Doses maiores

3 de dezembro de 2024

A Covid, criada e fortalecida pelo capitalismo canibal

Nancy Fraser encerra seu livro “Capitalismo canibal”, mostrando a pandemia da Covid como um “ponto onde todas as contradições do capitalismo canibal convergiram: onde a canibalização da natureza e do trabalho de cuidado, da capacidade política e das populações periferizadas se fundiram em uma farra letal”.

Para começar, foram os efeitos combinados do aquecimento global e do desmatamento que colocaram o vírus em contato com os seres humanos. Depois, os efeitos da Covid foram agravados por nossos governantes, que a serviço do capital, haviam transferido funções vitais do atendimento na saúde a prestadores de serviços, convênios, farmacêuticas e fabricantes movidos pelo lucro.

Sem a retaguarda dos poderes públicos, o isolamento sanitário despejou novas e importantes tarefas de cuidado sobre famílias e comunidades, principalmente sobre as mulheres. Muitas delas acabaram pedindo demissão para cuidar dos filhos e de outros familiares, enquanto muitas outras foram demitidas.

Trabalhadores cujas funções eram essenciais continuaram ganhando uma ninharia e sendo tratados como descartáveis. Eram profissionais de saúde, trabalhadores de frigoríficos e abatedouros, funcionários de varejistas gigantes, profissionais de limpeza hospitalar, entregadores de refeições, repositores de mercadorias e caixas de supermercados. A maioria deles, mal pagos, precarizados, não sindicalizados, sem benefícios e proteções trabalhistas.

Em cada um desses casos, o racismo e o sexismo estruturais se manifestaram, infectando e matando desproporcionalmente mais não brancos e mulheres.

Desse modo trágico, diz Nancy, a Covid iluminou com um raio intenso todos os terrenos ocultos de nossa sociedade. Portanto, conclui ela, é hora de descobrir como deixar o monstro morrer de fome e acabar, de uma vez por todas, com o capitalismo canibal.

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2 de dezembro de 2024

Eunice continua aqui e não está sozinha

O filme “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles e brilhantemente protagonizado por Fernanda Torres, merece todos os elogios. Mais do que torcer por sua premiação, o importante é fazer com que chegue a cada vez mais plateias aqui e no mundo.

O livro no qual foi baseado é de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens. Mostra a luta de Eunice para encontrar Rubens, após sua prisão pela ditadura e, mais tarde, pela responsabilização do regime por sua morte.

Mas Eunice não restringiu sua atuação a essa batalha, por mais justa e importante que fosse. Formou-se em direito e passou a combater a política indigenista genocida do regime militar. Em 1987, ajudou a fundar o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, organização que atuou até 2001 na defesa dos povos indígenas.

Sua disposição combativa só foi derrotada pela demência. A mulher que lutou pelo julgamento dos carrascos das vítimas da ditadura e pela preservação de sua memória tornou-se, ela mesma, vítima de amnésia.

A produção de Salles recupera a história não apenas da viúva de um grande homem, mas de uma guerreira pela liberdade e democracia.

No entanto, há muitas outras mulheres que estiveram nas mesmas trincheiras que ela. Infelizmente, muitas ficaram pelo caminho, mortas. Outras sobreviveram a prisões ilegais, tortura e violações. Mas poucas receberam o reconhecimento que merecem. Principalmente, as que estavam na liderança da resistência em favelas, periferias, quilombos, campos, aldeias indígenas e locais de trabalho. Enquanto for assim, Eunice e todas elas continuarão entre nós, inspirando, mas também exigindo, nossa permanência na luta por justiça e reparação.

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