Doses maiores

30 de novembro de 2024

Utopia, atopia, distopia

Pawel Kuczynski
A atopia não é um não lugar. A atopia não é um novo tipo de espaço, nem um território simulacro, nem poderia ser definida inteiramente como uma pós-territorialidade, no sentido único do superamento das formas físicas e geográficas do espaço. Melhor seria defini-la como a substituição destas por uma forma informativa digital e transorgânica, cujos elementos constitutivos são as tecnologias informativas digitais, os ecossistemas informativos elaborados pelos sistemas informativos geográficos e territoriais e as redes sociais, compostas pela fusão de coletivos inteligentes e pelas formas híbridas do dinamismo das linguagens transorgânicas. O habitar atópico se configura, assim como a hibridação, transitória e fluida, de corpos, tecnologia e paisagem...

A definição acima é do professor da USP, Massimo Di Felice. Apesar da abordagem exageradamente acadêmica e, sem necessariamente concordar com tudo o que ela propõe, traz um elemento importante para pensar a organização social tal como a vivemos na segunda década do século 21.

Uma sociabilidade marcada pelas redes digitais, por meio das quais acessamos e somos acessados, quase sem restrições de tempo e espaço. Seja no trabalho, na vida afetiva ou na militância, nos relacionamos instantaneamente, sem deslocamentos, lugares fixos, respeito a horários e, muitas vezes, sem nem mesmo recorrer às tradicionais saudações de chegada e partida.

Um fenômeno que vem se tornando presente na vida cotidiana dos últimos 10 ou 12 anos e mudando tudo de forma mais radical do que imaginamos. Principalmente, quanto às disputas de poder e na luta de classes, em geral.

Atopia não é utopia e tem grandes chances de nos levar às piores distopias. Voltaremos ao tema.

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28 de novembro de 2024

O capitalismo canibalizando o planeta

Em seu livro “Capitalismo Canibal”, Nancy Fraser, afirma que expropriação e exploração atuam juntas e contribuem para a acumulação capitalista. A exploração transfere valor para o capital disfarçando a exploração sob uma suposta troca contratual livre. Já na expropriação, os capitalistas dispensam todas as aparências e confiscam pura e simplesmente os bens de outras pessoas, pelos quais pagam pouco ou nada. Por isso, a expropriação, longe de estar confinada aos primórdios do sistema, é um processo contínuo.

Uma das esferas em que isso acontece é a do trabalho doméstico e cuidados familiares, como vimos na última pílula. As expropriações ocorridas no âmbito da destruição ambiental constituem outra condição de fundo necessária para a produção de mercadorias e a acumulação de capital.

Já existia uma distinção entre a Humanidade, vista como espiritual, sociocultural e histórica, e a Natureza, vista como material, objetiva e a-histórica. Com o surgimento da ordem do capital, porém, essa divisão se aprofunda e o próprio planeta passa a ser canibalizado. 

Mas além disso, afirma Nancy:

...ao se apropriar da natureza, o capital expropria, ao mesmo tempo, as comunidades humanas para as quais a matéria confiscada e as cercanias conspurcadas constituem habitat, meios de vida e matéria base de sua reprodução social. Assim, essas comunidades assumem uma fatia desproporcional do peso ambiental global; e sua expropriação garante a outras comunidades (“mais brancas”) a chance de se protegerem, pelo menos por um tempo, dos piores efeitos da canibalização da natureza pelo capital.

É assim que a expropriação pós-colonial se combina à destruição ambiental. Voltaremos ao tema em breve.

27 de novembro de 2024

Reprodução social e expropriação capitalista

Marx chamou de expropriação ao processo que separa pessoas e comunidades dos recursos e instrumentos necessários para sua subsistência.

Um exemplo clássico de expropriação foi a expulsão dos camponeses europeus de suas terras comunais, obrigando-os a vender sua força de trabalho aos capitalistas. Outro foi a escravização de negros e indígenas, transformados em mão de obra barata e abundante, utilizada, especialmente, nas grandes plantações das colônias americanas.

Mas é um grande equívoco pensar que a principal fase da expropriação capitalista ficou para trás, uma vez que a grande maioria dos camponeses já foi expropriada e a escravidão legalizada foi extinta.

Como diz Nancy Fraser, em seu livro “Capitalismo Canibal”, a expropriação é um mecanismo contínuo de acumulação e permanece como condição importante para a viabilização da exploração capitalista. A questão é que assumiu formas não reconhecidas. Tarefas domésticas e cuidados familiares, por exemplo, não costumam ser remunerados. Ainda assim, é trabalho imprescindível para o processo de geração da mais-valia capitalista.

A divisão entre produção econômica e reprodução social surgiu com o capitalismo. Essa separação sustenta as modernas formas de subordinação das mulheres e a importância social do trabalho delas fica não apenas obscurecida, como mistificada pelo conservadorismo. Reproduzir a família é muitas vezes considerado uma obrigação religiosa. Mas o deus a que serve é o do capital.  

Algo semelhante, diz Nancy, ocorre na apropriação destrutiva da natureza e na “captura forçada e contínua da riqueza de povos subjugados”. Tais relações são igualmente tratadas como elementos externos às relações entre capital e trabalho.

Mas essas outras esferas da vida humana serão tema da próxima pílula.

Leia também: Capitalismo, uma serpente autofágica

26 de novembro de 2024

A amenidade assassina dos golpistas nacionais

No artigo “Golpe sangrento fugiria à nossa tradição”, publicado hoje no Globo, Pedro Doria relaciona sete golpes militares bem-sucedidos na história brasileira. “Em cada um desses momentos, diz ele, ao menos um general decidiu rasgar a Constituição”. Mas em nenhum deles foi derramado o sangue dos governantes depostos, ressalva Doria. E isso indicaria que “nossas ditaduras estavam num degrau mais ameno da barbárie vizinha”.

Por isso, argumenta o colunista, “dar golpes militares é coisa brasileira, sim”. Mas, referindo-se ao que foi planejado pelos bolsonaristas, prevendo uma série de assassinatos, não seria “um golpe brasileiro”.

Doria até admite que “a violência dos porões não foi pouca”, mas posicionar as barbáries das ditaduras de nossa história num nível “mais ameno” é um absurdo. Um desrespeito às milhares de vítimas torturadas, executadas e desaparecidas que não contavam com a integridade física garantida somente aos setores dirigentes.

Um golpe de estado sempre opõe parcelas da classe dominante a outras. Nesse caso, podem ocorrer prisões, exílio, processos jurídicos viciados, arbitrariedades. Mas são os de baixo que sofrem a mais extrema violência física. No regime militar, por exemplo, morreram mais de 8 mil, somente entre os indígenas.

Que as elites nacionais nunca tenham se confrontado até o derramamento de sangue não é um traço pitoresco de sua dominação. É uma evidência dos bons modos com que se relacionam, reservando a selvageria mais cruel aos de baixo.

A truculência bolsonarista não é uma excrescência irracional. É uma atitude correspondente ao ódio e repulsa das classes dominantes a qualquer possibilidade de que os explorados e oprimidos passem a confiar em suas próprias forças.

Leia também: O fascismo e a violência corriqueira do capital

23 de novembro de 2024

A luta contra a escala 6x1 e o reformismo sem medo

O cientista político Marcos Nobre afirma que a direita brasileira atualmente divide-se entre uma ala “com medo” e outra “sem medo”. Esta última não teme se unir a fascistas como Bolsonaro. A primeira receia que o fanatismo bolsonarista abra brechas no sistema de dominação. Por isso, apoiou a única opção disponível capaz de enfrentar a extrema direita e, ao mesmo tempo, manter as mobilizações sociais em banho Maria.
 
Já André Singer, outro cientista político, chamou o projeto de esquerda dominante no País de lulismo. E sua essência seria um reformismo fraco, com mudanças graduais e limitadas, sem ameaças à ordem e em aliança com setores conservadores.

Mas veio a onda ultraconservadora, o golpe de 2016, a eleição de um presidente fascista com suas políticas sanitárias genocidas e pretensões golpistas de voltar ao poder. A resistência representada por Lula a tudo isso foi fundamental, mas deixou ainda mais ralo o tal reformismo fraco.

Felizmente, muitas vezes, a luta de classes assume as formas mais inesperadas. É o caso da campanha contra a escala de trabalho 6x1. Uma luta que não apenas ganhou enorme apoio popular, como foi protagonizada por duas pessoas negras: um trabalhador precarizado gay e uma deputada federal trans. Sob um conservadorismo extremado e a mais selvagem lógica neoliberal, trata-se de um exemplo evidente do que pode fazer um reformismo forte e destemido. 


O trágico é que essa situação também revelou as enormes contradições no interior do campo antifascista. Demonstrou que o oposto do reformismo forte não é um reformismo fraco, mas uma esquerda com medo.

Leia também: VAT, 6x1 e capital canibal

21 de novembro de 2024

Trump e o ancestral racismo da América

“Make America Great Again”, brada Donald Trump. A tradução seria “Faça a América Grande Novamente”.

Para que não restem dúvidas sobre qual é a grandeza “americana” a que ele se refere, que tal lembrar as palavras de alguns daqueles que são considerados os maiores homens da história estadunidense.

Em 1785, Thomas Jefferson escreveu em “Notas sobre o estado da Virgínia”:

Sugiro, portanto, apenas como conjetura, que os negros, quer constituindo originalmente uma raça distinta, quer diferenciados pelo tempo e pelas circunstâncias, são inferiores aos brancos tanto física como mentalmente.


Em 1751, Benjamin Franklin publicou “Observações sobre o aumento da humanidade”, no qual manifestava sua contrariedade em relação ao tráfico negreiro pelas seguintes razões:

Por que incrementar o número dos filhos da África transportando-os para a América, onde nos é oferecida uma oportunidade tão boa de excluir todos os negros e escuros, e de favorecer a multiplicação dos formosos brancos e vermelhos?

Por fim, em  1858, durante campanha eleitoral em que disputava uma cadeira no senado, Abraham Lincoln declarou:

Existe uma diferença física entre as raças branca e negra que, em minha opinião, sempre impedirá que as duas raças vivam juntas em condições de igualdade social e política. E, na medida em que não podem viver dessa maneira, enquanto permanecerem juntas deverá existir uma posição de superioridade e uma de inferioridade, e eu, tanto quanto qualquer outro homem, sou a favor de que essa posição de superioridade seja conferida à raça branca.

Como se vê, Trump não representa nenhuma ruptura com a tradição histórica estadunidense e prova que a “América” jamais foi grande.

Leia também: De quem seria a culpa por um retorno de Trump?

14 de novembro de 2024

Capitalismo, uma serpente autofágica

“Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a nossa democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso”. Este é o título do mais recente livro da filósofa estadunidense Nancy Fraser.

“O verbo ‘canibalizar’, explica ela, significa privar um estabelecimento ou empreendimento de um elemento essencial para seu funcionamento a fim de criar ou sustentar outro”. E isso se assemelha, continua o texto, “à relação entre a economia capitalista e os territórios não econômicos do sistema: famílias e comunidades, habitats e ecossistemas, capacidades estatais e poderes públicos que têm sua substância consumida pela economia para inflar o próprio sistema”.

Para a autora, capitalismo se refere não a um tipo de economia, mas a um tipo de sociedade: “uma sociedade que autoriza uma economia oficialmente designada a acumular valor monetarizado para investidores e proprietários ao mesmo tempo em que devora a riqueza não economicizada de todos os demais”.

Para Nancy, a sociedade capitalista é como Ouroboros, mitológica serpente que se canibaliza engolindo a própria cauda. Criatura condenada a devorar sua própria substância. O resultado é a “crise generalizada de toda a ordem social em que todas as calamidades convergem, exacerbando-se entre si e ameaçando nos engolir por inteiro”.

São crises econômicas, mas também crises de cuidado, ecologia e política. Todas “absolutamente afloradas hoje, cortesia do longo período de comilança empresarial conhecido como neoliberalismo”.

O debate proposto por Nancy pretende “conectar a perspectiva marxiana a outras correntes emancipatórias da teorização crítica: feminista, ecológica, política, anti-imperialista e antirracista”. Sempre do ponto de vista anticapitalista. Uma contribuição importante e mais necessária do que nunca.

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13 de novembro de 2024

O fascismo e a violência corriqueira do capital

Rui Tavares, historiador português, político e colunista da Folha, lançou recentemente no Brasil o livro "Agora, Agora e Mais Agora". Reinaldo José Lopes, jornalista do mesmo jornal, o entrevistou em 09/11/2024. Abaixo, alguns trechos:

Se a democracia foi desenhada e pensada como um jogo no qual podemos nos opor uns aos outros, mas no qual sabemos que estamos limitados por determinadas regras, o que acontece com os nacional-populistas, com os neofascistas, podemos chamá-los por vários nomes, é que fundamentalmente eles têm uma atitude de insinceridade em relação ao jogo. Participam, mas não acreditam nele e querem acabar com ele.

Há cem anos, decidiram ser tolerantes com Hitler depois que ele passou alguns meses preso por uma tentativa de golpe de Estado. Ele acabou sendo libertado. Acreditou-se que o regime democrático, na Alemanha de então, era um recipiente vazio em que todas as posições deviam estar em pé de igualdade.

É impossível não pensar o que teria acontecido se a República alemã tivesse sido um pouco mais convicta e menos ingênua na defesa de seus valores. A democracia não se defende passivamente, e não podemos ficar de braços cruzados.

Para bom entendedor, meia palavra: Bolso...

Mas os recentes ataques ocorridos em Brasília parecem desmentir Tavares quando ele compara a democracia a um jogo. Seria melhor lembrar Clausewitz, que considerava a guerra como continuação da política por outros meios. Para os fascistas, porém, não há diferença substancial entre guerra e política. Esta última, para eles, apenas deve utilizar a mesma violência contra os de baixo que já faz parte do funcionamento corriqueiro da dominação capitalista.

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12 de novembro de 2024

VAT, 6x1 e capital canibal

A campanha pelo fim da escala de seis dias de trabalho por um de descanso (6x1) está bombando. Criada pelo vereador Rick Azevedo (PSOL-RJ) foi encampada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que está tentando transformá-la em Proposta de Emenda à Constituição.

A proposta faz parte do movimento liderado por Azevedo, chamado Vida Além do Trabalho (VAT). Os operários do século passado tinham seu próprio VAT. Lutavam pelas 8 horas diárias de trabalho. Dessa maneira, sobrariam 8 horas para descanso e 8 horas para educação, conscientização e organização.

Mas a ocupação estafante e criadora de valor para o capital nunca se resumiu às horas exploradas pelos patrões, através de vínculos formais ou não.

Vida além do trabalho também são as ocupações domésticas, cujo principal objetivo é garantir a reprodução e manutenção da força de trabalho a ser explorada pelos patrões.

Vida além do trabalho é a destruição da natureza, provocando imensos prejuízos ambientais para a grande maioria, gerando enormes lucros para uma ínfima minoria.

Vida além do trabalho era a escravização humana nas antigas colônias e a atual precarização nas periferias do mundo, assegurando ganhos astronômicos para o grande capital.

Essas e outras esferas vitais são canibalizadas pelo grande capital para além de qualquer limite, sem qualquer contrapartida, reposição, compensação, tributação. Depois do trabalho, o que sobra não chega a ser vida.

Não há vida que escape à infinita e voraz gula do capital. É o que ensina, por exemplo, Nancy Fraser, ao mostrar em seu recente livro “Capitalismo canibal”, como é urgente matar o capitalismo de inanição. Voltaremos a comentá-lo, em breve.

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11 de novembro de 2024

Como se desperta um demônio

Em 1936, George Orwell publicou “A caminho de Wigan Pier”, sobre as terríveis condições de trabalho dos mineiros ingleses. Mas o livro também denunciava os preconceitos de setores da esquerda contra a chamada classe média. Eis um trecho:

Economicamente, estou no mesmo barco com o mineiro de carvão, o operário braçal e o trabalhador rural; basta que alguém me lembre disso e irei lutar ao lado deles. Mas culturalmente sou diferente do mineiro, do operário braçal e do trabalhador rural; e, se você enfatizar esse aspecto, pode acabar me armando contra eles. Se eu fosse uma anomalia solitária, isso não teria importância, mas o que vale para mim vale para incontáveis outras pessoas. Cada bancário pensando no dia da demissão, cada lojista tentando se equilibrar à beira da falência estão essencialmente na mesma posição. Eles são a classe média que vai afundando, e a maioria deles se aferra à sua superioridade, sob a impressão de que ela os mantém com a cabeça fora d’água. Não é boa política já começar lhes dizendo que joguem fora o colete salva-vidas. Há um perigo óbvio de que nos próximos anos grandes faixas da classe média deem uma repentina e violenta guinada para a direita. Ao fazer isso, podem tornar-se uma força tremenda. Até agora a fraqueza da classe média sempre se baseou no fato de que esses cidadãos nunca aprenderam a se unir, mas, se os assustar de tal modo que eles acabem se unindo contra você, pode descobrir que despertou um demônio.

Mas, na época, o “demônio” já estava bem acordado e tinha nome: nazifascismo.

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7 de novembro de 2024

A esperança escondida em uma bomba aérea

Em uma cidade do País Basco, durante a guerra civil iniciada pelo ditador Francisco Franco, uma bomba atingiu a praça central, mas nunca explodiu. Os moradores não ousaram movê-la, muito menos desarmá-la. Lá permaneceu por anos durante a ditadura Franco como um símbolo de morte, do poder do regime e do castigo para quem se rebelou.

Um dia, um dos habitantes decidiu remover o dispositivo sozinho. Mas logo muitos se juntaram a ele. A ideia era desarmar a bomba e levá-la para longe. Mas no lugar do detonador, encontraram um papel contendo algumas palavras escritas em alemão. Felizmente, havia uma pessoa que conseguiu traduzi-las: “Saudações de um operário alemão que não mata inocentes”, dizia o bilhete.

A partir daquele momento, decidiram manter a bomba na praça como símbolo da resistência, do fim do medo e do poder de um povo com consciência de classe. Tudo isso porque um trabalhador alemão arriscou a pele, em meio à ditadura nazista, e deixou claro que nem o medo nem o regime seriam capazes de torná-lo mais um monstro.

Se você vive sob regime fascista ou sob qualquer regime de morte e tem o estranho “privilégio” de ser empregado, recebendo um salário, dentro dele, você o sabota. Não precisa estudar ciências políticas para saber disso. Você precisa somente de sensibilidade e empatia, e de saber as consequências humanas das políticas que estão sendo aplicadas diante do seu nariz.

O relato acima é o resumo de um capítulo do livro “Pelo buraco da fechadura”, recém-publicado por Mário Prata. Mostra como é possível arrancar esperança dos momentos mais trágicos.

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6 de novembro de 2024

Um papo reto sobre coisas muito tortas

“Problema é esquerda playboy, não pobre de direita”, essa afirmação de Paulo Galo, militante do movimento dos trabalhadores em aplicativos, deu título a uma recente entrevista concedida por ele ao portal UOL.

Galo referia-se ao livro “O pobre de direita”, recém-lançado por Jessé Souza. Segundo ele:

...não existe “pobre de direita”. Existe alienação. A alienação que afeta o pobre também afeta a classe média branca de esquerda. Ela é tão presa à sua própria bolha que só consegue dialogar consigo mesma.

A esquerda, diz Galo, ignora a “materialidade” da vida das quebradas periféricas. E para superar essa limitação, precisaria:

...chegar aqui na periferia, tomar uma cerveja e trocar uma ideia normal, do dia a dia. Tem um trabalho possível de ser feito aqui. Dá para cair dentro das necessidades e se conectar. Mas quem é que está fazendo isso? O problema é que a esquerda parece não saber fazer nada que não envolva voto.

Dentre as várias afirmações polêmicas, afirmou, por exemplo, que a esquerda se tornou legalista e que seus partidos representariam uma “luta com CNPJ”.

A entrevista despertou tanto a animosidade como a simpatia de setores da militância. Mas Lênin dizia que para endireitar uma vara torta para um lado, é preciso vergá-la para o outro. Por isso, muitas vezes exagerava na defesa de certas linhas políticas que nem eram tão corretas para enfraquecer uma orientação oposta, que considerava ainda mais danosa.

Galo não é nenhum Lênin. Mas procura chamar a atenção para o atual estágio da luta de classes, cuja materialidade contraditória não comporta o simplismo de respostas retas para tantos conflitos tortos.

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A luta de classes no oco do mundo
Um pé na luta, outro no pedal

5 de novembro de 2024

De quem seria a culpa por um retorno de Trump?

“Não vai acontecer aqui” é um romance, de 1935, do escritor estadunidense Sinclair Lewis. Publicado durante a ascensão do fascismo na Europa, descreve a eleição de um senador fictício para Presidente dos Estados Unidos. Suas promessas de campanha incluíam reformas econômicas e sociais drásticas e o regresso ao patriotismo e aos valores tradicionais. Após a eleição, o novo presidente se torna ditador com a ajuda de uma implacável força paramilitar à semelhança das SS nazistas.

As informações acima são da Wikipédia.

Em 1931, três anos antes da publicação do livro de Lewis, “policiais de Los Angeles cercaram um parque público frequentado por latinos, prenderam 400 pessoas, todos de pele escura, enquanto o mesmo se repetia em hospitais, mercados, igrejas, clubes e associações. Em pouco tempo, mais de 1,8 milhão de mexicanos foram deportados por ordem do governo de Herbert Hoover – 60% com cidadania americana”.

O relato acima é da jornalista Dorrit Harazim. E o trecho abaixo é de um artigo de Vijay Prashad:

Em 1964, o marxista polonês Michał Kalecki escreveu o artigo “O fascismo de nossos tempos”. Nele, Kalecki disse que “embora não aprecie a ideia de grupos fascistas tomarem o poder, a classe dominante como um todo não faz nenhum esforço para suprimi-los e se limita a reprimendas por excesso de zelo”.

Essa atitude persiste até hoje: a classe dominante como um todo não teme a ascensão desses grupos fascistas, mas apenas seu comportamento “excessivo”, enquanto as seções mais reacionárias das grandes empresas apoiam financeiramente esses grupos.

Ou seja, se Trump voltar ao poder, os últimos na fila dos culpados serão os eleitores estadunidenses.

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4 de novembro de 2024

A única maneira de um nazista ser bom

“O crime do bom nazista”, de Samir Machado de Machado é um dos semifinalistas do Prêmio Jabuti na categoria romance de entretenimento. Trata-se de uma trama policial em que se destaca a homoafetividade dos personagens principais.

Mas para além do fascinante desafio de desvendar a autoria de um crime, o leitor ou leitora ficam sabendo da terrível perseguição a que eram submetidos os homossexuais sob o regime nazista. Por exemplo, no seguinte trecho:

E Rudolf então lhe contou da carga de trabalhos exaustivos a que os prisioneiros homossexuais como eles eram submetidos, muito maior do que a de qualquer outro prisioneiro, pois era crença corrente que o trabalho duro os curaria. Contou dos estupros que ele e outros homossexuais estavam sofrendo, das surras, de ter os testículos mergulhados em água fervente, as unhas arrancadas, contou das coisas que lhes introduziam no ânus para divertimento dos guardas, algumas tão compridas que perfuravam seus intestinos e os faziam sangrar até a morte, contou daqueles que foram simplesmente espancados até morrer, enfim, de como eram tratados como a mais baixa das criaturas. Pois, aos olhos nazis, que cultuavam sobretudo a própria masculinidade, eles eram mais baixos até mesmo do que ciganos ou judeus.

Também somos informados de que o primeiro movimento homossexual de que se tem notícia surgiu na Alemanha no final do século 19, com a fundação do Comitê Científico-Humanitário, pioneiro mundial na organização dos homossexuais, resistindo até a ascensão nazista, em 1933.

Por fim, o livro nos obriga a concordar quando um de seus personagens afirma que o único bom nazista possível é o que está morto.

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