Doses maiores

31 de outubro de 2016

Onde estão os nossos refugiados?

Em 28/10, os jornais divulgaram dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As estatísticas revelam o Brasil como o país que mais mata no mundo.

Entre 2011 e 2015, foram 278 mil ocorrências de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil. No mesmo período, foram 256 mil mortes violentas na Síria, em guerra civil desde 2011.

Mas aqui também não passaríamos por um conflito interno não oficializado? De um lado a polícia mais violenta do planeta. De outro, criminosos que, estranhamente, têm acesso a armamento pesado de uso exclusivo das forças armadas.

Aqui, como na Síria, as maiores vítimas são inocentes, principalmente pretos e pobres. Mas, se tudo isso é verdade, onde estariam nossos refugiados?

No encontro em que foram anunciados os terríveis números de nossa “segurança pública”, Michel Temer anunciou mais verbas para o setor. Destas, pelo menos, R$ 788 milhões para a construção de penitenciárias. Mais prisões num país que está entre os que mais encarceram no mundo sem que isso tenha levado a qualquer alívio importante na violência.

Possivelmente, são nesses cárceres que estão muitos de nossos refugiados. Neles e nos bairros pobres, verdadeiros campos de internação, com seus toques de recolher impostos por polícia, milícia ou tráfico.

P.S.: a pílula de ontem enxergou na atual situação brasileira fortes semelhanças com o período da República de Weimar, na Alemanha dos anos 1920. Mas na comparação, teria faltado um elemento importante: as trágicas consequências da Primeira Guerra Mundial. Pelo que se viu acima, tal elemento já não falta mais. 

Leia também:
Das prisões ocidentais para o Estado Islâmico

30 de outubro de 2016

Precisamos falar da República de Weimar

Em agosto de 1919, na cidade de Weimar, foi aprovada a primeira constituição republicana da Alemanha. Nascia a República de Weimar. Diante da confusão política e social causada pela derrota alemã na Primeira Guerra, o governo caiu no colo dos socialdemocratas.

Mas as liberdades democráticas conquistadas eram insuficientes frente à enorme crise social causada pela derrota na guerra. Com parte da esquerda governando, a extrema direita ficou livre para explorar essas contradições.

Militantes socialistas eram perseguidos e mortos abertamente por milícias de direita. O governo ou se omitia ou dava ordens que eram ignoradas por aparelhos de repressão cheios de simpatizantes do fascismo.

Mas o maior erro das forças democráticas alemãs ficou inscrito na própria constituição que fundou a República de Weimar. Seu artigo 48 dava ao presidente poderes ditatoriais em caso de ameaças à “ordem pública”.

A medida foi adotada por receio de que as agitações revolucionárias que haviam sacudido o país no final da guerra se repetissem. Em 1923, surgiu nova onda de mobilizações sociais. O governo socialdemocrata utilizou o artigo 48 para entregar o poder ao Exército.

Mas o pior estava por vir. Em 1933, Hitler, líder do segundo partido mais votado, foi nomeado primeiro-ministro. O pretexto para que ele usasse o artigo 48 veio com um incêndio no parlamento alemão. Comunistas e socialdemocratas foram condenados sem provas. Milhares deles foram presos e seus jornais censurados. Começava o reinado de terror dos nazistas.

Não é verdade que a história se repete. Mas é difícil não comparar nossa república de 1988 à república alemã de 1919. E o artigo 48 à “legislação antiterrorista”.

Leia também: O artigo 48 e as leis de exceção na Copa

26 de outubro de 2016

O reformismo conquista multidões

No artigo “As raízes econômicas do reformismo”, Tony Cliff considera equivocado explicar a origem do reformismo pelo conceito de “aristocracia operária”.

Este conceito foi utilizado por Lênin para descrever uma pequena parcela dos trabalhadores, principalmente os de maior qualificação. Ao desfrutar de melhores condições salariais, essa parcela acabaria defendendo os interesses da burguesia no interior da classe operária.

Essa hipótese pressupõe que na fase imperialista do capitalismo seria possível promover uma melhora substancial nas condições salariais de alguns poucos setores de trabalhadores.

Para testar essa hipótese, Cliff compara os salários dos trabalhadores qualificados e não qualificados entre as duas guerras mundiais na Grã-Bretanha, com sua economia “avançada”, e na Romênia, “país economicamente atrasado”. Descobre que há pouca diferenciação salarial entre os dois grupos nos dois países.

Cliff também compara as condições de vida dos trabalhadores na Grã-Bretanha (de 1957) com o cenário descrito em 1845 por Engels em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”. As condições melhoraram muito, mas, de novo, de modo generalizado.

Para o autor, a expansão imperialista do capital tornou possível aos sindicatos e partidos operários arrancarem concessões para os trabalhadores sem maiores ameaças ao sistema. Daí o surgimento de “uma grande burocracia reformista” capaz de bloquear o “desenvolvimento revolucionário da classe trabalhadora”. Sua principal função é a de servir como intermediária entre trabalhadores e patrões, negociando acordos entre eles e mantendo “a paz entre as classes”.

Ou seja, o reformismo ganha largas parcelas dos trabalhadores, não apenas alguns de seus setores. Para derrotá-lo não basta combater as burocracias, mas disputar a hegemonia junto à classe como um todo. Voltaremos ao tema.

Leia o artigo original, aqui (em inglês)

Leia também: Aristocracia operária e reformismo

25 de outubro de 2016

Aristocracia operária e reformismo

A profunda crise por que passa o PT pode dar esperanças à esquerda revolucionária de que as políticas reformistas finalmente sejam abandonadas. Mas mesmo uma derrota esmagadora do projeto petista não significaria necessariamente o fim do reformismo.

Para começar, o reformismo não resulta apenas de uma escolha feita por direções políticas “traidoras”, “vacilantes”, “moderadas”, “vendidas”. Esta visão decorre da concepção que Lênin popularizou sobre esse fenômeno político cujos limites se mostram cada vez mais evidentes.

Para ajudar a entender melhor essa questão, um bom texto é “As raízes econômicas do reformismo” publicado pelo marxista Tony Cliff, em 1957. O artigo lembra que Lênin define o reformismo como "a adesão de uma seção da classe trabalhadora à burguesia contra a massa do proletariado".

A esta camada de “operários burgueses” Lênin chamou de "aristocracia operária". Uma pequena parcela dos trabalhadores cujos ganhos seriam superiores aos da maioria da classe graças aos superlucros proporcionados pela fase imperialista do capitalismo.

Os principais alvos desse “suborno” de classe seriam os trabalhadores mais especializados, presentes em setores estratégicos da economia.

Seguindo esta formulação muitas correntes socialistas revolucionárias acreditam que seria suficiente romper essa “crosta” oportunista para que a lava vulcânica da revolução viesse à superfície, mandando pelos ares a dominação burguesa.  

O problema, diz Cliff, é que a história do reformismo na Grã-Bretanha, Estados Unidos e em outros lugares “ao longo do último meio século” demonstraria que a tese de Lênin sobre a aristocracia operária como base de apoio ao reformismo não se sustenta.

Na próxima pílula, mostraremos algumas evidências que Tony Cliff utiliza para provar essa sua ousada afirmação.  

Leia o artigo original, aqui (em inglês)

Leia também: O reformismo a caminho da barbárie

24 de outubro de 2016

Nosso sistema judiciário e suas verdades fedidas

No sistema judiciário brasileiro, não é preciso ser criminoso para parar na cadeia. Muitas vezes, é suficiente ser pobre e preto. E sem julgamento.

Por outro lado, basta que o meliante seja rico para que a prisão represente um mal menor, a ser remediado com advogados muito bem pagos e juízes pouco rigorosos.

Os estudiosos do sistema penal dizem que a privação da liberdade tornou-se pena máxima com a consolidação da sociedade burguesa.

Antes, com servidão, escravidão e outras formas de cativeiro, o bem maior de que o delinquente podia ser privado era sua integridade física: mutilações, esquartejamentos, a morte.

Agora, quando a ideologia dominante afirma que “somos todos livres e iguais” perante a lei, o maior castigo possível é a privação do direito de ir e vir.

A desmentir essas teses, alguns poucos bilionários foram condenados a desfilar de tornozeleiras eletrônicas pelos bairros chiques de sua cidade. Foram sentenciados a ficar encerrados em seus casarões luxuosos, com piscinas, quadras esportivas e uns 10 empregados.

É mais ou menos o caso de Fernando Cavendish, o dono da empreiteira Delta Construções. Ele vem respondendo a processos por fraudes em obras contratadas pelo governo do Rio de Janeiro, sob a gestão de Sérgio Cabral. Entre elas, a reforma do Maracanã e o Arco Metropolitano.

Segundo o que disse Elio Gaspari em sua coluna de 23/10, no Globo, alguém teria perguntado a Cavendish:

–Você não tem medo de acabar preso?

–Não. O que eu tenho medo é de ficar pobre.

Real ou não, o diálogo tem cheiro de verdade. Mas fede tanto que nem um lava-jato dá jeito.

23 de outubro de 2016

China Miéville contra as mariposas-libadoras

China Miéville é autor do livro "Estação Perdido", recém-lançado no Brasil.  Ele é marxista, formado em Antropologia Social, mestre e doutor em Relações Internacionais e membro do Partido Socialista Inglês.

Seu gênero literário é a ficção científica. Das mais loucas, mas também preocupada com questões sociais, raciais, ideológicas. O romance tem uma profusão de seres das mais diversas espécies. Eles vivem amontoados em cidades sujas, enfumaçadas, atravancadas e dominadas por minorias ricas, poderosas e cruéis.

Isaac Dan der Grimnebulin, o personagem principal, é um cientista humano meio louco. Sua namorada é uma artista plástica que tem um besouro no lugar da cabeça. O racismo entre as espécies não permite que eles assumam sua relação em público.

Uma entidade chamada Tecelão manipula as dimensões da realidade como se fossem fios de um tear. Mas o faz de modo caótico e delirante.

As grandes vilãs são as “mariposas-libadoras”. Elas sugam as mentes de suas vítimas, transformando-as em corpos inertes, que só defecam e babam.

Imunes a seus ataques apenas as máquinas, que não têm consciência, e o Tecelão, para quem sonhos e consciência são uma coisa só.

Para derrotá-las, Grimnebulin constrói um engenho de crise. Uma complexa combinação do cérebro cibernético das máquinas, da consciência onírica do Tecelão e da mistura de consciente e inconsciente da mente humana. Essa combinação pretende aproveitar o que há de mais abundante na realidade social para derrotar as borboletas vampiras: as crises.

Qualquer semelhança com nossa realidade, rasgada por contradições, repleta de crises e à mercê de uma ideologia dominante que mutila nossas capacidades mentais, talvez seja mera coincidência. Talvez...

Leia também: O animal que calcula

21 de outubro de 2016

O reformismo a caminho da barbárie

Hora de encerrar as pílulas sobre o livro “Capitalismo e Social Democracia”, de Adam Przeworski. Mas voltaremos à obra. Há outros elementos importantes que ainda merecem atenção. Por enquanto, fiquemos com algumas de suas afirmações sobre o socialismo:

Se o socialismo consiste em pleno emprego, igualdade e eficiência, então os socialdemocratas suecos estão razoavelmente perto de alcançá-lo.

O socialismo não é um movimento pelo pleno emprego, mas pela abolição da escravidão salarial. Não é um movimento pela eficiência, mas pela racionalidade coletiva. Não é um movimento pela igualdade, mas pela liberdade.

A abolição do capitalismo é uma necessidade não porque assim determinam as leis da História, ou porque, de alguma forma, o socialismo é superior a ele (...), mas apenas porque nos impede de nos tornar tudo o que poderíamos ser se fôssemos livres.

A democracia socialista não é algo que possa ser encontrada nos parlamentos, fábricas ou famílias: não é simplesmente uma democratização das instituições capitalistas. Liberdade significa desinstitucionalização...

O socialismo será possível apenas quando tornar-se mais uma vez um movimento social e não apenas algo de natureza econômica (...). A luta para melhorar o capitalismo é mais essencial que nunca. Mas não devemos confundir esta luta com a busca pelo socialismo.

As afirmações acima são de 1985. Desde então, ruíram as experiências ditas “socialistas” e a ofensiva neoliberal que se seguiu trouxe destruição ambiental, guerras frequentes e cruéis, democracias blindadas e fascismos revigorados.

Portanto, a luta por reformas continua a ser necessária. Limitar-se ao reformismo, no entanto, significa não apenas afastar-se do socialismo, mas fortalecer o caminho que leva à barbárie. 

Leia também: O fracasso do reformismo pelo voto

19 de outubro de 2016

Que tal escolher governantes por sorteio?

Em sua última coluna na Folha, Gregório Duvivier citou o interessante livro “Contra as eleições”, de David Van Reybrouck.

Em um artigo publicado no The Guardian, em 29/06, Reybrouck resumiu seus argumentos. Ele afirma, por exemplo, que dos três mil anos de experiências democráticas, só nos últimos 200 elas são praticadas exclusivamente pela realização de eleições. Mesmo assim, são consideradas o único método democrático válido.

Por algum tempo, diz Reybrouck, essa simplificação da democracia deu certo. Mas nas últimas décadas as eleições se tornaram “os combustíveis fósseis da política”. Um recurso que já foi muito útil passou a envenenar a atmosfera social.

A partir da Segunda Guerra, afirma o autor:

...as democracias ocidentais foram dominadas por grandes partidos de massa (...). Isto resultou em um sistema extremamente estável, com grande coerência partidária e comportamento eleitoral previsível.

Mas tudo mudou nos anos 1980, quando o sistema político passou a ser “cada vez mais moldado pelo mercado livre”. “Cidadãos tornaram-se consumidores e eleições, operações de risco”.

Diante disso, o autor sugere voltarmos “ao princípio central da democracia ateniense: a indicação de governantes por sorteio”. Algo que também vigorou nos estados renascentistas de Veneza e Florença, assegurando-lhes “longos períodos de estabilidade política”.

Para quem acha a ideia uma loucura, Reybrouck lembra que os jurados nos tribunais são escolhidos desse modo. Pessoas leigas, selecionadas com base em diversidade social e bons antecedentes, são encarregadas de tomar decisões de enorme responsabilidade.

A proposta é mirabolante demais para o mundo real. Mas na política institucional atual, dominada por tecnocratas e suas fórmulas econômicas neoliberais, já não contamos nem mesmo com a sorte.

Leia também: Os poderes mágicos do voto

18 de outubro de 2016

O fracasso do reformismo pelo voto

Em “Capitalismo e Social Democracia”, Adam Przeworski considera que “a crise do keynesianismo é a crise do capitalismo democrático”. Na verdade, poderíamos dizer que se trata do fracasso da crença em reformas socialistas obtidas pelo voto.

E se a questão é a relação entre eleições e socialismo, recomenda-se consultar a obra de Marx.

Segundo Przeworski, Marx considerava a convivência entre propriedade privada dos meios de produção e sufrágio universal uma combinação explosiva. Levaria ou à "emancipação social" das classes oprimidas devido a sua condição de maioria, ou à "restauração política" da classe dominante por meio do poder econômico de que ela dispõe.

Por isso, Marx acreditava que a democracia capitalista somente se manifestaria como um "estado excepcional e espasmódico de coisas”, sendo impossível se estabelecer como funcionamento normal da sociedade.

Aparentemente, esta avaliação foi desmentida pela história política posterior. Mas considerando o direito ao voto universal como critério para definir a democracia moderna, teríamos apenas uns 60 anos de sua vigência nos dois séculos de existência do capitalismo. Assim mesmo, para, no máximo, uns 30% da população mundial.

Mas até mesmo essa democratização tímida começou a ser revertida pelo neoliberalismo a partir dos anos 1980. Governos eleitos passaram administrar miudezas. Bancos centrais e gabinetes econômicos ficaram encarregados do que realmente importa: a manutenção da acumulação capitalista, gerando enormes lucros para muitos poucos.

Ou seja, Marx não estava tão errado ao denunciar o caráter espasmódico da democracia burguesa. Afinal, limitar a participação popular à realização de eleições é tão equivocado para a maioria quanto conveniente para a minoria.

Na próxima pílula, que tal indicar governantes por sorteio?

Leia também: O keynesianismo e o pior dos reformismos

O beco sem saída do reformismo keynesiano

Em “Capitalismo e Social Democracia”, Adam Przeworski considera que a teoria keynesiana justificou a criação do chamado “Estado de bem-estar social”.

As concepções econômicas de John M. Keynes teriam permitido aos socialdemocratas europeus descobrirem que “a economia poderia ser controlada, e o bem-estar dos cidadãos continuamente reforçado pelo papel ativo do Estado”.

Até então, os partidos socialistas representavam apenas a classe operária, diz o autor. Agora, os interesses particulares de curto prazo dos trabalhadores poderiam ser contemplados de forma a coincidir com os interesses de longo prazo de toda a sociedade.

Tudo isso funcionava, na prática, do seguinte modo:

(1) o estado opera aquelas atividades que não são rentáveis para as empresas privadas, mas necessárias para a economia como um todo; (2) o estado regula, nomeadamente através de políticas anticíclicas, o funcionamento do setor privado; e (3) o estado atenua, através de medidas de bem-estar, os efeitos distributivos do funcionamento do mercado.

O grande problema é que:

...tendo se envolvido com setores deficitários, os socialdemocratas minaram a sua própria capacidade de estender gradualmente o domínio público. Além disso, os efeitos ideológicos não podem ser negligenciados: a situação criada tornou o setor estatal notoriamente ineficiente pelos critérios capitalistas e o resultado foi uma reação contra o crescimento do Estado. (...) O alívio dos problemas não se torna transformação. De fato, sem a transformação, a necessidade de aliviar a situação se torna eterna.

O fato é que o capitalismo jamais teve vocação para a estabilidade. Muito menos, para aliviar os efeitos negativos de seu funcionamento.

Continua na próxima pílula.

17 de outubro de 2016

A loja de brinquedos de Eleanor e Karl Marx

Em 1895, Eleanor, filha de Karl Marx, escreveu que das muitas fábulas contadas por seu pai, a mais “maravilhosa e deliciosa” era a de "Hans Röckle":

Ela durou meses, era uma série inteira de histórias... O próprio Hans Röckle era um mágico tipo Hoffinann que tinha uma loja de brinquedos e que estava sempre "duro". Sua loja estava cheia das coisas mais maravilhosas - homens e mulheres de madeiras, gigantes e anões, reis e rainhas, servos e mestres, animais e pássaros tão numerosos quanto os que entraram na Arca de Noé, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de todos os tipos e tamanhos. Embora ele fosse um mágico, Hans nunca conseguia cumprir suas obrigações seja para com o demônio seja para com o açougueiro, e era portanto - muito contra a sua vontade - constantemente obrigado a vender seus brinquedos para o diabo. Esses brinquedos passavam, pois, por maravilhosas aventuras, terminando, sempre, por retornar à loja de Hans Röckle.

No livro “O casaco de Marx”, Peter Stallybrass lembra que antes de Eleanor nascer, seus pais endividados:

...tiveram sua casa invadida por oficiais de justiça para levar tudo, incluindo "os melhores brinquedos que pertenciam às filhas", arrancando lágrimas de Jenny e Laura. Mas nas estórias, tal como nas visitas à loja de penhores, para resgatar objetos anteriormente penhorados, o momento da perda é desfeito, os brinquedos voltam.

“Foi a esse desfazer sistemático da perda que Marx dedicou sua vida inteira”, diz Stallybrass. Não apenas a perda dele próprio, mas a “de toda a classe operária, separada dos meios de produção”.

Aos revolucionários também é imprescindível a sensibilidade lúdica.

16 de outubro de 2016

O keynesianismo e o pior dos reformismos

Em seu livro “Capitalismo e Social Democracia”, Adam Przeworski mostra os limites do keynesianismo como teoria do reformismo europeu.

Segundo a elaboração de John M. Keynes, o Estado deveria levar o empresariado a se comportar de acordo com os interesses gerais. Mas para isso, o setor público deveria possibilitar à iniciativa privada margens maiores de lucratividade.

O problema é que a lucratividade não sobe ou desce apenas pela vontade dos atores econômicos envolvidos. Muitas vezes, os lucros caem por força das crises econômicas periódicas e inevitáveis.

No “Manifesto Comunista”, Marx já afirmara que a burguesia não pode existir sem revolucionar o conjunto das relações sociais. Ou seja, é quase impossível assegurar longos períodos de estabilidade sob o capitalismo.

Muito provavelmente, os 30 anos de tranquilidade econômica do período posterior à Segunda Guerra resultaram da grande queima de capitais e vidas promovida por aquele conflito. Esgotados seus efeitos, a sustentação material do “Estado de Bem-Estar Social” ruiu. Desde então, as crises teriam retomado seu ritmo e se aprofundado.

No nível eleitoral, diz o autor, as consequências logo apareceram. Quando os salários caem ou o desemprego sobe, as pessoas simplesmente votam contra o governo de plantão, seja ele reformista ou não.

Nessa situação, afirma Przeworski, fica claro que “estar ‘no poder’ dá pouco poder: os socialdemocratas estão sujeitos à mesma dependência estrutural que qualquer outro partido”.

Por isso, há várias décadas, nenhum governo de esquerda consegue adotar o modelo do “Estado de Bem-Estar Social”. No máximo, há tentativas tímidas e de fôlego curto. Assim, chegamos ao pior dos reformismos. Aquele sem reformas.

Leia também: O beco sem saída do reformismo keynesiano

12 de outubro de 2016

Reformas fazem parte do caminho que o reformismo bloqueia

Prosseguindo a leitura do livro “Capitalismo e Social Democracia”, de Adam Przeworski, é importante trazer a contribuição de Rosa Luxemburgo.

Afinal, a grande revolucionária alemã foi duplamente pioneira ao tratar da dualidade reforma ou revolução que dá nome a seu mais famoso livro.

Por um lado, foi a primeira a denunciar os riscos do reformismo no interior do movimento socialista.

Por outro, Rosa apressou-se a advertir que opor reformas e revolução é uma das formas mais eficazes de abandonar a segunda para ficar apenas com as primeiras.

Tratava-se, dizia ela, de estabelecer uma relação dialética entre esses dois elementos, sem a qual a destruição do capitalismo permaneceria um objetivo distante e utópico.

São as reformas que colocam grandes parcelas do explorados e oprimidos em movimento, afirmava a autora. Mas é preciso mostrar que o reformismo não é apenas um caminho mais longo em direção a uma sociedade justa. Ele implica o próprio abandono desse caminho, concluiu.

Przeworski confirma essa avaliação quando diz que:

...o reformismo sempre foi justificado pela crença de que reformas são cumulativas, que constituem passos que levam em alguma direção. A atual política de socialdemocratas pela sua própria lógica não permite a acumulação de reformas.  

Em plena reversão das tímidas conquistas do período petista no Brasil, fica difícil discordar. Mas isso já aconteceu em outros momentos e em outros países. Por que, então, o caminho reformista segue resistente?

Parte da resposta a essa questão está relacionada ao “keynesianismo”. Segundo Przeworski, esta teoria econômica foi fundamental para a consolidação do reformismo na Europa. Este o tema da próxima pílula desta série.

Leia também: Ainda sobre a persistência do reformismo

11 de outubro de 2016

Ainda sobre a persistência do reformismo

Quando estão no governo, os “partidos socialistas comportam-se como todos os outros: com algum viés distributivo voltado para seu próprio eleitorado, mas cheio de respeito aos princípios sagrados do orçamento, políticas anti-inflacionárias, padrão-ouro equilibrado, etc.”.

O comentário acima poderia referir-se à recente experiência petista no governo federal. Mas é de 1985 e relaciona-se a décadas de experiências socialdemocratas na Europa. Está no livro “Capitalismo e Social Democracia”, de Adam Przeworski.

Segundo o autor, ao longo do século 20, sempre que:

...os socialdemocratas chegaram ao poder na Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Grã-Bretanha, Noruega e Suécia, os ricos foram deixados em paz e a propriedade privada dos meios de produção não foi perturbada.

Para usar um exemplo clássico, nas eleições de 1912, o Partido Socialdemocrata Alemão alcançou 34,8 % dos votos, obtendo o dobro da votação do segundo colocado. No entanto, o partido restringiu-se a defender reformas nos limites das instituições burguesas, culminando com a desastrosa posição favorável à participação alemã na Primeira Guerra.

Os trechos citados mostram como é antiga a contradição entre ganhar governos ou maiorias parlamentares e continuar a representar os interesses da maioria explorada. Recente, mesmo, só sua história entre nós.

O reformismo poderia ser considerado viável desde que suas conquistas fossem cumulativas e irreversíveis, diz Przeworski. Mas “não é o que se constata ao olharmos para os poucos lugares do mundo onde elas foram realmente colocadas em prática pela esquerda”, conclui.   

Mesmo assim, o reformismo continuou a ser considerado alternativa viável nas décadas que se seguiram. Nós também continuaremos a procurar na obra de Przeworski algumas pistas para entender essa persistência.

Leia também: A esquerda mundial e a persistência do reformismo

10 de outubro de 2016

A esquerda mundial e a persistência do reformismo

Tão inegável como a crise por que passa o capitalismo, são os graves problemas que atingem setores importantes da esquerda mundial.

É o caso do Podemos espanhol, do Syriza grego e do PT brasileiro. Ainda que em ritmos, momentos e com problemas bem diferentes, todas essas forças políticas passam por crises agudas.

Uma importante exceção seria o trabalhismo inglês, que parece viver um ressurgimento de sua militância mais radical, liderada por James Corbyn. 

Mas mesmo o que ocorre no partido trabalhista serve para mostrar a resistência do reformismo como horizonte para as lutas dos setores explorados e oprimidos da sociedade.

Para tentar entender melhor essa situação, talvez fosse pertinente retomar a leitura de “Capitalismo e Social Democracia”, publicado por Adam Przeworski em 1985. A começar pela seguinte passagem:

... participar [ou não] das instituições políticas burguesas, mais especificamente, das instituições eleitorais. Esta questão continua a dividir os movimentos da classe trabalhadora, desde a cisão na Primeira Internacional, em 1870, passando pela Segunda Internacional até os atuais debates sobre a participação em governos burgueses. No entanto, precisamente porque os trabalhadores são explorados na condição de produtores e precisamente porque as eleições estão dentro dos limites instrumentais necessários à satisfação de seus interesses relevantes no curto prazo, todo partido se vê na situação de ou entrar nas disputas eleitorais os perder sua base de apoio.

Ou seja, o dilema reforma x revolução tem uma longa história naquela que é a esquerda mais antiga do mundo. Portanto, seria muito importante aprender com essa experiência. É o que pretendem abordar as próximas pílulas, com ajuda da obra de Przeworski.

Leia também: O fracasso do reformismo não implica o fim da luta por reformas

9 de outubro de 2016

Dória venceu porque é trabalhador

Em 05/10, Talita Bedinelli publicou matéria no portal El País sobre a vitória de João Dória para a prefeitura paulistana. Entre as pessoas que ela ouviu, estava o gráfico Domingos dos Santos Araújo, morador da periferia de São Paulo.

Araújo justificou sua opção pelo tucano por tratar-se de alguém que começou “de baixo, como o Lula. Ele é um trabalhador e convenceu a classe trabalhadora...".

Em 07/10, o IHU-Online publicou ótima entrevista com o sociólogo Henrique Costa. Comentando as eleições paulistanas, ele atribuiu a vitória de Doria ao mesmo discurso meritocrático que foi usado pelos petistas para comemorar o surgimento de uma “nova classe média”. Esse discurso, diz ele, contribuiu para transformar Doria em alguém que teria “saído de uma situação de inferioridade social para virar um empresário bem-sucedido”.

Por trás dessa falsa imagem está o fato de que a burguesia é a primeira classe dominante na história que também trabalha. O que diferencia os capitalistas de seus antecessores não é o ócio, muito menos o luxo. É sua capacidade de se tornarem mais ricos e poderosos enquanto exploram o trabalho alheio em tempo integral.

É por isso que Marx defendia o fim da exploração do trabalho humano a partir da extinção do próprio trabalho assalariado, seja formal ou informal.

A luta pelo pleno emprego não pode se tornar um fim em si mesmo. Como disse certa vez Rosa Luxemburgo, a exigência por mais empregos pode se transformar em luta por mais exploração. A perda dessa perspectiva pode levar os socialistas a terríveis derrotas, mesmo em disputas tão mesquinhas como as eleitorais.

7 de outubro de 2016

Das próteses mentais às viseiras cerebrais

Em 1938, H.G. Wells publicou um ensaio prevendo a criação de uma biblioteca reunindo todo o conhecimento produzido no mundo. Uma espécie de “Cérebro Mundial”, título do texto.

Em 2013, Ben Lewis lançou o documentário “Google, o Cérebro Mundial”, comparando as pretensões da poderosa empresa estadunidense às previsões de Wells. Mais especificamente, em relação ao Google Books, voltado à digitalização de todos os livros lançados no planeta.

Desde então, os desenvolvimentos de aplicativos digitais parecem caminhar não apenas em direção à tal biblioteca mundial. Ao nos oferecerem seus serviços, Google, Facebook e outras empresas semelhantes se apropriam de nossas informações e hábitos para negociar no mercado.

O mais recente lançamento nesse sentido é o smartphone Pixel, da Google. Ele traz um sistema operacional que pretende saber tudo de seu usuário. De gostos estéticos e culinários ao tipo preferido de decoração residencial.

Mas o maior problema não é apenas a geração de enormes lucros às custas de nosso trabalho gratuito. Grave, mesmo, é que o uso dessas informações tende a reafirmar nossos hábitos, costumes, valores. Um mecanismo que nos isola de contradições e diferenças e pode rebaixar nossa dimensão pessoal ao nível raso do consumismo.

Os computadores pessoais são as mais ambiciosas de nossas ferramentas. Sua principal função é imitar o cérebro humano. Mas as recentes inovações em engenharia da informação os transformaram em próteses mais que em ferramentas. Ao invés de auxiliar nossas percepções e habilidades, pretendem substituí-las.

No entanto, os próximos passos podem ir ainda mais longe. No lugar de substituir nossas capacidades e disposições mentais, as próximas próteses ameaçam mandar nelas.

Leia também: Sem saber, participamos da mais óbvia conspiração

5 de outubro de 2016

Os poderes mágicos do voto

O fetichismo atribui poderes sagrados a certos objetos. Isso vale tanto para o patuá afro-religioso como para o crucifixo cristão. E, segundo Marx, para a mercadoria na sociedade capitalista.

O direito ao voto nas eleições políticas também pode ganhar esse caráter. Mais especificamente, em sua manifestação como sufrágio universal.

Por meio dele a prosperidade geral estaria ao alcance de mulheres e homens adultos e em dia com as leis.

Eis porque muita gente confere tanta dramaticidade a resultados eleitorais à esquerda ou à direita, ou a votos anulados ou invalidados.  

O fetichismo também pressupõe uma inversão. Objetos que são produzidos por mãos humanas passam a dominar a vida de seus criadores.

Por exemplo, direitos e conquistas históricas dos trabalhadores e população em geral seriam resultado da democracia representativa, forma sagrada do sufrágio ecumênico.

Portanto, uma boa medida sobre quão longe chegou uma democracia seria a adoção do sufrágio universal. Em especial, do voto feminino.

Segundo esse critério, no entanto, a grande maioria dos países só chegou à plenitude democrática a partir de meados do século passado.

Um exemplo flagrante é a França. No berço da democracia burguesa, as mulheres puderam votar apenas em 1944. Logo ali, ao lado, suíças e espanholas só conseguiram garantir esse direito nos anos 1970.

E é assim que se revela o fetichismo que cerca o voto. Foram as seculares e sangrentas lutas dos explorados e oprimidos que arrancaram inúmeras conquistas às classes dominantes, incluindo o sufrágio generalizado. Não o contrário.

Desfazer essa inversão é uma das condições iniciais para qualquer pretensão à necessária subversão de uma sociedade profundamente injusta e antidemocrática.

4 de outubro de 2016

O PT e a ética da criminalidade moralista

O PT gostava de se apresentar como o campeão da “ética na política”. Mas seu maior erro foi confundir moralidade com legalidade. Roubos, subornos, compra de votos, superfaturamentos são crimes, não apenas condutas vergonhosas.

O campo da ética, propriamente dito, é aquele que envolve a escolha entre condutas consideradas adequadas ou inadequadas. Não diz respeito a atos legais ou ilegais. É aí que entra a situação que o partido de Lula criou para si mesmo.

Quando prometo algo e cumpro, estou tendo um comportamento ético. Mas se cumprir essa promessa envolve a morte de alguém, minha ética é criminosa e devo ser punido por ela.

Quando o PT passou a cometer ilegalidades para ocupar e manter postos no sistema político, adotou os valores morais que nele predominam. Esperava, portanto, tratamento semelhante ao que recebem aqueles que têm o mesmo comportamento. Ou seja, contava com a impunidade.

Acontece que os valores morais que orientaram a fundação do PT eram outros. O partido nasceu das lutas contra a legalidade suja da ditadura empresarial-militar. Foi parido e se criou na condição de péssimo exemplo para a educação moral e cívica dos generais. Pior que isso, tornou-se referência para amplos setores dos explorados e oprimidos.

Tudo isso rendeu ao PT o eterno ódio dos poderosos. Mas estes souberam esperar. Os mais astutos entre eles atraíram o partido para suas armadilhas institucionais. E quando surgiu a oportunidade certa foi condenado pelos mesmos crimes que seus inimigos cometem, mas pelos quais jamais responderão. 

Eis aí a ética que prevalece na política institucional. Nela moralismo e criminalidade coincidem e se reforçam mutuamente.

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