Doses maiores

30 de setembro de 2021

O genocídio indígena, precursor do terror nazista

O chefe indígena brasileiro Nailton Pataxó, ao relatar sua visita a um campo de concentração nazista na Alemanha em 2000, fez a seguinte reflexão:

Quando vocês falam que foram mortos aproximadamente seis milhões de pessoas nos campos de concentração, dos quais se sabe, em grande parte, o nome e dia da morte, nós indígenas (do Brasil) lembramos os milhões de irmãos e parentes nossos que foram exterminados sem que se tenha, na maioria dos casos, qualquer informação sobre esses massacres. Foi um extermínio silencioso e que continua até hoje.

Estas citação está no livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários do atual continente americano", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

Recém-lançado, o livro tem título autoexplicativo. Mas o depoimento da liderança pataxó mostra que aquilo que escandalizou o mundo "civilizado-ocidental" com a ascensão do nazifascismo já era uma realidade há muitos séculos para povos colonizados de tudo mundo.

Nesse sentido, Mussolini e Hitler não teriam inovado muito em sua sanha assassina. A novidade consistiu na utilização da máquina de destruição colonial no interior das metrópoles imperialistas. Com isso, demonstraram que a barbárie que os europeus atribuíam a povos “atrasados” era, na verdade, uma invenção muito branca e ocidental.

Às milhões de vítimas indígenas, negras, asiáticas do genocídio colonial juntaram-se outros milhões de mortos, torturados e perseguidos: judeus, comunistas, ciganos, homossexuais e outros setores da população do mundo “civilizado”.

Mais de cinco séculos depois, o que pareciam ser crueldades passageiras e necessárias do trabalho de parto de um novo sistema econômico, perpetua-se como seu mecanismo essencial. Alguns chamam de necropolítica. Mas é capitalismo mesmo.

29 de setembro de 2021

O que está em disputa são os rumos do golpe de 2016

Não deveria ser necessário dizer isso, mas o que está em andamento no cenário político nacional é a disputa sobre os rumos do golpe de 2016.

Deposta Dilma Roussef, o objetivo dos golpistas era abrir caminho para a vitória tucana em 2018, enquanto Temer aprovava mais medidas neoliberais e novas revogações de conquistas e direitos sociais.

Derrotado o PT, o desmonte da Constituição ganharia novo impulso e os movimentos sociais, depois de anos sendo apaziguados pelos governos petistas, seriam desmantelados definitivamente.

Mas surgiram dois elementos imponderáveis. Primeiro, nem o impeachment nem a prisão de Lula foram suficientes para matar o PT eleitoralmente. E uma nova vitória petista seria desmoralizante para a burguesia.

O jeito foi agarrar-se a Bolsonaro. Mas este revelou ser outro elemento imponderável. Seu comportamento errático e limitações políticas tornaram-se um obstáculo à entrega das reformas ultraliberais que a burguesia esperava dele. Sem falar nas ligações com o banditismo mais exacerbado, que acabou destruindo o já esfarrapado disfarce anticorrupção dos golpistas.

A pandemia agravou o estado de incerteza no andar de cima. Não exatamente pela montanha de mortos, mas pelo cinismo escancarado do responsável pelo genocídio. Além disso, o retorno triunfante de Lula acabou de confundir ainda mais o meio de campo.

Mas os golpistas não precisam se desesperar. Por enquanto, nada muito sério ameaça seus objetivos. Uma vitória apenas eleitoral da esquerda pode muito pouco em relação às enormes conquistas que o período Temer/Bolsonaro lhes proporcionaram.

Sem forte mobilização popular, um governo Lula somente significará um revés temporário na disputa dos rumos do golpe, jamais sua derrota.

Leia também: A derrota de Bolsonaro, só as ruas garantem

28 de setembro de 2021

O delivery é o capitalismo com pressa

“Briga no varejo, agora, é para produto chegar à casa do cliente em horas e não mais em dias”, diz matéria publicada no Globo, em 09/08/2021.

O Magazine Luiza pretende “fazer entregas em até uma hora em todas as capitais do país para produtos de até 15 quilos”, reforça a reportagem. Já a Amazon, anunciou entrega gratuita em um dia útil em mais de 50 cidades e iniciou testes para fazer os produtos chegarem no mesmo dia da compra.

A reportagem arrisca uma explicação que não explica nada: “Para especialistas e empresas, o esforço ocorre por uma necessidade do próprio consumidor, que tem cada vez mais pressa para receber as compras em casa”.

Mas em um trecho de seus rascunhos para “O Capital” (Grundrisse), Marx oferece uma explicação muito mais convincente:

Enquanto o capital deve por um lado, esforçar-se por derrubar todas as barreiras espaciais para realizar o intercâmbio (isto é, a troca), e conquistar todo o mundo como seu mercado, esforça-se, por outro lado, em anular o espaço pelo tempo, isto é, reduzir a um mínimo o tempo despendido no movimento de um lugar ao outro. Portanto, quanto mais desenvolvido o capital, mais extenso o mercado pelo qual ele circula, (...) a órbita espacial de sua circulação, mais ele se esforça simultaneamente em direção a uma ainda maior ampliação do mercado e a uma maior anulação do espaço pelo tempo.

Este texto de 1858 já mostrava uma tendência inevitável do capital. É a pressa de lucrar, mesmo que isso destrua tudo a sua volta. Nós é que deveríamos ter pressa de nos livrarmos dele.

Leia também: Marx e o espaço anulado pelo tempo

27 de setembro de 2021

Ainda sobre desamor e capitalismo

Um último comentário sobre o livro “The End of Love”, de Eva Illouz. Trata-se de destacar que as contradições causadas pela “liberdade sexual” apontadas pela obra não são as mesmas em toda a sociedade.

É o caso daquela parcela que continua a acreditar em relações amorosas estáveis, família nuclear e em valores religiosos e tradicionais. Os valores ideológicos predominantes nesses grupos mostram a "liberdade sexual" como comportamento pecaminoso, desordem familiar ou desorientação moral.

Por outro lado, há um número muito grande de famílias monoparentais nas periferias pobres das grandes cidades do País. Nelas, as mulheres são as únicas responsáveis pela sustentação econômica e educação das crianças. Nesses casos, fica difícil falar em "opções negativas", já que as escolhas emocionais a que se refere o estudo de Eva muitas vezes simplesmente não estão disponíveis para essas pessoas.

Nesse quadro, a relativa liberdade sexual desfrutada por alguns extratos sociais deveria servir de referência para os setores ainda fortemente oprimidos erótica e emocionalmente, tanto pela opressão conservadora e patriarcal quanto por constrangimentos econômicos.

Mas quando mesmo os setores que obtiveram conquistas aparentemente libertárias também mostram-se tomados por ansiedade, angústia e insegurança, o conservadorismo apresenta-se para justificar a opressão sexual como parte de uma ordem natural e sacramentada pelas tradições.

É desse modo que se poderia explicar em parte a vitoriosa ofensiva ultraconservadora de forças como o bolsonarismo. Não se enfrenta esse tipo de ofensiva, abstendo-se de dar combate ao conservadorismo em todos os extratos sociais. Muito menos, contentando-se com algumas pretensas conquistas presentes em nichos sociais cujas aparentes liberdades comportamentais já foram sequestradas e precificadas pelo mercado.

Leia também: O desamor e as forças invisíveis que nos prendem e cegam

3 de setembro de 2021

O desamor e as forças invisíveis que nos prendem e cegam

Em seu livro “The End of Love”, Eva Illouz afirma que aquilo que ela chamou de “capitalismo escópico” muda a ecologia das relações íntimas, recicla a sujeição das mulheres e cria uma vasta quantidade de experiências de rejeição, mágoa, decepção, "desamor"...

A referência maior da autora é a crítica presente em “O mal-estar da civilização”. Neste famoso livro, Freud argumenta que a modernidade se caracterizaria por uma falta de adequação entre a estrutura psíquica individual e as demandas sociais colocadas sobre ela. A crítica de Freud, portanto, não parte de uma visão normativa clara, mas indaga sobre o ajuste entre as estruturas sociais e psíquicas.

Se a introspecção e o "eu" não são fontes confiáveis de compromisso e clareza, liberdade por si só não pode gerar sociabilidade e cobra um preço psíquico muito alto dos atores sociais. A fim de gerar solidariedade social a liberdade precisa de rituais. No entanto, esses rituais praticamente desapareceram e foram substituídos pela incerteza.

Eva afirma que não pede um retorno aos valores familiares, à comunidade nem defende a redução da liberdade. No entanto, leva a sério as críticas feministas e religiosas à “liberdade sexual” e afirma que o poder tentacular do capitalismo escópico a utiliza para dominar nosso campo de ação e imaginação, contando com a “indústria psicológica” para gerenciar as muitas brechas emocionais e psíquicas criadas por ela.

E se muita coisa pode ser polêmica neste livro, a frase que o encerra justifica sua leitura: “Se liberdade deve significar alguma coisa, certamente deve incluir o conhecimento das forças invisíveis que nos prendem e nos cegam”.

Leia também: Liberdade sexual: velhas e novas desigualdades

2 de setembro de 2021

Liberdade sexual: velhas e novas desigualdades

As afinidades entre relacionamentos negativos e capitalismo escópico são o principal fio condutor deste livro, diz Eva Illouz, em “The End of Love”.

Mas a título de resumo, podemos afirmar que “relacionamentos negativos” dizem respeito “às maneiras pelas quais as relações íntimas, a sexualidade e a família refletem as características apropriadas do mercado, das práticas de consumo e dos locais de trabalho capitalistas”.

Para Eva, no casamento tradicional homens e mulheres eram (mais ou menos) emparelhados horizontalmente (dentro de seu grupo social) e visavam maximizar a propriedade e a riqueza. Já nos mercados sexuais contemporâneos, homens e mulheres combinam de acordo com o capital sexual, para uma variedade de propósitos (econômicos, hedônicos , emocionais). Muitas vezes vêm de diferentes grupos sociais e origens (culturais, religiosas, étnicas ou sociais) e frequentemente trocam atributos assimétricos (por exemplo, beleza vs. status social).

Também é importante destacar que, segundo ela, o capitalismo escópico gera diferentes formas de valor econômico e social para homens e mulheres. Por meio do mercado de consumo, as mulheres preparam seus corpos para produzir valor, ao mesmo tempo econômico e sexual, enquanto os homens consomem a produção feminina de seu valor sexual como marcadores de status em arenas de competição masculina.

Por ter sido atrelada aos objetivos e interesses do capitalismo escópico, afirma a autora, a liberdade sexual aprofunda as desigualdades, algumas das quais o precederam (desigualdades de gênero), enquanto outras foram criadas por ele. Tanto umas como outras têm efeitos negativos suficientes para fazer da busca da liberdade um objetivo que traz consequências inquietantes, conclui Eva.

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também: O amor nas lojas de um dólar

1 de setembro de 2021

O amor nas lojas de um dólar

Em lojas de um dólar, muitas vezes os clientes compram mesmo que não precisem de nada. Afinal, o custo de uma decisão errada é mínimo.

Essa atitude é comparada por Eva Illouz a muitos dos “contratos emocionais e sexuais” atuais, que são praticamente isentos de penalidades por sua rescisão.

Um dos exemplos é a prática do “gosthing”, diz ela em seu livro “The End of Love”. O conceito teria origem no famoso filme de 1990, estrelado por Demi Moore e Patrick Swayze. Passou a ser usado para se referir ao rompimento de um relacionamento romântico em que um dos parceiros corta todo o contato repentinamente e ignora tentativas de reconciliação. O ex-parceiro torna-se um fantasma.

“Ele me enviou um SMS dizendo que estava tudo acabado, depois de oito meses de relacionamento!”, queixa-se uma pessoa, em depoimento feito à autora.

No capitalismo atual, as empresas fecham fábricas e despedem trabalhadores sem maiores constrangimentos. Romper tornou-se parte de uma cultura em que as pessoas ficam rapidamente desatualizadas e substituíveis. Mas não apenas na esfera da produção.

Segundo Eva, as noções corporativas de eficiência, custos e utilidade passaram a contaminar as tradicionais convenções e compromissos que envolvem relações amorosas, criando uma crescente situação de incerteza.

Ultimamente, o capitalismo vem lidando com as incertezas de sua instabilidade econômica através de derivativos. Instrumentos financeiros que garantem altos lucros para poucos, mas que, em momentos de crise, acabam socializando os prejuízos com o resto da sociedade.

No caso das relações amorosas, não há derivativos. Muitas vezes, há apenas a garantia de sofrimento em meio a uma solidão abarrotada de mercadorias.

Leia também: Modernidade hiperconectada e cultura do desamor