Doses maiores

3 de outubro de 2019

Para além de falar e comer, viver

Recentemente, o sociólogo José de Souza Martins concedeu entrevista à IHU On-Line. Vale a pena ler na íntegra, mas um trecho interessante destaca um relato do antropólogo italiano Luigi Lombardi Satriani, filiado à tradição gramsciana. Trata-se de uma “lenda” da região da Calábria que diz o seguinte:

Era uma vez, uma enorme disputa entre o “falar” e o “comer”. O “falar” acusava o “comer” de ser nojento. Afinal, o “olhar” têm duas casas, o “ouvir” tem duas casas, mas o “falar” e o “comer” estavam enfiados numa mesma casa. O “falar” queria que o “comer” fosse embora. Desocupasse a casa porque o “falar”, sim, é nobre, mas o “comer” é repugnante. Nessa confusão, os dois resolveram falar com o rei Salomão, cuja justiça todo mundo conhece: é na base da espada, corta no meio e resolve. O “comer”, muito humilde, explicou que se as pessoas não comerem, não vão poder falar e fez um enorme discurso. O “falar”, por outro lado, depois de engolir um último bocado, disse que na vida da civilização comer não é importante. Aí o rei Salomão pensou e fez justiça: deu a boca dos ricos para o “falar”, porque o problema dos ricos não é comer, é falar. E deu a boca dos pobres para o “comer”, porque o problema dos pobres não é falar, é comer.

Para Martins, esse relato expressaria “uma consciência precisa das diferenças sociais”. E é essa precisão, diríamos, que pode transformar seu tom conformista em ponto de partida para a superação dessas falsas polaridades impostas a partir de cima. Afinal, a gente não quer só comida...

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