Doses maiores

27 de fevereiro de 2013

Primavera árabe: melhor o caos que o despotismo

Gilbert Achcar concedeu entrevista ao jornal Le Monde em 25/02. Ele é libanês, analista do mundo árabe contemporâneo e professor da School of Oriental and African Studies, de Londres. Com o título “Há que passar pela experiência do islamismo no poder”, o depoimento começa destacando o caráter de longa duração do processo revolucionário na região.

Referindo-se à situação no Egito, Achcar afirma que o governo caiu, mas não o regime. A Irmandade Islâmica assumiu o poder por ser a única grande força organizada de oposição ao antigo governo. Mas paga um preço alto por isso. Segundo Achcar, a organização muçulmana construiu-se como força de oposição:

...com um slogan simplista: o Islã  é a solução. É algo completamente oco, mas funcionava num contexto de miséria e de injustiça no qual se podia vender essa ilusão. Os islâmicos são traficantes do ópio do povo. Desde o momento em que estão no poder, isso já não é possível. São incapazes de resolver os problemas das pessoas.

Assim, o desgastante exercício do poder poderia abrir caminho para forças verdadeiramente revolucionárias. Mas trata-se de possibilidade, não de certeza. Perguntado sobre um suposto complô imperialista por trás das revoluções na região, o professor responde:

Se, por oportunismo, as insurreições populares são apoiadas por potências imperialistas, não justifica que apoiemos as ditaduras. A teoria do complô americano é grotesca. (...) É claro que, depois de quarenta anos de totalitarismo, o que chega é o caos, mas, como diria Locke, prefiro o caos ao despotismo, porque no caos tenho uma opção.

Os revolucionários não precisam apostar no caos. Mas jamais devem aceitar o despotismo.

Itália: entre a farsa e o videogame

As bolsas de valores ficaram abaladas com as eleições italianas. Nenhum partido ou coalizão saiu com maioria. Mas metade dos italianos votou em candidatos contrários à União Europeia. Entre eles, Beppe Grillo, o humorista que criou o Movimento 5 Estrelas, agora transformado no terceiro partido italiano.

Grillo quer acabar com os atuais partidos e mandar os políticos tradicionais para casa. Conhecemos bem as propostas desse tipo. Costumam vir justamente daqueles que querem vencer a qualquer custo o jogo eleitoral que tanto condenam. E não acabam bem. Lembremos Jânio Quadros e Collor.

Outro bem votado foi Silvio Berlusconi, mais um comediante, mas de mãos sujas e bolsos cheios. Também surfou na onda antieuropeia, apesar de ter sido presidente da União Europeia. Ou seja, o voto anda cada vez mais desligado de suas consequências reais.

Mas na realidade virtual, a Itália também apresenta novidades. Trata-se do videogame “Riot” (motim ou revolta, em inglês), criado pelo cineasta Leonard Mechiari. O jogo simula ambientes de protestos populares inspirados nas recentes manifestações na Grécia, Egito, Rússia, Nova York e na própria Itália.

O problema é que o jogador pode escolher entre ser policial ou manifestante. E os criadores do game afirmam que se trata de um cenário “onde não há vitórias ou derrotas”.  Além disso, será desenvolvido para a plataforma Apple. Ou seja, independentemente da originalidade da ideia, o objetivo mesmo é mercadológico.

Contra as farsas políticas de Grillo, Berlusconi e de outras lideranças tradicionais, só as revoltas populares, mesmo. Desde que não se limitem a explosões incertas e desorganizadas. Ou serão tão efetivas como aquelas operadas por joysticks.

26 de fevereiro de 2013

Bento 16: a opção pelos ricos e pelo Nada

Os jornais comentam os chamados “Vatileaks”. Trata-se de uma série de documentos secretos que vazaram do Vaticano. Eles revelariam uma ampla rede de corrupção, envolvendo dinheiro, sexo, intrigas e tanta sujeira que teriam levado à renúncia de Bento 16.

Mas o artigo “Bento XVI: uma renúncia estratégica”, de Dermi Azevedo, apresenta uma explicação que vai mais fundo na crise da Igreja Católica. Publicado em 20/02 pela Carta Maior, o texto lembra o papel dos dois últimos papas na derrota da Teologia da Libertação nos anos 80 e 90 e conclui:

Eleito Papa, Bento XVI tratou de concretizar em nível global a ofensiva conservadora. Seu laboratório anterior havia sido a Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Santa Inquisição) onde havia comandado os processos de expurgo de teólogos como Leonardo Boff e Jon Sobrino. De um momento para outro, a Igreja deixou de ser uma das principais referências para a produção de sentido na sociedade. Entrou em descompasso, mesmo que fosse para polemizar, com a pós-modernidade. Retomou antigos costumes que lhe foram úteis na época da Cristandade, mas que se revelaram incompatíveis com a dinâmica de um mundo em rápida mutação de valores e em plena revolução tecnológica. A linha política adotada pelo Papa afastou da cúpula da Igreja os seus quadros progressistas e a distanciou das massas empobrecidas no mundo.

Ou seja, a cúpula católica estaria pagando o preço por sua opção pelos ricos. Uma escolha que a isolou da maioria formada pelos explorados, únicos capazes de arrancar algum sentido da realidade através de suas lutas contra o capitalismo. Por trás da renúncia papal, o Nada.

25 de fevereiro de 2013

Um barulho que convém à blogueira cubana

Muito boa a coluna “Uma blogueira do barulho” de Luciano Martins Costa para o Observatório da Imprensa, edição de 21/02. O texto diz que a grande imprensa brasileira tenta transformar a cubana Yoani Sanchez “na única voz livre” em seu país.

Segundo Martins, em Cuba, há pelo menos “uma centena de jornalistas, escritores e intelectuais que discutem abertamente a situação criada pelo isolamento do país”. Ele destaca a revista Voces. Disponível na internete (http://vocescuba.com), a publicação traz textos com fortes críticas ao governo cubano sem fazer o jogo do imperialismo.

Ou seja, diz Luciano, a “blogueira pop” não é a principal representante da dissidência intelectual cubana. E conclui brilhantemente: “Yoani é o barulho que a imprensa brasileira faz, para que outras vozes cubanas não sejam ouvidas”.

Mas também seria importante destacar um ponto em que imprensa burguesa e grande parte da esquerda coincidem. Ao insistir no caráter socialista de Cuba, ambos transformam a heroica resistência de seu povo num espantalho usado pela direita.

Devemos condenar e denunciar o criminoso bloqueio estadunidense à Ilha. A luta de seu povo merece todo o nosso apoio. Mas o regime estagnou em posições autoritárias desde que Cuba se tornou dependente da União Soviética nos anos 60.

O colapso do império soviético quebrou de vez o cambaleante capitalismo estatal cubano. O acúmulo de precariedades e desigualdades vai aniquilando qualquer possibilidade de construir uma sociedade justa e próspera.

A resposta do regime a tudo isso tem sido a rendição aos mecanismos de mercado. Ou encaramos isso ou corremos o risco de também fazer um barulho que convém a Yoani e ao imperialismo.

22 de fevereiro de 2013

Robocop e drones: a morte teleguiada

“Pesquisadores criam ‘Robocop’ para patrulhar as ruas”, é o título de matéria da Discovery Notícias, de 16/11/2012. A reportagem é sobre robôs de patrulhamento acionados por controle remoto. O projeto é do Discovery Lab, da Universidade Internacional da Flórida, com a colaboração do comandante da Marinha americana, Jeremy Robins.

Robins alega que os robôs serão oferecidos “a militares incapacitados e policiais veteranos” à procura de uma “chance de servir a lei”. Ainda segundo o comandante:

O robô precisa parecer intimidador e impor autoridade de forma que as pessoas obedeçam a seus comandos – já que é evidente que não é o robô quem dá as ordens, e sim o policial que o controla. Por outro lado, precisa ser acessível o bastante para que uma criança perdida de três anos sinta-se à vontade para pedir a ajuda do robô para encontrar sua mãe.

Meses depois, em 05/02, a rede norte-americana NBC divulgou um documento do Departamento de Defesa estadunidense sobre o uso de aviões teleguiados. Os chamados “drones” podem matar cidadãos norte-americanos no exterior suspeitos de ligações com a Al Qaeda.

Então, ficamos assim. Dentro do país, robôs policiais intimidadores a serviço da política de segurança que criou a maior população carcerária do mundo. No front externo, se até americanos podem ser alvo dos drones, imaginem o que acontecerá com os outros.

Em ambos os casos, alta tecnologia separa radicalmente o gatilho e o tiro para unir ainda mais estupidez e destruição. Enquanto isso, os indefesos alvos passarão por outro tipo de separação radical. Aquela entre corpo e alma, mais conhecida como morte.

21 de fevereiro de 2013

A hora muito escura do imperialismo

O filme “A hora mais escura”, de Kathryn Bigelow, dramatiza o assassinato de Osama Bin Laden por forças militares americanas em território paquistanês, em maio de 2011. Um de seus aspectos polêmicos seria a abordagem da tortura como mal necessário no combate ao terrorismo.

De fato, a produção mostra os torturadores estadunidenses como pessoas racionais e equilibradas. A própria heroína, bela e fisicamente delicada, assiste às sessões de espancamento como se fossem apenas um interrogatório um pouco mais rigoroso.

Os torturados, por sua vez, comportam-se como se realmente tivessem informações importantes a esconder. Principalmente, sobre ataques terroristas contra alvos civis. Essa impressão é confirmada quando a possibilidade de um ataque a um hotel se concretiza.

O filme de Bigelow dá destaque à suspensão do uso da tortura pelo governo Obama. Mas o maior problema do filme é tratar a tortura como um método de investigação. É muito improvável que pessoas brutalizadas forneçam informações precisas ou úteis.

Na verdade, tortura e terrorismo têm o mesmo objetivo: provocar pânico e intimidação. Ambos se diferenciam nos resultados e se igualam na covardia. A tortura é pior, pois continua a atingir suas vítimas depois de sua rendição e captura.

A tortura pode até ter deixado de ser praticada pelas forças militares americanas. O mesmo não podemos dizer da lógica aterrorizadora e covarde que a justifica. Agora, na forma de aviões não tripulados que matam civis por controle remoto.

A escuridão se abate sobre todos os envolvidos nessa longa guerra sangrenta. Mas o imperialismo americano comporta-se como uma estrela da morte. Sua pesada gravidade rouba luz e gera destruição e trevas.

Leia também: Obama, Senhor da Guerra

20 de fevereiro de 2013

O conservadorismo de Marina Silva

“Nem direita, nem esquerda. Estamos à frente. Nem oposição, nem situação. Precisamos de posição”. Com estas palavras, a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, resume o posicionamento político do partido que pretende criar, segundo matéria da Folha de S. Paulo publicada em 17/02. E ainda acrescentou: "Se Dilma estiver fazendo algo bom, vamos apoiar. Se não, não".

Sempre que uma organização política recusa definições mais claras sobre seus objetivos, dificilmente escapa de tornar-se instrumento dos poderosos. Mas Marina já está nesse caminho faz tempo. Seu vice na campanha presidencial em 2010 foi o empresário Guilherme Leal, dono da Natura e de uma fortuna de 1,6 bilhão de dólares. Em janeiro de 2013, houve um grande encontro para discutir o novo partido. Na mesa do evento, estava Maria Alice Setúbal, herdeira do banco Itaú.

Não é só isso. Marina é conservadora. E não estamos falando da conservação de flora e fauna. Em entrevista para o UOL Eleições, em junho de 2010, a então presidenciável se disse contrária ao casamento gay. Além disso, propôs dois plebiscitos: um para discutir a legalização da maconha e outro sobre o aborto. Como se tais direitos não estivessem sob constante bombardeio das instituições conservadoras e da mídia empresarial.

Diante disso, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) demonstrou todo seu descontentamento: “submeter direitos de minorias a ‘plebiscitos’ e ‘referendos’ não é nova política: é o velho conservadorismo!”. Em seguida, citou o jornalista argentino e ativista do movimento LGBT Bruno Bimbi: “Vamos fazer plebiscito sobre os direitos dos negros? E sobre os direitos dos judeus? Marina atrasa um século!”.

Leia também: A Bíblia, o aborto, a homossexualidade

19 de fevereiro de 2013

Querem tirar lucro até do asteroide do apocalipse

Em 15/02, um asteroide chegou muito perto do nosso planeta. Nada de grave aconteceu, mas o clipping do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde e Previdência de São Paulo fez um bom levantamento sobre o tema na imprensa. O apanhado revela algo dos tempos atuais.

Pouco antes da passagem do asteroide, o “Jornal Ciência”, do site R7, anunciou “Asteroide que passará ‘raspando’ pela Terra tem valor estimado em quase R$ 400 bilhões!”. A empresa Deep Space Industries fez o cálculo levando em consideração a possibilidade de o corpo celeste ser composto por água, ferro, níquel e outros metais de "fácil extração".

O clipping do sindicato aproveitou o evento para lembrar uma notícia de setembro de 2011. Ela dizia que a China pretende colocar um asteroide em órbita da Terra. O objetivo seria usá-lo “como fonte de matéria-prima, minerando seus recursos e enviando-os para a Terra”, diz notícia do site Popsci. Outra notícia destacada é de abril de 2012. Ela dizia que a Google e o cineasta James Cameron pretendem explorar mineral de asteroides em órbita próxima à da Terra.

Os cientistas afirmam que trinta anos atrás, não seríamos capazes de prever a aproximação dessas rochas celestes. Agora, os novos telescópios e outros instrumentos podem nos avisar com alguma antecedência. A pergunta é: usaremos esses avanços tecnológicos para prevenir catástrofes ou a prioridade será encontrar novas fontes de lucros para uns poucos?

Pelo que se viu acima, já sabemos qual é a resposta. Vivemos em uma época que só valoriza aquilo que possa produzir um saldo positivo. Mesmo que seja algo muito próximo do apocalipse.

18 de fevereiro de 2013

Bilionários são clientes preferenciais dos bancos públicos

“Brasileiros da Ambev e Warren Buffett compram a Heinz em negócio de US$ 28 bilhões”, diz manchete de O Globo de 15/02. A Heinz é a maior fabricante de mostarda e ketchup do mundo.

Na mesma data, Fernando Dantas publicou o artigo “Por que no Brasil Lemann precisa do BNDES?” na agência AE-News/Broadcast. O texto apresenta os três brasileiros responsáveis pelo negócio bilionário. Jorge Paulo Lemann, Marcelo Telles e Carlos Sicupira formam o trio que, nos Estados Unidos:

...esteve à frente da aquisição da Anheuser-Busch, fabricante da conhecidíssima cerveja Budweiser, pela InBev; da aquisição da empresa ferroviária CSX (a maior do Leste dos Estados Unidos); e, agora, a aquisição conjunta, por US$ 28 bilhões, da multinacional americana de alimentos Heinz.

Lemann já ultrapassou Eike Batista no posto de brasileiro mais rico. Apesar disso, ele e seus sócios vivem recebendo ajuda do BNDES.

Dantas cita o economista Mansueto Almeida, especialista em contas públicas e política industrial. Segundo ele, as três empresas ligadas ao trio bilionário já receberam do BNDES em 2011 mais de R$ 3 bilhões.

Mas essa política é generalizada. Entre os bancos públicos, a prioridade é financiar grandes empresas. Os pequenos empreendimentos geram quase 70% dos empregos, mas só acessam metade dos créditos públicos.

Ao mesmo tempo, os empréstimos do Tesouro para os bancos públicos cresceram 8,7% em relação ao PIB, de 2007 a 2012. Mais que os 8,4% que Bush e Obama já morderam do PIB americano para socorrer seus capitalistas, desde o início da crise mundial. E o governo brasileiro diz que aqui a crise nem chegou. Imaginem se tivesse chegado.

Leia também: As tetas do BNDES (2)

15 de fevereiro de 2013

O lugar do Vaticano é nas catacumbas

A renúncia do Papa surpreendeu o mundo. As razões de Bento 16 não ficaram claras. Comentaristas arriscam várias explicações. A maioria dedica-se a elogiar a atitude como corajosa e inteligente.

Talvez, seja melhor olhar para coisas mais concretas, como dinheiro e corrupção. Foi o que fez Henrique Carneiro, professor de História Social da USP, em artigo publicado no blog http://blogconvergencia.org, em 12/02.

Carneiro lembra que o Vaticano também foi afetado pela crise mundial. Em 2012, amargou um rombo de cerca de 19 milhões de dólares. Os gastos com processos por pedofilia teriam agravado essa crise. Os processos levaram a indenizações que “só nos EUA, chegaram a três bilhões de dólares em mais de três mil processos abertos”, afirma ele.

Outro a colocar as questões em bases bem materiais foi Eduardo Febbro, no artigo “A história secreta da renúncia de Bento XVI”. Publicado em Carta Maior, o texto revela toda a sujeira do Estado papal. São negociatas unindo política reacionária e montanhas de dinheiro, que vêm dos tempos do papa falecido e beatificado recentemente.

Alguns entendem a crise vaticana como oportunidade para uma renovação. Até religiosos de esquerda como Frei Betto e Leonardo Boff discutem a possibilidade de eleger um papa progressista. Nesse caso, vale o que disse o jornalista José Simão:

Não existe papa progressista. Todo papa é contra sexo fora do casamento, contra camisinha, contra gay, contra aborto, contra o rock e contra célula-tronco! Eu quero ser católico, mas o papa não deixa.

O lugar da cúpula católica é nas catacumbas. As mesmas para onde enviou os milhões de vítimas de sua milenar intolerância.

Leia também: A Bíblia não é manual de instruções

14 de fevereiro de 2013

A fé dos melhores ateus e o ceticismo dos piores crentes

Há algum tempo, o ateísmo vem sendo tratado com certa intolerância. É como se fôssemos inimigos daquilo em que nem acreditamos. Ainda que isso seja verdade para gente como Richard Dawkins e Cristopher Hitchens, que teimam em ofender religiosos em geral.

Mas a incapacidade de aceitar os céticos também é baseada em uma espécie de ceticismo. Muitos religiosos, místicos, esotéricos agarram-se a suas crenças porque descreem da espécie humana. Para eles, a humanidade é sempre culpada e jamais poderá provar o contrário.

Por outro lado, muitas vezes, a orfandade dos descrentes torna necessária e firme sua aposta nos seres humanos. Não como espécie destinada ao sucesso ou à supremacia universal. Nem na condição de ser racional, armado de verdades científicas inegáveis. Já erramos demais adotando essas crendices.

Desde que nos tornamos bichos humanos fizemos coisas gigantescas. A maioria delas, com resultados trágicos, é verdade. E nos últimos 300 anos, nos tornamos perigosos para a sobrevivência de nossa própria espécie e de outras. Mas muitos dos que não creem se negam a delegar a responsabilidade pelo que já fomos, somos e seremos.

Esta é a fé dos melhores ateus. Muito superior à crença no sobrenatural por parte de quem tem como certa a maldade da natureza humana. Adeptos de líderes que, de suas catedrais e templos luxuosos, vivem nos convidando a olhar para um abismo que eles mesmos habitam.

Que assim não seja!

Leia também: Christopher Hitchens e o fanatismo ateu

8 de fevereiro de 2013

Obama, Senhor da Guerra

Richard Becker publicou ótimo artigo no site Global Research, em 23/01. “‘Nós, o Povo dos EUA’... só cremos em guerra” é o título do texto que circula na internete.

Trata-se de uma análise do discurso de posse de Barack Obama que desmente seu suposto perfil progressista. Um trecho, em especial, é exemplar:

“Uma década de guerra está terminando” – discursou Obama. A verdade é que os ataques militares e movimentos de intervenção prosseguem no Afeganistão, no Paquistão, no Iêmen, na Somália e em outros países. Todas as terças-feiras há uma reunião na Casa Branca, durante a qual o presidente autoriza novos assassinatos de alvos predefinidos, assassinatos premeditados e planejados de indivíduos selecionados e de quem mais tenha a infelicidade de andar por perto dos alvos atacados pelos aviões-robôs armados, os drones, em muitos países, nenhum dos quais está em guerra com os EUA.

Além disso, reforça o autor, “o Pentágono continua a manter mais de 900 bases militares distribuídas por todos os continentes. O orçamento militar dos EUA é maior que todos os orçamentos militares de todos os demais países do mundo, somados!”

E conclui de forma muito precisa:

...independente de quem seja eleito, o emprego de presidente dos EUA impõe exigências bem claras aos que se candidatem: terá de ser presidente executivo do império e do imperialismo e protetor das megacorporações norte-americanas.

Ressalvadas as enormes diferenças, essa regra pode valer para todos os ocupantes de governos no mundo. Possíveis e raras exceções de esquerda costumam ter vida curta no poder. Quando isso não ocorre, é porque já não são exceção ou nunca chegaram a sê-lo.


6 de fevereiro de 2013

O Estado de Bem Estar da Fiat

Achille Lollo publicou “Os golpes FIAT-Chrysler contra os italianos”, no jornal Brasil de Fato em 02/10. A matéria fala sobre negociatas entre as montadoras italiana e estadunidense citadas no título. Mas também revela outros dados interessantes.

Segundo Lollo, “o estado italiano, entre 1977 até 2012, investiu nas fábricas italianas da FIAT cerca de 7,6 bilhões de euros”. 

Seis meses antes, em 21/04, notícia publicada no jornal espanhol El País, tinha como título: “A crise ceifa vidas na Itália”. Referia-se aos suicídios diários de pequenos empresários e trabalhadores “sufocados pelas dívidas e pela falta de expectativa para vencer as dificuldades”.

Segundo a matéria, até aquele momento 146 mil empresas italianas haviam fechado as portas. Muitas delas eram pequenos empreendimentos.

A Itália costuma ser citada entre os países que exageraram na concessão de direitos a seus trabalhadores. Seria o chamado “Estado de Bem Estar Social”. Suas generosas aposentadorias e saúde e educação públicas de qualidade seriam responsáveis pelo acúmulo de dívidas governamentais impagáveis.

Mas como se vê pelas matérias acima, os verdadeiros beneficiários dos gastos públicos sempre foram monopólios como a Fiat. Dinheiro a fundo perdido voltado para o bem estar de gigantes empresariais.

Leia também: O instinto assassino do capitalismo

Renan representa a sociedade brasileira

“O Renan não é corrupto porque é mau, mas porque essa é a única forma de fazer política no Brasil”. Esta frase foi dita por Roberto Romano em entrevista publicada no jornal paranaense Gazeta do Povo em 03/02. Para o professor da Unicamp “quase não existe possibilidade de eleger e reeleger um político que seja apenas ético”.

Não é verdade que a única forma de fazer política no Brasil seja esta. Esta é a regra para a política dos gabinetes e palácios. E não acontece só aqui. A corrupção ataca governos e parlamentos no mundo todo. É o resultado de uma sociedade cada vez mais organizada em torno da circulação do dinheiro.

De qualquer maneira, o enriquecimento pessoal de parlamentares é apenas o lado mais aparente da corrupção. Trabalhar contra os interesses populares sempre foi a maior especialidade do Congresso Nacional. Desde o século 19, sua prioridade é aprovar projetos de interesse das elites e do grande capital.

Nas raras vezes em que isso não aconteceu foi devido à pressão popular. Graças às manifestações, greves, revoltas nas ruas, fábricas, universidades. Mas não se trata de fechar o Congresso. Concentrar poderes no Executivo só facilitaria o poder corruptor dos ricos e poderosos.

As grandes revoluções sempre entregaram o governo a grandes parlamentos, eleitos e fortemente controlados pelo povo. Em nossa atual situação política, o controle é do poder econômico. Por isso, gente como Renan não age em nome da grande maioria do povo brasileiro, mas é o melhor representante da sociedade injusta em que vivemos.


5 de fevereiro de 2013

Na internete, somos nossos próprios “arapongas”

O Habeas Data é uma ação jurídica que permite ao interessado acessar seus registros pessoais em arquivos de entidades públicas ou de caráter público.

Através desse instrumento legal muitos militantes de esquerda conseguiram acessar suas fichas nos arquivos dos órgãos de repressão. Segundo alguns deles, o nível de detalhamento é muito alto. São informações precisas sobre encontros e reuniões, participação em eventos, em lutas e outras ações etc.

O número de agentes policiais para chegar a esse nível de precisão devia ser grande. Mas, hoje, o Estado já não deve utilizar tantos “arapongas”. Não porque se interesse menos pelo que fazem os ativistas de esquerda. É que os próprios militantes fazem o grosso desse serviço.

Como diz Julian Assange, “a internet se transformou no maior instrumento de vigilância já criado e a liberdade que ela representa está ameaçada”. O criador do WikiLeaks fez esta afirmação em uma entrevista concedida ao Estadão, em 03/02.

Assange afirma que “as pessoas estão fazendo bilhões de horas de trabalho gratuito para a CIA”. Afinal, diz ele, “mesmo que você não esteja no Facebook, seu irmão está e está relatando sobre você”. Assange exagera para valorizar seu próprio negócio: vender informações vazadas.

Google e Facebook são muito mais indutores de comportamento conformista que ferramentas de vigilância política. O que não impede que venham a negociar essa montanha de dados com governos.

Mas não é o caso de deixar de usar a internete. Seria como se recusar a imprimir jornais e panfletos porque cairiam nas mãos dos aparelhos de repressão. Combater a ordem é inseparável da convivência com esses riscos.

3 de fevereiro de 2013

É o imperialismo, ô esperto!

Marcelo Justo publicou o artigo “Sementes da próxima crise financeira” na Carta Maior, em 30/01. Em linhas gerais, o texto afirma que “o neoliberalismo foi desmoralizado, mas o sistema financeiro conservou poder e transfere suas dívidas aos Estados”.

O artigo cita o professor de economia da Universidade de Cambridge, Gabriel Palma. Para ele, o grande problema é a financeirização da economia. E menciona o caso da General Motors, que chegou a investir no mercado hipotecário antes de quebrar.

Enquanto isso, o economista Ismail Ertgurk, da Universidade de Negócios de Manchester, anuncia o “predomínio do setor financeiro” também na política. Os bancos centrais dos EUA, do Reino Unido e da Zona do Euro “estão se endividando perigosamente para resgatar o setor financeiro”, diz ele.

É o que mostra um estudo sobre a dívida do Mc Kinsey Global Institute:

...em 2011 a dívida total do Japão – a maior do mundo desenvolvido – equivalia a cerca de 512% de seu PIB (mais de cinco vezes o total produzido por sua economia no ano). O Reino Unido vinha em segundo lugar com 507%. A primeira potência planetária, os EUA, “só” tinham 279%.

Todo esse debate tem cheiro de naftalina. “Imperialismo, fase superior do Capitalismo” foi publicado por Lênin em 1917. Já falava em “financeirização do capitalismo”. Tudo o que está acontecendo nada mais é que o resultado de tendências presentes no capitalismo desde o final do século 19.

Claro que de lá para cá muita coisa mudou. Mas continuamos a voltar aos diagnósticos óbvios de “experts” da Academia. A doença já se instalou e avança pelo organismo. É o imperialismo, pô!

1 de fevereiro de 2013

A surdez de quem esqueceu os próprios gritos

Antônio Carlos Fon escreveu o emocionado e tocante artigo “Morri um pouco hoje”. O texto deve ser lido por todos os que lutam pela liberdade humana. Nele, o jornalista relata a visita que fez recentemente ao 36º Distrito Policial, onde sofreu torturas durante a ditadura militar.

Em um trecho marcante, Fon conta que não conseguia entender por que não ouviu os gritos de outro companheiro submetido à tortura, apesar de estarem separados por uma divisória de madeira. A explicação partiu de Darci Miyaki, outra vítima da covardia dos quartéis. Segundo ela, “a gente não ouve os gritos das outras pessoas enquanto nós mesmos estamos gritando”.

Quem está tomado por dores terríveis, realmente não pode cuidar da dor de mais ninguém. Foi desse modo covarde que os carrascos a serviço dos governos militares dobraram homens e mulheres que combatiam heroicamente sua tirania.

Mas vivemos num tempo em que mesmo os ouvidos mais saudáveis e livres de incômodos estão insensíveis à agonia alheia. Os gritos ficam suspensos no ar porque há poucos capazes de ouvir seu apelo.

Estamos falando do sofrimento de milhares de comunidades rurais e urbanas ameaçadas por obras grandiosas e caras. Ou daqueles que são recolhidos a laço pelas “autoridades sanitárias”. Ou ainda das vítimas de racismo, machismo, homofobia, exploração infantil e das milícias que exterminam pobres...

O pior é ver que tal insensibilidade acometeu exatamente algumas das vítimas dos paus-de-arara. No passado, elas sobreviveram heroicamente aos próprios urros de dor. Hoje, estão encerradas nos gabinetes do poder. Ficaram surdas aos gritos de desespero que vêm dos de baixo.