Doses maiores

18 de março de 2024

Neoliberalismo e extremismo de direita

Fundamentalismo religioso, guerra híbrida, dissonância cognitiva, militarismo, anarcocapitalismo, caos informativo, neofascismo. Estas são apenas algumas das chaves explicativas presentes no debate sobre a onda ultraconservadora que vem varrendo o mundo. Mas que elemento ideológico poderia dar coerência a esse caos conceitual? Um bom palpite é: o neoliberalismo.

Segundo Gramsci, a ideologia dominante reúne os elementos díspares e contraditórios que estão espalhados pelo senso comum para combiná-los de forma a justificar a ordem social. O resultado é uma massaroca que mistura religião, filosofia, valores tradicionais e modernos, crenças e preconceitos etc.

Ora, o neoliberalismo vem cumprindo perfeitamente essa função. Longe de ser apenas um modelo econômico, é uma racionalidade que penetrou toda a sociedade. Manifesta-se, por exemplo, na teologia que concebe a fé como instrumento de sucesso pessoal, no empreendedorismo como forma de ascensão social nas periferias e na organização racional da criminalidade promovida pelo PCC. Está na empresa e no sindicato. Nos governos, partidos, igrejas, mídias, universidades, ONGs. Ela impõe a mercantilização e financeirização da vida e um individualismo mergulhado na concorrência selvagem. Contaminou todas as esferas sociais, incluindo amplos setores da esquerda.

São muitas décadas de hegemonia neoliberal na Europa e Estados Unidos. Nos países dependentes, esse processo começou atrasado, mas foi sincronizado pela crise de 2008. Uma crise que o neoliberalismo criou e para a qual apresentou como solução a generalização do extremismo de direita a que estamos assistindo nos últimos anos.

Combater o neoliberalismo de forma abstrata não é suficiente para nos tirar dessa enorme encrenca. Mas se continuarmos a ignorá-lo vamos afundar ainda mais na barbárie.

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14 de março de 2024

Lênin, sempre atento à luta de classes

Mais relatos do livro “Lenin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution“, de Paul Le Blanc.

No final de 1904, o padre ortodoxo Georgi Gapon liderava um numeroso setor dos operários russos. Como havia fortes suspeitas de que ele trabalhasse para a polícia czarista, os bolcheviques se negaram a participar do movimento.

Lênin também achava que o padre colaborava com as autoridades, mas avaliava que o movimento liderado por ele poderia levar a confrontos importantes para a conscientização da classe. Portanto, deveria ser fortalecido e disputado pelos bolcheviques.

Em janeiro de 1905, Gapon organizou uma grande marcha para pedir ao czar o atendimento de reivindicações populares. A marcha foi massacrada e o episódio serviu de estopim para a Revolução de 1905.

No mesmo ano, a direção bolchevique decidiu que não era hora de ajudar a criar sindicatos. Em vez disso, era preciso preparar uma revolta armada. Lênin discordou. Para ele, sindicatos eram organizações fundamentais para a conscientização dos trabalhadores e não havia qualquer sinal de disposição da população para um confronto armado.

Em outra ocasião, os dirigentes bolcheviques defenderam que o soviete de deputados operários adotasse integralmente o programa do partido. Novamente Lênin se opôs, afirmando que mais importante que tentar engessar os sovietes com doutrinas abstratas era conquistá-los para uma prática revolucionária.

Estes exemplos mostram a capacidade de Lênin de enxergar as oportunidades da luta de classes sem dogmatismos. Evidenciam também como as relações entre ele e seus camaradas eram conflituosas sem levarem a divisões ou paralisia. Mas isso só era possível porque o forte enraizamento do partido entre os trabalhadores servia como bússola para seus militantes.

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13 de março de 2024

Parteiras muito radicais da revolução

Em seu livro “Parteiras da Revolução”, Jane McDermid dedica um capítulo a mulheres militantes radicais que atuaram durante o processo revolucionário russo do começo do século 20. Entre elas, estava Vera Zasulich.

Na juventude, Vera abraçara o terrorismo dos populistas russos. Em 1878, atentou contra a vida do governador de São Petersburgo. Inesperadamente absolvida, ela fugiu para Genebra para escapar a novas prisões. Na capital suíça, aderiu ao marxismo, abandonando as ações violentas.

Vera considerava o feminismo divisionista e as concepções partidárias de Lenin elitistas. Para ela, a tomada do poder pelos sovietes em outubro de 1917 foi prematura. Apesar disso, sempre foi muito respeitada pelos bolcheviques.

Outra figura feminina radical era Ekaterina Breshko-Breshkovskaia. Integrante dos Socialistas Revolucionários (SRs), organização de esquerda adversária dos bolcheviques, era contrária às orientações da direção de seu partido, que condenava ações violentas. Defendia a necessidade de pegar em armas contra o Estado.

Maria Spiridonova também foi uma militante dos SRs que contrariava seus dirigentes, defendendo o assassinato de autoridades do regime czarista. Em 1907, ao tentar matar um guarda carcerário enquanto estava presa, foi condenada à morte. Aceitou sua execução como forma de dar novo impulso à luta. Mas a sentença foi anulada e ela passou dez anos na Sibéria.

Em 1917, presidiu o Primeiro Congresso dos Sovietes Camponeses. Apesar de rejeitar o marxismo, aliou-se aos bolcheviques na Revolução de Outubro. Acabou voltando ao terrorismo, ao tentar matar o embaixador alemão na Rússia, em julho de 1918.

Mas o stalinismo não poupou sua rebeldia. Maria desapareceu por volta de 1937, provavelmente executada por ordem de um tribunal militar soviético.

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12 de março de 2024

Cessar-fogo e lucros cessantes

Os editoriais condenam a decisão do governo de reter o pagamento de dividendos aos acionistas da Petrobrás. A medida foi tomada pensando nos objetivos de longo prazo da estatal. Mas longo prazo é um conceito que não entra na cabeça tacanha dos grandes acionistas privados da petroleira. Tubarões gordos sempre famintos.

Outra notícia com repercussão bem menor foi a morte de um trabalhador de um galpão do gigante varejista Mercado Livre. Ele teria cometido suicídio, mas seus colegas foram obrigados a continuar trabalhando normalmente.

O que ambos os acontecimentos têm em comum? A lógica capitalista. Sejam as obrigações da Petrobrás em relação aos interesses públicos, seja a perda de uma vida, nada pode se deter diante da necessidade de manter elevada a rentabilidade que beneficia interesses privados.

No capitalismo, impera a ditadura do lucro. E não só nas tragédias ou decisões empresariais. Para que servem as fábricas de sapatos? Para calçar as pessoas? Não, para lucrar com a venda de calçados. O mesmo vale para as indústrias de alimentação e imobiliária. Aos milhões de desnutridos e sem-tetos não basta serem humanos se não forem consumidores.

A economia capitalista faz das necessidades vitais mero meio para gerar lucro abundante para alguns poucos. E não se trata apenas da vida humana, como demonstram os desastres ambientais.

Mas há um ramo econômico em que isso fica tragicamente explícito. A indústria armamentista multiplica seus ganhos na proporção direta em que destrói vidas. Seja nos conflitos entre países, seja no interior deles. Tanto em Gaza, Ucrânia, Sudão como nas periferias urbanas não há cessar-fogo porque isso implicaria lucros cessantes.

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11 de março de 2024

Mais parteiras da revolução: Sanité Bélair

O livro “Midwives of the Revolution (Parteiras da Revolução)”, de Jane McDermid, relata a participação das trabalhadoras russas no processo revolucionário de 1917.

Mas se entendermos as parteiras da revolução como agentes imprescindíveis tanto na preparação do parto como no nascimento de uma nova ordem, elas estão presentes em vários momentos da história. Às vezes, atuam discretamente, mas sempre de forma persistente e decisiva.

Sanité Bélair era uma delas. Nascida em 1781, foi uma das poucas mulheres a integrar o exército de Toussaint Louverture, consagrando-se como grande combatente da luta revolucionária que livrou o Haiti tanto da domínio colonial como da escravidão. Um fenômeno raro nas lutas anticoloniais, que costumavam defender as liberdades sem abolir o trabalho servil.

Em 1791, Sanité liderou uma rebelião de escravizados ao lado de Charles Bélair, que se tornaria general das tropas revolucionárias e com quem ela se casaria. A seu lado, Sanité chegou ao posto de tenente, combatendo as forças coloniais francesas com tanta bravura e determinação que passou a ser chamada de “Tigresa” por seus companheiros de armas.

Quando Sanité foi capturada pelos franceses em 1802, Charles Bélair entregou-se aos inimigos para juntar-se a ela na prisão. Foram executados um ao lado do outro. Pouco antes de morrer fuzilada, Sanité teria gritado “Viva a liberdade, abaixo à escravidão!”

Assim são as parteiras que não só preparam o nascimento das revoluções como as acompanham em seus primeiros momentos. E nem os erros e frustrações tão frequentes nos processos revolucionários as impedem de persistir em seus esforços para trazer à luz novos momentos emancipatórios.

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