona não só o nosso conhecimento do mundo, mas as próprias formas de nosso conhecimento.

Funciona como um mito. Uma maneira de entender o mundo que não é problemático, não é totalmente consciente e que parece, em uma palavra, natural. Um mito é um modo de pensar tão profundamente enraizado em nossa consciência que é invisível.

As afirmativas acima correspondem a:

a) Televisão  (   )
b) WhatsApp  (   )
c) Facebook  (   )
d) Twitter  (   )
e) Todas as anteriores  (   )

Gabarito: trata-se de trechos adaptados do livro “Nos divertindo até morrer”, de Neil Postman. Como a obra é de 1985, a resposta lógica seria “a”.

Mas eles aparecem também no livro “Antisocial Media: How Facebook Disconnects Us and Undermines Democracy (Mídia antissocial: como o Facebook nos desconecta e enfraquece a democracia)”, de Siva Vaidhyanathan, historiador e pesquisador de mídia da Universidade da Virgínia. A publicação é de 2018 e ainda não tem tradução para o português.

Segundo esse autor, a resposta correta só poderia ser “c”. E, realmente, toda a argumentação do brilhante estudo de Vaidhyanathan mais que justifica a escolha.

Mas, cá entre nós, caberia recurso em defesa da alternativa “e”.

Leia também: Rir pra não pensar

Sobre a ascensão do fascismo na Itália de Mussolini

Trecho de outro artigo esclarecedor de Gilberto Calil sobre a ameaça fascista:

...a constituição do governo Mussolini não implicou de imediato a constituição de um regime fascista. Entre novembro de 1922 e junho de 1926, a Itália tinha um governo liderado por um fascista – tal como teremos no Brasil a partir de janeiro próximo – mas em uma condição de transição na qual subsistiam determinadas liberdades. Neste contexto, Gramsci ao longo de 1923 fundamentou a proposta de investir na articulação política entre o operariado do Norte com o campesinato do Sul como caminho para efetivar um processo revolucionário e derrotar o fascismo. Em abril de 1924, em eleições que se realizaram ainda com certas condições de liberdade, Gramsci foi eleito deputado e retornou à Itália para assumir seu mandato. Pouco depois de Gramsci ter assumido como deputado, o deputado socialista Giacomo Matteoti foi assassinado por fascistas logo após de ter proferido um discurso denunciando fraude eleitoral e agravamento da violência política. Gramsci então defendeu que a única alternativa de resistência seria a convocação imediata de uma greve geral, rompendo com o imobilismo legalista e confrontando abertamente o governo fascista. Sua posição não se impôs e a escalada repressiva seguiu seu curso, até que ao longo de 1926 completou-se a reconfiguração do regime italiano e, em novembro, Gramsci teve seu mandato cassado e sua prisão decretada. As estratégias de apaziguamento e conciliação, a crença em que as instituições do Estado seriam capazes de conter o fascismo ou que ele seria destruído pelos seus próprios erros, acabavam, enfim, por produzir o resultado tantas vezes antecipado por Gramsci.

Leia também: O povo dos macacos aguarda as ordens dos gorilas

12 de novembro de 2018

O povo dos macacos aguarda as ordens dos gorilas

O que é o fascismo, visto em escala internacional? É a tentativa de resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadoras e de tiros de pistola

O trecho acima é de Antônio Gramsci e foi escrito nos anos 1920. A citação aparece no artigo de Gilberto Calil, “Gramsci e o Fascismo: A posição da pequena burguesia”.

Depois de identificar o fascismo como um fenômeno internacional, o revolucionário italiano afirma que em todos os países seu principal elemento de apoio social é a pequena e média burguesia. E referindo-se à obra “O Livro da Selva”, de Rudyard Kipling, compara essa camada ao:

...povo dos macacos, que acredita ser superior a todos os outros povos da selva, que acredita possuir toda a inteligência, toda a intuição, todo o espírito revolucionário, toda a sabedoria de governo.

Tendo perdido importância social, diz Gramsci, esse extrato “busca de todos os modos conservar uma posição de iniciativa histórica: ela macaqueia a classe operária, também faz manifestações de rua”, às quais busca corromper com um antiparlamentarismo conservador.

Difícil não lembrar de nossa atual situação e seus desdobramentos políticos. Por isso, Calil conclui, acertadamente:

Até recentemente podíamos ressalvar que ainda não se evidenciava a constituição de uma base militante organizada nos moldes de tropa de choque e a escalada da violência que a caracteriza. Não é possível mais ter a mesma segurança, e, portanto, é urgente reconhecer o fenômeno do fascismo, os elementos que o particularizam e a exigência imediata de seu enfrentamento.

Afinal, de um lado, há o povo dos macacos, de outro, os gorilas de prontidão.

Leia também: Atualizando a República de Weimar

9 de novembro de 2018

Rir pra não pensar

Em coluna publicada em 12/02/2017 na revista Época, Helio Gurovitz escreveu que o mundo da “pós-verdade” e “da anestesia intelectual” das redes sociais lembra menos "1984", de George Orwell, do que “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley.

A ideia vem do livro “Nos divertindo até morrer”, escrito em 1985 pelo teórico da comunicação estadunidense Neil Postman:

Na visão de Huxley, não é necessário nenhum Grande Irmão para despojar a população de autonomia, maturidade ou história”, escreveu Postman. “Ela acabaria amando sua opressão, adorando as tecnologias que destroem sua capacidade de pensar. Orwell temia aqueles que proibiriam os livros. Huxley temia que não haveria motivo para proibir um livro, pois não haveria ninguém que quisesse lê-los. Orwell temia aqueles que nos privariam de informação. Huxley, aqueles que nos dariam tanta que seríamos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que a verdade fosse escondida de nós. Huxley, que fosse afogada num mar de irrelevância”.

(...)

"Orwell temia que nossa ruína seria causada pelo que odiamos. Huxley, pelo que amamos”, escreve Postman. Só precisa haver censura, diz ele, se os tiranos acreditam que o público sabe a diferença entre discurso sério e entretenimento.

(...)

O alvo de Postman, em seu tempo, era a televisão, que ele julgava ter imposto uma cultura fragmentada e superficial, incapaz de manter com a verdade a relação reflexiva e racional da palavra impressa. (...) Mas suas palavras foram prescientes: “O que afligia a população em Admirável mundo novo não é que estivessem rindo em vez de pensar, mas que não sabiam do que estavam rindo, nem que tinham parado de pensar”.


Leia também:
A perigosa era do domínio pelas mentiras

7 de novembro de 2018

A perigosa era do domínio pelas mentiras

Pawel Kuczynski
Uma eleição presidencial sem debate sobre programas de governo. Um vencedor cuja campanha baseou-se em um circuito de mentiras e distorções grosseiras que alcançava grandes parcelas da população, mas passou despercebido por muitas de suas principais vítimas. Em especial, forças de esquerda, movimentos sociais e meios acadêmicos.

A utilização eleitoral das redes virtuais em escala gigantesca para disseminar material fraudulento em doses curtas, grossas e que ocupam cada momento do dia. Declarações desencontradas, contraditórias, ditas e desditas de hora em hora. Durante a campanha, depois dela e no futuro sombrio que nos aguarda.

Uma estratégia eleitoral inspirada na tática vitoriosa de Donald Trump, que atraiu boa parte de seus votos por meio da desinformação mais grosseira. Algo que só poderia ter ocorrido pela primeira vez e com tais proporções no centro do imperialismo mundial, onde o domínio do valor de troca sobre o valor de uso é o mais extremado. Onde a circulação da informação definitivamente se rendeu à lógica da mercadoria e passou a valer por seu alcance e não por critérios como objetividade e precisão. Pelas curtidas que atrai e não pelos fatos que relata.

Tudo isso faz parte do que vem sendo chamado de era da pós-verdade. Mas, concretamente, não passa daquilo que os poderosos de todos os tempos sempre utilizaram amplamente para dominar e subjugar: mentiras, calúnias, misticismo e preconceito. A grande diferença é que tudo isso vem impregnando o tecido social de maneira inédita, normalizado por uma economia política em que a circulação especulativa de capital contagia as relações humanas de maneira avassaladora e muito perigosa.

Muito perigosa...

Leia também:

6 de novembro de 2018

A real sobre o “Plano Real” de Sérgio Moro

Nomeado Ministro da Justiça do próximo governo, Sérgio Moro diz que pretende colocar em prática um “Plano Real contra a corrupção”.

A comparação nos obriga a lembrar que o Plano Real representou muito mais do que o fim da inflação descontrolada. Seu objetivo maior era retirar do terreno sindical a luta em torno da repartição dos lucros entre trabalhadores e patrões. Com inflação baixa, as frequentes greves por melhores salários escassearam.

Era a primeira fase de um processo de afastamento das lutas e conflitos para longe dos locais de trabalho e das ruas. Greves e manifestações foram sendo substituídas por eleições periódicas e lobbies parlamentares. A disputa seria travada agora na arena eleitoral, procurando eleger governos que promovessem políticas redistributivas.

Foi o que se buscou fazer com a eleição e reeleição dos governos petistas. Mas, aí, já estávamos na fase da austeridade econômica, que amarrou os governos ao respeito absoluto ao orçamento fiscal, mesmo que isso custasse enormes cortes nas verbas dos serviços públicos mais essenciais.

Mas voltando ao Plano Real, na real, ele representou uma renovação da inserção subordinada da economia nacional no sistema imperialista mundial. Já o “Plano Real” de Sérgio Moro, na real, seria uma renovação do presidencialismo de coalizão.

Despido de sua toga, Moro deve travar um combate à corrupção ainda mais seletivo e partidário. Sua missão seria ajudar a aprovar as medidas ultraliberais do futuro governo, menos por meio de negociatas fisiológicas do que por chantagens envolvendo denúncias não necessariamente verdadeiras contra parlamentares rebeldes.

Já aos movimentos sociais e organizações de esquerda, estão reservados o Código Penal e a legislação antiterrorista.

 
Leia também: 
Na pós-democracia, a política comandada pela economia
Lula dentro da armadilha

5 de novembro de 2018

O fim da imprensa e da internete

“Não ignore as mudanças do Brasil de Bolsonaro”, adverte Leandro Demori em artigo publicado no Intercept Brasil, em 28/10/2018.

Dois trechos se destacam. O primeiro fala em “fim da internet”:

Todo o caos fértil que a rede nos pareceu em meados dos anos 90 e depois, toda aquela libertação dos meios tradicionais nos anos 2000, se transformou em um engenho de algoritmos no qual nós somos os animais a empurrar a roda. Animais que votam com a cabeça entupida de desinformação.

O segundo é sobre uma imprensa moribunda:

É preciso também falar sobre a insistência da imprensa em conversar só com a elite intelectual. Sobre o linguajar complicado, a profusão de jargões, as matérias escritas para serem elogiadas pelos colegas jornalistas, para terem lugar cativo nas newsletter de iniciados, e para serem ignoradas pela população em geral. Esse sistema perdeu, foi humilhado por memes e notícias falsas. A separação antiga entre “jornalismo e opinião” – como se não pudesse haver “jornalismo” mentiroso e “opinião” informativa e embasada – perdeu o sentido. Porque não importa o que nós, jornalistas, achamos sobre esses velhos cânones, o que importa é a percepção das pessoas.

Segundo ele, não “é mais possível construir uma manchete em que Bolsonaro acusa o PT de fraude nas urnas sem dizer que ele não tem provas”.

E conclui: “O jornalismo precisa parar de fingir que não é parte do jogo e que existe só para ‘reportar os fatos’”.

Se Demori espera ser ouvido pela grande mídia, jamais conseguirá. Mas suas advertências são perfeitas para a imprensa de esquerda. Este setor que também precisa ser salvo do falecimento.

1 de novembro de 2018

Desesperadamente otimistas

“Desesperadamente otimista”, foi assim que Christine Lagarde, diretora-gerente do FMI, declarou estar se sentindo quanto ao futuro próximo da economia mundial.

Foi na reunião anual entre Banco Mundial e FMI, ocorrida de 9 a 14/10/2018, na Indonésia. Provavelmente, ela quis dizer que precisa estar otimista ou terá que admitir que é grande a possibilidade de uma nova catástrofe econômica para breve.

Entre as maiores preocupações, um nível de endividamento jamais visto desde a Segunda Guerra, a guerra comercial entre Estados Unidos e China e as “fintechs”. Estas últimas são a mais recente invenção infernal do capital.

As fintechs são instituições financeiras de alta tecnologia, que fogem às regulamentações do setor. Por isso, até recentemente, eram chamadas de “bancos das sombras”.

Ganharam status de “novas tecnologias”, mas continuam perigosas. Talvez, um novo tipo de subprime, que, tal como as fintechs, surgiu com o pretexto de facilitar crédito aos mais pobres.

Enquanto isso, no Brasil, não poderíamos estar em pior situação para enfrentar um novo surto da crise que começou em 2008. O governo eleito prometeu coisas contraditórias a públicos diferentes.

Se apresenta tanto como protetor da soberania nacional, como ultraliberal, disposto a escancarar a economia aos investimentos estrangeiros.

Afirma que não quer vender o país para a China, mas ataca o Mercosul, cujo enfraquecimento poderia deixar terreno livre para o capital chinês.

Para não falar na disposição de lidar com crises sociais decorrentes de uma nova recessão mundial na base da repressão mais brutal.

Enfim, tal como a diretora do FMI, também estamos desesperadamente otimistas, mas nosso otimismo depende demais de nossa vontade. Que ela seja poderosa.

Leia também: Lutar. Sempre!