Blog de Sérgio Domingues, com comentários curtos sobre assuntos diversos, procurando sempre ajudar no combate à exploração e opressão.
20 de dezembro de 2024
Feliz Natal de luta e internacionalista
Mas a resistência popular não respeita festas privadas. Manifestações pelo direito de comemorar o Natal explodem na Londres fictícia que serve de cenário para o conto. Entra em cena, por exemplo, “um bando agressivo, com pinta de zangado, quebrando para-brisas dos carros pelo caminho”. Vestidos de Papai Noel, eles são os Red & White blocs, versão natalina dos Black Blocs. Também marca presença o Partido Cantor Radical dos Homens Gays, “orgulhosos de lutar pelo Natal do Povo!”
E como na luta dos explorados e oprimidos a esperança é a penúltima que morre, uma das canções que os manifestantes entoam é uma adaptação de um antigo sucesso brasileiro, composto por Assis Valente: "Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ E a Internacional / É tudo que a gente tem."
Saudações comunistas e internacionalistas. Até 2025!
Leia também: Papai Noel não é de esquerda, mas existe!
13 de dezembro de 2024
A esquerda espectral e os espíritos malignos
Lula já foi descrito como uma espécie de “cavalo de terreiro” das contradições sociais do País. Cavalo no sentido de médium que é “possuído” por entidades espirituais.
No caso em questão, essas entidades seriam os conflitos e contradições de uma das sociedades mais injustas do planeta. E Lula seria alguém que as manifesta de forma barulhenta, porém conciliadora.
O mesmo tipo de conciliação tentado pelo varguismo para modernizar o capitalismo brasileiro, procurando incluir as massas. Lula quer algo parecido, mas usando sua origem e ligação com os movimentos sociais como fiadoras em acordos arrancados junto à classe dominante.
O problema é que seu vocabulário sindical e sotaque sertanejo formam uma combinação indigesta demais para uma burguesia elitista e colonizada. Vargas bateu contra a parede imposta por sua própria classe e se suicidou. Lula recebeu o castigo reservado a muitos de sua origem social: a cadeia.
Uma vez fora da prisão, a nova tarefa assumida por Lula foi a de organizar a direita tradicional contra a extrema-direita. Ocorre que a primeira mal consegue se distinguir da segunda. E a governabilidade petista depende mais do que nunca do Centrão, o que inclui a presença de bolsonaristas na base parlamentar e até em ministérios.
Some-se a tudo isso um congresso que controla quase todo o orçamento federal e uma subordinação suicida à austeridade fiscal que castiga a grande maioria da população.
Tudo isso parece indicar que o terreiro petista vem sendo rapidamente dominado pelos espíritos diabólicos da direita. Enquanto isso, o conjunto da esquerda mal consegue abandonar o plano espectral para se encarnar como força concreta no mundo real.
Leia também: O Lula empossado e o Lula possuído
11 de dezembro de 2024
Um Brasil paralelo disposto a tudo
A Brasil Paralelo é uma produtora de vídeos criada em 2016, tendo se tornado uma das principais difusoras das ideias de direita no país. Seus conteúdos incluem aulas, vídeos e livros de história e filosofia.
Entre as teses que defende, estão o “descobrimento do Brasil” como um evento civilizatório para os povos ameríndios e o golpe de 64 como o episódio que impediu a instalação de uma ditadura comunista no Brasil.
A derrota eleitoral do bolsonarismo em 2022 não diminuiu a influência da produtora extremista. Ao contrário, os números abaixo são do episódio 128, do podcast Rádio Escafandro e deixam claro como a Brasil Paralelo continua firme, forte e perigosa.
Trata-se do maior anunciante brasileiro no Instagram e Facebook. As duas plataformas receberam da produtora R$ 25 milhões em anúncios, nos últimos 4 anos. O que dá R$ 6.250 milhões anuais ou quase R$ 521 mil mensais.
São 4 milhões de seguidores no Youtube e 400 mil assinaturas vitalícias em suas plataformas. Atualmente, a assinatura vitalícia mais barata sai por R$ 1.620 e a mais cara R$ 6.360.
Mais recentemente, a Brasil Paralelo passou a distribuir seu material a centenas de escolas e instituições de caridade, defendendo uma versão falsa e reacionária da história do País para crianças e jovens.
Mas uma coisa não se pode negar. O nome escolhido para a produtora é perfeito. Há um Brasil paralelo reacionário e golpista atuando fortemente. Não apenas nas redes virtuais e escolas, mas nos três poderes, incluindo vários postos no atual governo, e nas Forças Armadas, claro. Estão dispostos a tudo. Estão prontos para o pior.
Leia também: O Orvil e o Brasil Paralelo
9 de dezembro de 2024
Atopia capitalista: tudo que é sólido se dissolve no espaço-tempo
Marx afirmava que enquanto na manufatura e no artesanato, o trabalhador se servia da ferramenta, na fábrica capitalista, ele passou a servir à máquina.
Dois séculos depois, muitos trabalhadores voltaram a usar suas próprias ferramentas. São os celulares, automóveis e outros equipamentos. Mas a jornada laboral invadiu o cotidiano e o controle da produção é um algoritmo implacável, impessoal e inacessível. A massificação operária deu lugar à atomização empreendendorista, aprofundando ainda mais a separação tanto entre o produtor e os produtos de seu trabalho, como entre os próprios trabalhadores.
Com fábricas cada vez mais robotizadas, os trabalhadores foram jogados nas ruas, onde dirigem seus automóveis, motos e bicicletas. Continuam a participar da criação de valor para o capital, mas foram expulsos dos espaços físicos da produção para se deslocarem em alta velocidade pelo fluxo consumista. Muitas vezes, com consequências fatais.
As fábricas e escritórios se esvaziaram. O trabalho está em toda parte e em lugar nenhum. Está em residências rebaixadas a oficinas, nos “coworkings” dos shoppings, em praças e ruas tornadas locais de descanso passageiro. As comunicações ganharam enorme dinamismo, mas são funcionais apenas sob o domínio de uma frenética competição selvagem e individualista. O resultado é um estado que podemos chamar de atopia. Ou seja, um não lugar.
Quando Marx e Engels escreveram que, sob o capital, tudo o que é sólido desmancha no ar, talvez, não imaginassem que até mesmo as referências espaciais se dissolveriam. Mas como na física da relatividade, tempo e espaço são contínuos, é preciso decifrar a dialética dessa materialidade para sintetizar novas forças sociais revolucionárias e emancipadoras.
Leia também: Utopia, atopia, distopia
5 de dezembro de 2024
Pacote fiscal: arrocho dos pobres, parasitismo dos ricos
O assunto do momento é o pacote fiscal do governo Lula. O fato de ter desagradado o chamado “mercado” pode parecer positivo. O que é ruim para os “Faria Limers” costuma ser bom para a grande maioria da população.
O maior motivo de queixa foi a proposta de isentar de imposto de renda pessoas que ganham até R$ 5 mil por mês. Uma medida que pode beneficiar quase 80% da população economicamente ativa do País. Mas, em relação às restrições ao pagamento do Benefício de Prestação Continuada, ninguém da Faria Lima reclamou. O benefício paga um salário mínimo a pessoas em situação de vulnerabilidade social. A economia esperada é de R$ 6,4 bilhões.
Enquanto isso, em outubro passado, foram pagos R$ 111 bilhões, ou R$ 3,7 bilhões por dia em juros da dívida pública. Ou seja, bastaria deixar de pagar dois dias desses juros que garantem muito dinheiro aos capitalistas para nem precisar mexer no BPC, que atende idosos e pessoas com deficiências.
Os orçamentos dos ministérios da Saúde, Educação e Trabalho totalizam R$ 564 bilhões. Bem menos que os R$ 762 bilhões de juros da dívida pagos nos 10 primeiros meses de 2024. A perda da arrecadação com a isenção de R$ 5 mil será cerca de R$ 35 bilhões anuais. Ou apenas dez dias de pagamento de juros.
O pior é que essa montanha de dinheiro não diminui um centavo do montante principal da dívida pública. Tudo isso não passa de um vergonhoso parasitismo dos recursos públicos em benefício dos especuladores e capitalistas em geral, que detêm mais de 90% dos papéis da dívida.
Leia também:
Os gastos sociais sob a ditadura neoliberal
As abstrações criminosas da austeridade neoliberal
4 de dezembro de 2024
A diversidade sexual nas antigas sociedades africanas
Um interessante artigo foi publicado em 2023, na página do Partido Socialista dos Trabalhadores, da Inglaterra. Escrito por Ken Olende, seu título em tradução livre é “Como o Império Britânico exportou a homofobia”. Para provar a afirmação do título, o autor faz um histórico sobre o relativo respeito à diversidade sexual entre vários povos africanos antes do domínio colonial europeu. E dá alguns exemplos dessa situação:
- Nzinga, a mulher que liderou a resistência contra a invasão portuguesa de Angola a partir da década de 1620, era chamada de rei, se vestia como homem e tinha um “harém” de jovens que se vestiam como mulheres e eram suas esposas.
- Entre o povo Zande na África Central, guerreiros mais velhos se casavam temporariamente com guerreiros mais jovens.
- As guerreiras do povo Fon, no antigo Daomé, eram consideradas homens por causa de seu treinamento militar e muitas mantinham relacionamentos com outras mulheres.
- Em Gana, na década de 1940, relações lésbicas eram virtualmente universais entre as mulheres solteiras do povo Akan, às vezes continuando depois do casamento.
- Da mesma forma, entre os Langi, em Uganda, os mudoko dako ou “homens efeminados” eram tratados como mulheres e podiam se casar com homens.
Outros exemplos podem ser encontrados no artigo, mas Olende adverte que eles não são um modelo para o futuro. Apenas mostram que havia sociedades com ideias muito diferentes sobre sexualidade e gênero antes do domínio colonial. Por isso, é possível ter uma sociedade sem homofobia.
Infelizmente, a realidade no continente hoje é outra, com muitos governos e sociedades ainda rendidos ao conservadorismo contemporâneo ocidental.
Leia também: O arco-íris anticapitalista dos zapatistas
3 de dezembro de 2024
A Covid, criada e fortalecida pelo capitalismo canibal
Nancy Fraser encerra seu livro “Capitalismo canibal”, mostrando a pandemia da Covid como um “ponto onde todas as contradições do capitalismo canibal convergiram: onde a canibalização da natureza e do trabalho de cuidado, da capacidade política e das populações periferizadas se fundiram em uma farra letal”.
Para começar, foram os efeitos combinados do aquecimento global e do desmatamento que colocaram o vírus em contato com os seres humanos. Depois, os efeitos da Covid foram agravados por nossos governantes, que a serviço do capital, haviam transferido funções vitais do atendimento na saúde a prestadores de serviços, convênios, farmacêuticas e fabricantes movidos pelo lucro.
Sem a retaguarda dos poderes públicos, o isolamento sanitário despejou novas e importantes tarefas de cuidado sobre famílias e comunidades, principalmente sobre as mulheres. Muitas delas acabaram pedindo demissão para cuidar dos filhos e de outros familiares, enquanto muitas outras foram demitidas.
Trabalhadores cujas funções eram essenciais continuaram ganhando uma ninharia e sendo tratados como descartáveis. Eram profissionais de saúde, trabalhadores de frigoríficos e abatedouros, funcionários de varejistas gigantes, profissionais de limpeza hospitalar, entregadores de refeições, repositores de mercadorias e caixas de supermercados. A maioria deles, mal pagos, precarizados, não sindicalizados, sem benefícios e proteções trabalhistas.
Em cada um desses casos, o racismo e o sexismo estruturais se manifestaram, infectando e matando desproporcionalmente mais não brancos e mulheres.
Desse modo trágico, diz Nancy, a Covid iluminou com um raio intenso todos os terrenos ocultos de nossa sociedade. Portanto, conclui ela, é hora de descobrir como deixar o monstro morrer de fome e acabar, de uma vez por todas, com o capitalismo canibal.
Leia também: O capitalismo canibalizando o planeta
2 de dezembro de 2024
Eunice continua aqui e não está sozinha
O filme “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles e brilhantemente protagonizado por Fernanda Torres, merece todos os elogios. Mais do que torcer por sua premiação, o importante é fazer com que chegue a cada vez mais plateias aqui e no mundo.
O livro no qual foi baseado é de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens. Mostra a luta de Eunice para encontrar Rubens, após sua prisão pela ditadura e, mais tarde, pela responsabilização do regime por sua morte.
Mas Eunice não restringiu sua atuação a essa batalha, por mais justa e importante que fosse. Formou-se em direito e passou a combater a política indigenista genocida do regime militar. Em 1987, ajudou a fundar o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, organização que atuou até 2001 na defesa dos povos indígenas.
Sua disposição combativa só foi derrotada pela demência. A mulher que lutou pelo julgamento dos carrascos das vítimas da ditadura e pela preservação de sua memória tornou-se, ela mesma, vítima de amnésia.
A produção de Salles recupera a história não apenas da viúva de um grande homem, mas de uma guerreira pela liberdade e democracia.
No entanto, há muitas outras mulheres que estiveram nas mesmas trincheiras que ela. Infelizmente, muitas ficaram pelo caminho, mortas. Outras sobreviveram a prisões ilegais, tortura e violações. Mas poucas receberam o reconhecimento que merecem. Principalmente, as que estavam na liderança da resistência em favelas, periferias, quilombos, campos, aldeias indígenas e locais de trabalho. Enquanto for assim, Eunice e todas elas continuarão entre nós, inspirando, mas também exigindo, nossa permanência na luta por justiça e reparação.
Leia também: A amenidade assassina dos golpistas nacionais
30 de novembro de 2024
Utopia, atopia, distopia
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Pawel Kuczynski |
A definição acima é do professor da USP, Massimo Di Felice. Apesar da abordagem exageradamente acadêmica e, sem necessariamente concordar com tudo o que ela propõe, traz um elemento importante para pensar a organização social tal como a vivemos na segunda década do século 21.
Uma sociabilidade marcada pelas redes digitais, por meio das quais acessamos e somos acessados, quase sem restrições de tempo e espaço. Seja no trabalho, na vida afetiva ou na militância, nos relacionamos instantaneamente, sem deslocamentos, lugares fixos, respeito a horários e, muitas vezes, sem nem mesmo recorrer às tradicionais saudações de chegada e partida.
Um fenômeno que vem se tornando presente na vida cotidiana dos últimos 10 ou 12 anos e mudando tudo de forma mais radical do que imaginamos. Principalmente, quanto às disputas de poder e na luta de classes, em geral.
Atopia não é utopia e tem grandes chances de nos levar às piores distopias. Voltaremos ao tema.
Leia também:
A economia política das fake news
Bacurau: a esquerda sem chão e sem lugar
28 de novembro de 2024
O capitalismo canibalizando o planeta
...ao se apropriar da natureza, o capital expropria, ao mesmo tempo, as comunidades humanas para as quais a matéria confiscada e as cercanias conspurcadas constituem habitat, meios de vida e matéria base de sua reprodução social. Assim, essas comunidades assumem uma fatia desproporcional do peso ambiental global; e sua expropriação garante a outras comunidades (“mais brancas”) a chance de se protegerem, pelo menos por um tempo, dos piores efeitos da canibalização da natureza pelo capital.
27 de novembro de 2024
Reprodução social e expropriação capitalista
Marx chamou de expropriação ao processo que separa pessoas e comunidades dos recursos e instrumentos necessários para sua subsistência.
Um exemplo clássico de expropriação foi a expulsão dos camponeses europeus de suas terras comunais, obrigando-os a vender sua força de trabalho aos capitalistas. Outro foi a escravização de negros e indígenas, transformados em mão de obra barata e abundante, utilizada, especialmente, nas grandes plantações das colônias americanas.
Mas é um grande equívoco pensar que a principal fase da expropriação capitalista ficou para trás, uma vez que a grande maioria dos camponeses já foi expropriada e a escravidão legalizada foi extinta.
Como diz Nancy Fraser, em seu livro “Capitalismo Canibal”, a expropriação é um mecanismo contínuo de acumulação e permanece como condição importante para a viabilização da exploração capitalista. A questão é que assumiu formas não reconhecidas. Tarefas domésticas e cuidados familiares, por exemplo, não costumam ser remunerados. Ainda assim, é trabalho imprescindível para o processo de geração da mais-valia capitalista.
A divisão entre produção econômica e reprodução social surgiu com o capitalismo. Essa separação sustenta as modernas formas de subordinação das mulheres e a importância social do trabalho delas fica não apenas obscurecida, como mistificada pelo conservadorismo. Reproduzir a família é muitas vezes considerado uma obrigação religiosa. Mas o deus a que serve é o do capital.
Algo semelhante, diz Nancy, ocorre na apropriação destrutiva da natureza e na “captura forçada e contínua da riqueza de povos subjugados”. Tais relações são igualmente tratadas como elementos externos às relações entre capital e trabalho.
Mas essas outras esferas da vida humana serão tema da próxima pílula.
Leia também: Capitalismo, uma serpente autofágica
26 de novembro de 2024
A amenidade assassina dos golpistas nacionais
No artigo “Golpe sangrento fugiria à nossa tradição”, publicado hoje no Globo, Pedro Doria relaciona sete golpes militares bem-sucedidos na história brasileira. “Em cada um desses momentos, diz ele, ao menos um general decidiu rasgar a Constituição”. Mas em nenhum deles foi derramado o sangue dos governantes depostos, ressalva Doria. E isso indicaria que “nossas ditaduras estavam num degrau mais ameno da barbárie vizinha”.
Por isso, argumenta o colunista, “dar golpes militares é coisa brasileira, sim”. Mas, referindo-se ao que foi planejado pelos bolsonaristas, prevendo uma série de assassinatos, não seria “um golpe brasileiro”.
Doria até admite que “a violência dos porões não foi pouca”, mas posicionar as barbáries das ditaduras de nossa história num nível “mais ameno” é um absurdo. Um desrespeito às milhares de vítimas torturadas, executadas e desaparecidas que não contavam com a integridade física garantida somente aos setores dirigentes.
Um golpe de estado sempre opõe parcelas da classe dominante a outras. Nesse caso, podem ocorrer prisões, exílio, processos jurídicos viciados, arbitrariedades. Mas são os de baixo que sofrem a mais extrema violência física. No regime militar, por exemplo, morreram mais de 8 mil, somente entre os indígenas.
Que as elites nacionais nunca tenham se confrontado até o derramamento de sangue não é um traço pitoresco de sua dominação. É uma evidência dos bons modos com que se relacionam, reservando a selvageria mais cruel aos de baixo.
A truculência bolsonarista não é uma excrescência irracional. É uma atitude correspondente ao ódio e repulsa das classes dominantes a qualquer possibilidade de que os explorados e oprimidos passem a confiar em suas próprias forças.
Leia também: O fascismo e a violência corriqueira do capital
23 de novembro de 2024
A luta contra a escala 6x1 e o reformismo sem medo
O cientista político Marcos Nobre afirma que a direita brasileira atualmente divide-se entre uma ala “com medo” e outra “sem medo”. Esta última não teme se unir a fascistas como Bolsonaro. A primeira receia que o fanatismo bolsonarista abra brechas no sistema de dominação. Por isso, apoiou a única opção disponível capaz de enfrentar a extrema direita e, ao mesmo tempo, manter as mobilizações sociais em banho Maria.
Já André Singer, outro cientista político, chamou o projeto de esquerda dominante no País de lulismo. E sua essência seria um reformismo fraco, com mudanças graduais e limitadas, sem ameaças à ordem e em aliança com setores conservadores.
Mas veio a onda ultraconservadora, o golpe de 2016, a eleição de um presidente fascista com suas políticas sanitárias genocidas e pretensões golpistas de voltar ao poder. A resistência representada por Lula a tudo isso foi fundamental, mas deixou ainda mais ralo o tal reformismo fraco.
Felizmente, muitas vezes, a luta de classes assume as formas mais inesperadas. É o caso da campanha contra a escala de trabalho 6x1. Uma luta que não apenas ganhou enorme apoio popular, como foi protagonizada por duas pessoas negras: um trabalhador precarizado gay e uma deputada federal trans. Sob um conservadorismo extremado e a mais selvagem lógica neoliberal, trata-se de um exemplo evidente do que pode fazer um reformismo forte e destemido.
O trágico é que essa situação também revelou as enormes contradições no interior do campo antifascista. Demonstrou que o oposto do reformismo forte não é um reformismo fraco, mas uma esquerda com medo.
Leia também: VAT, 6x1 e capital canibal
21 de novembro de 2024
Trump e o ancestral racismo da América
“Make America Great Again”, brada Donald Trump. A tradução seria “Faça a América Grande Novamente”.
Para que não restem dúvidas sobre qual é a grandeza “americana” a que ele se refere, que tal lembrar as palavras de alguns daqueles que são considerados os maiores homens da história estadunidense.
Em 1785, Thomas Jefferson escreveu em “Notas sobre o estado da Virgínia”:
Sugiro, portanto, apenas como conjetura, que os negros, quer constituindo originalmente uma raça distinta, quer diferenciados pelo tempo e pelas circunstâncias, são inferiores aos brancos tanto física como mentalmente.
Em 1751, Benjamin Franklin publicou “Observações sobre o aumento da humanidade”, no qual manifestava sua contrariedade em relação ao tráfico negreiro pelas seguintes razões:
Por que incrementar o número dos filhos da África transportando-os para a América, onde nos é oferecida uma oportunidade tão boa de excluir todos os negros e escuros, e de favorecer a multiplicação dos formosos brancos e vermelhos?
Por fim, em 1858, durante campanha eleitoral em que disputava uma cadeira no senado, Abraham Lincoln declarou:
Existe uma diferença física entre as raças branca e negra que, em minha opinião, sempre impedirá que as duas raças vivam juntas em condições de igualdade social e política. E, na medida em que não podem viver dessa maneira, enquanto permanecerem juntas deverá existir uma posição de superioridade e uma de inferioridade, e eu, tanto quanto qualquer outro homem, sou a favor de que essa posição de superioridade seja conferida à raça branca.
Como se vê, Trump não representa nenhuma ruptura com a tradição histórica estadunidense e prova que a “América” jamais foi grande.
Leia também: De quem seria a culpa por um retorno de Trump?
14 de novembro de 2024
Capitalismo, uma serpente autofágica
“Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a nossa democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso”. Este é o título do mais recente livro da filósofa estadunidense Nancy Fraser.
“O verbo ‘canibalizar’, explica ela, significa privar um estabelecimento ou empreendimento de um elemento essencial para seu funcionamento a fim de criar ou sustentar outro”. E isso se assemelha, continua o texto, “à relação entre a economia capitalista e os territórios não econômicos do sistema: famílias e comunidades, habitats e ecossistemas, capacidades estatais e poderes públicos que têm sua substância consumida pela economia para inflar o próprio sistema”.
Para a autora, capitalismo se refere não a um tipo de economia, mas a um tipo de sociedade: “uma sociedade que autoriza uma economia oficialmente designada a acumular valor monetarizado para investidores e proprietários ao mesmo tempo em que devora a riqueza não economicizada de todos os demais”.
Para Nancy, a sociedade capitalista é como Ouroboros, mitológica serpente que se canibaliza engolindo a própria cauda. Criatura condenada a devorar sua própria substância. O resultado é a “crise generalizada de toda a ordem social em que todas as calamidades convergem, exacerbando-se entre si e ameaçando nos engolir por inteiro”.
São crises econômicas, mas também crises de cuidado, ecologia e política. Todas “absolutamente afloradas hoje, cortesia do longo período de comilança empresarial conhecido como neoliberalismo”.
O debate proposto por Nancy pretende “conectar a perspectiva marxiana a outras correntes emancipatórias da teorização crítica: feminista, ecológica, política, anti-imperialista e antirracista”. Sempre do ponto de vista anticapitalista. Uma contribuição importante e mais necessária do que nunca.
Leia também: VAT, 6x1 e capital canibal
13 de novembro de 2024
O fascismo e a violência corriqueira do capital
Rui Tavares, historiador português, político e colunista da Folha, lançou recentemente no Brasil o livro "Agora, Agora e Mais Agora". Reinaldo José Lopes, jornalista do mesmo jornal, o entrevistou em 09/11/2024. Abaixo, alguns trechos:
Se a democracia foi desenhada e pensada como um jogo no qual podemos nos opor uns aos outros, mas no qual sabemos que estamos limitados por determinadas regras, o que acontece com os nacional-populistas, com os neofascistas, podemos chamá-los por vários nomes, é que fundamentalmente eles têm uma atitude de insinceridade em relação ao jogo. Participam, mas não acreditam nele e querem acabar com ele.
Há cem anos, decidiram ser tolerantes com Hitler depois que ele passou alguns meses preso por uma tentativa de golpe de Estado. Ele acabou sendo libertado. Acreditou-se que o regime democrático, na Alemanha de então, era um recipiente vazio em que todas as posições deviam estar em pé de igualdade.
É impossível não pensar o que teria acontecido se a República alemã tivesse sido um pouco mais convicta e menos ingênua na defesa de seus valores. A democracia não se defende passivamente, e não podemos ficar de braços cruzados.
Para bom entendedor, meia palavra: Bolso...
Mas os recentes ataques ocorridos em Brasília parecem desmentir Tavares quando ele compara a democracia a um jogo. Seria melhor lembrar Clausewitz, que considerava a guerra como continuação da política por outros meios. Para os fascistas, porém, não há diferença substancial entre guerra e política. Esta última, para eles, apenas deve utilizar a mesma violência contra os de baixo que já faz parte do funcionamento corriqueiro da dominação capitalista.
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12 de novembro de 2024
VAT, 6x1 e capital canibal
A proposta faz parte do movimento liderado por Azevedo, chamado Vida Além do Trabalho (VAT). Os operários do século passado tinham seu próprio VAT. Lutavam pelas 8 horas diárias de trabalho. Dessa maneira, sobrariam 8 horas para descanso e 8 horas para educação, conscientização e organização.
Mas a ocupação estafante e criadora de valor para o capital nunca se resumiu às horas exploradas pelos patrões, através de vínculos formais ou não.
Vida além do trabalho também são as ocupações domésticas, cujo principal objetivo é garantir a reprodução e manutenção da força de trabalho a ser explorada pelos patrões.
Vida além do trabalho é a destruição da natureza, provocando imensos prejuízos ambientais para a grande maioria, gerando enormes lucros para uma ínfima minoria.
Vida além do trabalho era a escravização humana nas antigas colônias e a atual precarização nas periferias do mundo, assegurando ganhos astronômicos para o grande capital.
Essas e outras esferas vitais são canibalizadas pelo grande capital para além de qualquer limite, sem qualquer contrapartida, reposição, compensação, tributação. Depois do trabalho, o que sobra não chega a ser vida.
Não há vida que escape à infinita e voraz gula do capital. É o que ensina, por exemplo, Nancy Fraser, ao mostrar em seu recente livro “Capitalismo canibal”, como é urgente matar o capitalismo de inanição. Voltaremos a comentá-lo, em breve.
Leia também: Jornada de trabalho e vampirização de almas
11 de novembro de 2024
Como se desperta um demônio
Economicamente, estou no mesmo barco com o mineiro de carvão, o operário braçal e o trabalhador rural; basta que alguém me lembre disso e irei lutar ao lado deles. Mas culturalmente sou diferente do mineiro, do operário braçal e do trabalhador rural; e, se você enfatizar esse aspecto, pode acabar me armando contra eles. Se eu fosse uma anomalia solitária, isso não teria importância, mas o que vale para mim vale para incontáveis outras pessoas. Cada bancário pensando no dia da demissão, cada lojista tentando se equilibrar à beira da falência estão essencialmente na mesma posição. Eles são a classe média que vai afundando, e a maioria deles se aferra à sua superioridade, sob a impressão de que ela os mantém com a cabeça fora d’água. Não é boa política já começar lhes dizendo que joguem fora o colete salva-vidas. Há um perigo óbvio de que nos próximos anos grandes faixas da classe média deem uma repentina e violenta guinada para a direita. Ao fazer isso, podem tornar-se uma força tremenda. Até agora a fraqueza da classe média sempre se baseou no fato de que esses cidadãos nunca aprenderam a se unir, mas, se os assustar de tal modo que eles acabem se unindo contra você, pode descobrir que despertou um demônio.
Mas, na época, o “demônio” já estava bem acordado e tinha nome: nazifascismo.
Leia também: Identidade, identitarismo e luta de classes
7 de novembro de 2024
A esperança escondida em uma bomba aérea
Em uma cidade do País Basco, durante a guerra civil iniciada pelo ditador Francisco Franco, uma bomba atingiu a praça central, mas nunca explodiu. Os moradores não ousaram movê-la, muito menos desarmá-la. Lá permaneceu por anos durante a ditadura Franco como um símbolo de morte, do poder do regime e do castigo para quem se rebelou.
Um dia, um dos habitantes decidiu remover o dispositivo sozinho. Mas logo muitos se juntaram a ele. A ideia era desarmar a bomba e levá-la para longe. Mas no lugar do detonador, encontraram um papel contendo algumas palavras escritas em alemão. Felizmente, havia uma pessoa que conseguiu traduzi-las: “Saudações de um operário alemão que não mata inocentes”, dizia o bilhete.
A partir daquele momento, decidiram manter a bomba na praça como símbolo da resistência, do fim do medo e do poder de um povo com consciência de classe. Tudo isso porque um trabalhador alemão arriscou a pele, em meio à ditadura nazista, e deixou claro que nem o medo nem o regime seriam capazes de torná-lo mais um monstro.
Se você vive sob regime fascista ou sob qualquer regime de morte e tem o estranho “privilégio” de ser empregado, recebendo um salário, dentro dele, você o sabota. Não precisa estudar ciências políticas para saber disso. Você precisa somente de sensibilidade e empatia, e de saber as consequências humanas das políticas que estão sendo aplicadas diante do seu nariz.
O relato acima é o resumo de um capítulo do livro “Pelo buraco da fechadura”, recém-publicado por Mário Prata. Mostra como é possível arrancar esperança dos momentos mais trágicos.
Leia também: A aposta da melancolia na emancipação coletiva
6 de novembro de 2024
Um papo reto sobre coisas muito tortas
“Problema é esquerda playboy, não pobre de direita”, essa afirmação de Paulo Galo, militante do movimento dos trabalhadores em aplicativos, deu título a uma recente entrevista concedida por ele ao portal UOL.
Galo referia-se ao livro “O pobre de direita”, recém-lançado por Jessé Souza. Segundo ele:
...não existe “pobre de direita”. Existe alienação. A alienação que afeta o pobre também afeta a classe média branca de esquerda. Ela é tão presa à sua própria bolha que só consegue dialogar consigo mesma.
A esquerda, diz Galo, ignora a “materialidade” da vida das quebradas periféricas. E para superar essa limitação, precisaria:
...chegar aqui na periferia, tomar uma cerveja e trocar uma ideia normal, do dia a dia. Tem um trabalho possível de ser feito aqui. Dá para cair dentro das necessidades e se conectar. Mas quem é que está fazendo isso? O problema é que a esquerda parece não saber fazer nada que não envolva voto.
Dentre as várias afirmações polêmicas, afirmou, por exemplo, que a esquerda se tornou legalista e que seus partidos representariam uma “luta com CNPJ”.
A entrevista despertou tanto a animosidade como a simpatia de setores da militância. Mas Lênin dizia que para endireitar uma vara torta para um lado, é preciso vergá-la para o outro. Por isso, muitas vezes exagerava na defesa de certas linhas políticas que nem eram tão corretas para enfraquecer uma orientação oposta, que considerava ainda mais danosa.
Galo não é nenhum Lênin. Mas procura chamar a atenção para o atual estágio da luta de classes, cuja materialidade contraditória não comporta o simplismo de respostas retas para tantos conflitos tortos.
Leia também:
A luta de classes no oco do mundo
Um pé na luta, outro no pedal
5 de novembro de 2024
De quem seria a culpa por um retorno de Trump?
“Não vai acontecer aqui” é um romance, de 1935, do escritor estadunidense Sinclair Lewis. Publicado durante a ascensão do fascismo na Europa, descreve a eleição de um senador fictício para Presidente dos Estados Unidos. Suas promessas de campanha incluíam reformas econômicas e sociais drásticas e o regresso ao patriotismo e aos valores tradicionais. Após a eleição, o novo presidente se torna ditador com a ajuda de uma implacável força paramilitar à semelhança das SS nazistas.
As informações acima são da Wikipédia.
Em 1931, três anos antes da publicação do livro de Lewis, “policiais de Los Angeles cercaram um parque público frequentado por latinos, prenderam 400 pessoas, todos de pele escura, enquanto o mesmo se repetia em hospitais, mercados, igrejas, clubes e associações. Em pouco tempo, mais de 1,8 milhão de mexicanos foram deportados por ordem do governo de Herbert Hoover – 60% com cidadania americana”.
O relato acima é da jornalista Dorrit Harazim. E o trecho abaixo é de um artigo de Vijay Prashad:
Em 1964, o marxista polonês Michał Kalecki escreveu o artigo “O fascismo de nossos tempos”. Nele, Kalecki disse que “embora não aprecie a ideia de grupos fascistas tomarem o poder, a classe dominante como um todo não faz nenhum esforço para suprimi-los e se limita a reprimendas por excesso de zelo”.
Essa atitude persiste até hoje: a classe dominante como um todo não teme a ascensão desses grupos fascistas, mas apenas seu comportamento “excessivo”, enquanto as seções mais reacionárias das grandes empresas apoiam financeiramente esses grupos.
Ou seja, se Trump voltar ao poder, os últimos na fila dos culpados serão os eleitores estadunidenses.
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4 de novembro de 2024
A única maneira de um nazista ser bom

Mas para além do fascinante desafio de desvendar a autoria de um crime, o leitor ou leitora ficam sabendo da terrível perseguição a que eram submetidos os homossexuais sob o regime nazista. Por exemplo, no seguinte trecho:
E Rudolf então lhe contou da carga de trabalhos exaustivos a que os prisioneiros homossexuais como eles eram submetidos, muito maior do que a de qualquer outro prisioneiro, pois era crença corrente que o trabalho duro os curaria. Contou dos estupros que ele e outros homossexuais estavam sofrendo, das surras, de ter os testículos mergulhados em água fervente, as unhas arrancadas, contou das coisas que lhes introduziam no ânus para divertimento dos guardas, algumas tão compridas que perfuravam seus intestinos e os faziam sangrar até a morte, contou daqueles que foram simplesmente espancados até morrer, enfim, de como eram tratados como a mais baixa das criaturas. Pois, aos olhos nazis, que cultuavam sobretudo a própria masculinidade, eles eram mais baixos até mesmo do que ciganos ou judeus.
Também somos informados de que o primeiro movimento homossexual de que se tem notícia surgiu na Alemanha no final do século 19, com a fundação do Comitê Científico-Humanitário, pioneiro mundial na organização dos homossexuais, resistindo até a ascensão nazista, em 1933.
Por fim, o livro nos obriga a concordar quando um de seus personagens afirma que o único bom nazista possível é o que está morto.
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31 de outubro de 2024
As rupturas que o capital nos impõe
A ideia pode render bons desdobramentos em termos de entretenimento. Se a pretensão, porém, é representar uma situação aflitiva, talvez não seja muito convincente. Afinal, tudo o que a maioria de nós desejaria é sair do trabalho e esquecer suas tarefas e responsabilidades. Mas isso não só não acontece, como cada vez mais nossa vida privada é invadida por incessantes demandas profissionais. Corpo e mente perseguidos e exauridos até muito depois do horário de trabalho.
Trabalho remoto em tempo integral e semanas com apenas um ou meio dia de folga vêm se tornando regra para muita gente. Seja trabalhando para desumanos empregadores humanos, seja para aplicativos transformados em capatazes cibernéticos. Ao mesmo tempo, nada nesse esforço todo garante a estabilidade da atividade ou melhor remuneração. Mudanças cada vez mais rápidas nos processos produtivos tornam descartável, barateiam e desqualificam nossa força de trabalho.
Por outro lado, talvez a série pudesse até servir como metáfora sobre a alienação do trabalho sob o capitalismo. Um fenômeno que está longe de ser recente, mas que nem por isso perdeu sua força, aprofundando a fragmentação e esvaziando de sentido a imensa maioria dos processos laborativos. Revelando a fissura entre aquilo que somos e o que fazemos. O primeiro sendo escravizado pelo segundo.
Mas ruptura pra valer é a que teríamos que construir em relação ao poder do capital. E os caminhos para isso não estão disponíveis em nenhum streaming.
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30 de outubro de 2024
Um Marx não branco e periférico
Em 1703, aqueles sóbrios expoentes do protestantismo, os puritanos da Nova Inglaterra, por meio de decretos, fixaram uma recompensa de 40 libras por cada escalpo indígena e cada pele vermelha capturados; em 1720, fixou-se uma recompensa de 100 libras por cada escalpo; em 1744, depois que a Baía de Massachusetts declarou uma tribo como rebelde, estabeleceram-se os seguintes preços: pelo escalpo de um homem de 12 anos ou mais, 100 libras esterlinas; por um prisioneiro homem, 105 libras; por prisioneiros mulheres e crianças, 50 libras...
O trecho acima é do capítulo 24, volume 1, de “O Capital”. Foi citado no artigo Marx e os Povos originários, recentemente publicado por John Bellamy Foster, Brett Clark e Hannah Holleman. O texto demonstra como Marx denunciou firmemente toda a brutalidade do processo histórico que deu origem ao capitalismo e o mantém ainda hoje. Mas Marx também encontrou na organização social igualitária e solidária dos indígenas elementos fundamentais para inspirar a construção de uma sociedade radicalmente justa.
Não à toa, diz o artigo, Marx estudou obras como "As Raças Nativas dos Estados do Pacífico da América do Norte", de Hubert Howe Bancroft, sobre os indígenas do sudeste do Alasca e do noroeste do Pacífico. Também dedicou-se à leitura de pesquisas sobre os Delaware, Iroqueses, Mohegan, Cree, Chickasaw, Choctaw, Cherokee, Seminole, Dakota, Pawnee, Fox, Blackfoot e muitos outros povos indígenas. Sem falar nas investigações sobre a comuna russa e a história da Índia.
Ou seja, Marx foi um dos primeiros a entender que a luta pela emancipação universal da humanidade tem muito a aprender com sociabilidades não brancas e periféricas.
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29 de outubro de 2024
Tarifa zero e luta de classes
O Brasil é líder mundial na implementação da tarifa zero, com 117 cidades e mais de 5 milhões de pessoas contempladas. Essas informações estão no artigo publicado na Folha por Giancarlo Moreira Gama, militante negro e LGBTQ+, vereador da cidade paulista de Cabreúva.
O auge da luta pelo passe livre foi em 2013. E vimos o que aconteceu. O movimento foi tratado como terrorismo pelas forças repressivas, contando com a ajuda até de governos petistas.
Então, o que mudou? Recente matéria da BBC lembra que a gratuidade implica o subsídio total da tarifa pelo poder público. Subsídio para quem? Para os empresários do setor.
O fato é que o alto custo das passagens esvaziou os ônibus. A precarização do trabalho uberizado tirou parte da classe média dos pontos. Para manter seus lucros, os empresários diminuíram a frota. Principalmente, nas periferias, onde mora grande parte dos eleitores. A jogada passou a ser gratuidade bancada pelo dinheiro público, gerando efeitos eleitoreiros e benefícios privados.
Luta de classes é isso aí. Sempre que podem, nossos inimigos se apropriam das bandeiras populares em proveito próprio. Por outro lado, até agora, nenhuma capital adotou a medida integralmente. Aí, os interesses e os ganhos ainda são graúdos demais para serem contemplados.
Há muita luta pela frente, portanto. Uma delas é a criação de um Sistema Único de Mobilidade, que está em tramitação no Congresso por iniciativa de Luiza Erundina. É importante que os movimento populares pressionem não apenas por sua aprovação, mas pela garantia do caráter público e de participação popular na gestão do novo sistema. Inclusive, com sua estatização integral.
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25 de outubro de 2024
Ideologia burguesa: sucesso fácil e impossível
A pílula de ontem lembrou que a burguesia é a única classe dominante da história que fez do trabalho virtude. Mas faltou dizer que ela também é a primeira que também trabalha. Claro que trabalha explorando o esforço alheio, mas nunca entregou-se ao completo ócio como suas antecessoras.
Há, porém, outra característica que diferencia a burguesia de suas congêneres anteriores: a acirrada competição entre seus membros e setores.
Sim, os reis, imperadores e outros poderosos travaram grandes guerras entre si por territórios e riquezas no passado. Mas no caso da burguesia, a competição é intrínseca ao sistema e o reforça, levando à criação de imensos e poderosos monopólios. Com isso alimenta a ilusão de que cada pessoa pode se elevar por cima da massa para se tornar também ela toda poderosa. Seriam suficientes alguns lances espertos temperados com sorte para chegar lá.
Basta uma grande ideia para um negócio, um serviço diferenciado, uma startup inovadora e até jogos de azar. Antes eram as casas lotéricas e os caça-níqueis nos bares. Agora, a fortuna também está ao alcance dos dedos nas “bets” eletrônicas.
Alguém disse que tem sido mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Até porque o segundo está providenciando o primeiro. Mas o mesmo poderia valer para a contagiante ilusão do trabalho com resultados individuais fantásticos imposta pela ideologia dominante.
A vitória da ideologia burguesa é evidente quando é mais fácil um explorado se imaginar milionário dependendo do próprio esforço e da sorte do que juntando-se a milhões de seus iguais para buscar a emancipação e a dignidade coletivamente.
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24 de outubro de 2024
Trabalho, luta de classes e conversa fiada
A sociedade capitalista é a única sociedade dividida em classes na história em que a classe dominante fez do trabalho virtude. A burguesia nasceu da plebe trabalhadora, mas é aquela pequena parte dela que conseguiu se apropriar dos meios de produção. O restante tornou-se massa proletária a ser explorada.
Essa diferenciação foi vendida como vitória de uma parte do povo sobre a outra. Mas pobres que reunissem certas qualidades e se esforçassem poderiam vencer por mérito próprio. Era o mito da meritocracia, melhor apenas que os mitos do poder e riqueza concedidos por hereditariedade ou por vontade divina.
Ou seja, na sociedade capitalista o trabalho transformou-se em razão de ser da grande maioria das pessoas, de alto a baixo. Ter um emprego, uma ocupação, uma fonte de sustento a partir do próprio esforço tem importância fundamental na vida contemporânea.
Mas o conceito de trabalho acima só tem esse sentido no capitalismo. Marx entendia o trabalho como elemento essencial da espécie humana. É através dele que transformamos a natureza e a nós mesmos. Essa condição pode atribuir ao trabalho um caráter emancipatório, desde que deixe de intermediar a exploração de uns pelos outros e justificar a opressão dos segundos pelos primeiros.
Enquanto a humanidade não conferir esse caráter libertador ao trabalho continuaremos a sofrer com suas terríveis negatividades.
O arrazoado acima é só para lembrar que todos os problemas e contradições sociais que vivemos atualmente têm origem na esfera do trabalho. São produto da luta de classes. Inclusive, disputas eleitorais como as que enfrentamos hoje contra o fascismo. O resto é conversa fiada de coach charlatão.
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23 de outubro de 2024
Aquiles, Escamandro e os deuses do capitalismo
Em “A Ilíada”, de Homero, Aquiles é o combatente invencível, lutando ao lado dos gregos contra Troia. Mata a todos sem dó ou vacilação, até que encontra pela frente Escamandro.
Escamandro é um rio-deus. Na mitologia grega, os rios eram considerados entidades poderosas e sagradas. Como as águas de Escamandro banhavam Troia, a divindade também protegia os troianos. Aquiles despertou a fúria de Escamandro não apenas pelos inúmeros corpos de troianos que jogou em suas águas. Os cadáveres também as poluíam, matando peixes e outros seres vivos.
A batalha entre Aquiles e Escamandro é um dos momentos mais dramáticos da Ilíada. O deus-rio, enfurecido, tenta afogar Aquiles, acrescentando a suas águas as dos afluentes e riachos próximos. Pela primeira vez, o invicto herói grego se viu em apuros. Mas Aquiles é filho da deusa Tétis e protegido de Hera, mulher de Zeus. Contra uma retaguarda dessa, o rio-deus não tinha a menor chance. As deusas convocaram Hefesto e o deus do fogo fez as águas de Escamandro ferverem e evaporarem, garantindo a vitória a Aquiles.
Mas deixemos a mitologia de lado, por um momento, para destacar a seguinte notícia: “Banco do Brasil, Bradesco e Itaú Unibanco lideram ranking global de financiamento antiambiental. Maior parte do crédito liberado, explica a matéria, é destinada para as indústrias da soja e da pecuária bovina, setores com amplo histórico de violações socioambientais na Amazônia e no Cerrado brasileiro”.
Aí estão as causas das frequentes inundações catastróficas e queimadas calamitosas. No lugar de brigarem entre si, como na mitologia, os deuses do capitalismo se unem na promoção do apocalipse planetário.
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21 de outubro de 2024
O ecossocialismo contra a barbárie do Antropoceno
Para Lênin, o militante socialista tinha que ser, antes de tudo, um “tribuno do povo”. Ou seja, ser alguém “capaz de reagir a qualquer manifestação de tirania e opressão, não importa onde apareça, nem qual seja a classe das pessoas atingidas por ela”.
Nos tempos atuais, os socialistas precisam ser também tribunos do meio-ambiente, diz Ian Angus, em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”.
Marx dizia que as pessoas não mudam a si mesmas e depois mudam o mundo. Elas mudam a si mesmas, mudando o mundo, afirma Angus. Mas não existe revolução em que todos ganham. Numa verdadeira revolução, diz ele, aqueles que têm poder e privilégios na velha sociedade devem perdê-los na nova.
Marx e Engels advertiram: a luta de classes conduzirá ou a “uma reconstituição revolucionária da sociedade em geral” ou à “ruína comum das classes em conflito”. No Antropoceno, a ruína comum, a destruição da civilização, é uma forte possibilidade. Por isso, o autor defende um movimento com um programa ecossocialista que faça a ligação entre a raiva espontânea de milhões de pessoas e o início de uma transformação ecossocialista.
Se lutarmos, podemos perder. Se não lutarmos, perderemos, diz ele. A sorte ou o acaso podem desempenhar um papel, mas uma luta consciente e coletiva para deter o trem infernal do capitalismo é a nossa única esperança para um mundo melhor.
Por fim, Angus cita Gramsci, para quem era urgente “deter a dissolução que corrói as raízes da sociedade humana”. Somente assim, a “árvore nua e estéril pode tornar-se verde novamente”.
Esta pílula encerra a série sobre a obra de Angus.
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18 de outubro de 2024
A União Soviética se rende ao capitalismo fóssil
Segundo Ian Angus, em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”, no início da década de 1930, a União Soviética era líder mundial em ciência ecológica e legislação ambiental. Foi o primeiro país a criar grandes áreas de conservação e um dos pioneiros na proibição da caça de espécies ameaçadas de extinção.
Havia forte apoio para cientistas como Vernadsky, que desenvolveu a teoria da biosfera, e Vavilov, primeiro a traçar as origens genéticas das principais plantas alimentícias do mundo. Tragicamente, diz Angus, o estalinismo abandonou a visão marxista do socialismo como desenvolvimento humano sustentável. Para superar o capitalismo, o regime adotou um modelo de industrialização acelerada, desprezando os custos humanos e ambientais.
Para citar apenas um exemplo, na década de 1960, as autoridades soviéticas lançaram um enorme projeto de desvio de rios que desaguavam no Mar de Aral para irrigar plantações de algodão. As novas safras tornaram a União Soviética o segundo maior exportador mundial do produto. Mas, em 1989, o Aral, que era o quarto maior corpo de água do mundo, tinha sido reduzido a menos de 10% do seu tamanho original.
Na década de 1980, a União Soviética tornou-se o segundo maior emissor mundial de gases com efeito estufa. A legislação ambiental soviética era excelente no papel, mas não evitou que o país sucumbisse ao capitalismo fóssil, tal como aconteceu com as outras potências da época.
Os fracassos ambientais do Bloco Soviético no século 20 demonstram porque a ecologia deve ter um lugar central na teoria, no programa e nas atividades socialistas, conclui o autor.
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No capitalismo fóssil, Hades no comando
Há uma grande polêmica entre os geólogos para saber se estamos vivendo atualmente na idade do Holoceno ou do Antropoceno. Este último período seria caracterizado pelo papel decisivo das ações humanas nas grandes transformações que o planeta vem sofrendo há quase um século.
Mas apesar da resistência de cientistas mais conservadores, as evidências em favor do Antropoceno são cada vez maiores. Por exemplo, entre 19 e 24/09/2024, as queimadas transformaram o sudoeste da Amazônia na região que mais emitiu gases de efeito estufa no planeta. Ao mesmo tempo, na floresta mais úmida do mundo falta água, morrem os peixes e a população pobre passa fome.
Um recente estudo publicado na revista “Nature Ecology & Evolution” mostra que Austrália, Canadá, Chile, Portugal, Indonésia, Sibéria e o oeste dos Estados Unidos estão entre os lugares mais afetados por incêndios florestais nos últimos anos.
Difícil esconder as marcas sujas das digitais do capitalismo fóssil nisso tudo.
O primeiro período geológico da terra é chamado de "Hadeano", inspirado em Hades, o deus do submundo dos mortos na mitologia grega. O nome refere-se às condições infernais que prevaleciam na Terra primitiva. O planeta acabara de ser formado e sua superfície ainda estava derretida com lava superaquecida e temperaturas altíssimas.
Bom, é possível que a polêmica entre defensores do Holoceno e do Antropoceno dê lugar ao debate para saber se vamos viver novo período infernal no planeta. Mas diferente do anterior, já não seria o poderoso deus grego o responsável. No lugar de Hades, o filho de Cronos, estaríamos sob o domínio de demônio Fóssil, criatura do diabólico Capital.
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16 de outubro de 2024
A luta de classes no oco do mundo
Rosana Pinheiro-Machado é uma antropóloga que vem realizando estudos de campo com moradores da periferia das grandes cidades há mais de uma década. Em entrevista à revista eletrônica CTXT, ela afirma que suas pesquisas indicam “fortes evidências de que os setores que escaparam à pobreza apoiam políticos autoritários. A insuficiência do setor público e a precariedade do mercado de trabalho, diz ela, proporcionam o cenário perfeito para que figuras conservadoras do marketing digital se tornem novos líderes políticos”. Segundo Rosana, muitas pessoas entram nessa lógica porque querem melhorar de vida, mas acabam caindo em redes de extrema-direita.
Citando Pablo Marçal, a antropóloga lembra que ele “conhece todas as técnicas populistas. Domina redes, algoritmos, invade o cérebro das pessoas, estuda neurolinguística”. E exemplifica destacando uma frase em que Marçal se referia a Guilherme Boulos: "O outro lá invade terrenos. Eu invado cérebros. Entro no cérebro da pessoa, faço ela ficar com raiva e depois pulo para o outro lado".
Marçal utiliza técnicas capazes de atrair pobres e remediados. Transforma milhões de frustrados pelas falsas promessas de prosperidade em pessoas socialmente egoístas e selvagens. Ocupa a vida oca dos ressentidos, os enfurece e pula “para o outro lado”.
E deste lado, ficamos nós, entregando pacotes vazios, etiquetados com palavras abstratas como “austeridade”, “responsabilidade fiscal” e “união nacional”. Não à toa, a raiva sentida pela maioria pobre da população se transforma em votos conservadores e em mobilização fascista.
Marçal, Bolsonaro e outras lideranças canalhas só fazem o que boa parte da esquerda deixou de fazer: travar a luta de classes bem no meio do oco do mundo.
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15 de outubro de 2024
Os palavrões do Antropoceno
Muito do que parece ser resultado das alterações climáticas é, na verdade, promovido por políticas de racismo e exclusão incorporadas à lógica do capitalismo fóssil. É assim que Ian Angus introduz o conceito de “exterminismo” em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”.
Em 1980, o historiador inglês E. P. Thompson, diz ele, criou o termo “exterminismo” para descrever as possíveis consequências da corrida nuclear.
Mas Angus prefere citar o escritor estadunidense Stan Goff, que utiliza o conceito de Thompson em seu relato sobre o Katrina, desse modo: “O exterminismo é a aceitação explícita ou não de mortes em massa como preço a ser pago pela preservação do poder econômico e político da classe dirigente. O exterminismo não se caracteriza por ações ofensivas, mas, frequentemente, ocorre por negligência calculada. Seus instrumentos são pobreza, doença, subnutrição e catástrofes ‘naturais', geralmente facilitadas pelo isolamento econômico e deslocamento populacional em massa”.
Nos dias que se seguiram ao furacão Katrina, em 2006, várias centenas de pessoas, incluindo bebês de colo e idosos cadeirantes, tentaram deixar Nova Orleans atravessando uma ponte para Gretna, cidade do outro lado do Rio Mississipi. Mas a força policial da localidade impediu o acesso, disparando tiros para o ar. As autoridades locais não permitiriam a entrada de “desabrigados” negros em Gretna.
Portanto, não surpreende o fato de que 46% dos moradores das áreas mais atingidas pelo Katrina fossem negros, em comparação com os 26% das áreas sem maiores estragos.
Antropoceno e exterminismo são dois conceitos malditos criados pela sociedade industrial. Precisamos nos livrar do capitalismo fóssil, para que nunca mais precisemos usar palavrões como esses.
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14 de outubro de 2024
A esfinge dialética: decifra-me, enquanto te devoro
A última pílula citou as formulações de Marx e Gramsci para mostrar que o senso comum é um emaranhado contraditório, constantemente atravessado por valores e preconceitos da ideologia dominante.
Apesar disso, boa parte da esquerda insiste em culpar a população pela confusão ideológica que vem garantindo seguidas vitórias à extrema-direita. Uma atitude metafísica que, a rigor, equivale a culpar a própria realidade.
Diante dessa situação, perguntava a última pílula, “o que fazer?”. Claro que não há resposta pronta para essa questão. Assim como não havia nada de universal ou definitivo na famosa resposta formulada por Lênin. Afinal, ele mesmo dizia que suas propostas eram produto “da análise concreta de situações concretas”.
A compreensão sobre o funcionamento e a dominação no capitalismo contemporâneo está presente em muitos estudos e pesquisas bastante precisos, sofisticados e de grande qualidade acadêmica.
Mas se todo esse acúmulo crítico não produzir efeitos transformadores na vivência concreta dos explorados e oprimidos, torna-se inútil. Marx, Engels, Gramsci, Lênin eram grandes teóricos, mas sua prioridade era a transformação da realidade, não apenas sua apreensão.
Nossa abordagem da realidade dos explorados e oprimidos é limpa, mas superficial. A da extrema-direita chafurda, mas pavimenta com eficiência o caminho da barbárie.
Os enigmas da luta de classes só se deixam revelar nos terrenos onde assumem toda sua radicalidade. É lá que a dialética costuma se apresentar como a esfinge que nos desafia a decifrar seu mistério dizendo: "Decifra-me, enquanto te devoro".
A esquerda precisa encontrar um modo de responder a esse desafio urgentemente. Se continuarmos perdidos em nossas abstrações, acabaremos sendo tragicamente devorados pelo enigma.
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12 de outubro de 2024
Maçaroca ideológica e realidade contraditória
O vereador do PSOL mais votado no Rio de Janeiro foi Rick Azevedo, defendendo redução da jornada de trabalho. Ótimo. Mas ele também declarou que a CLT é um regime de escravidão.
Muitos de nós consideram esse raciocínio extremamente contraditório. Mas desde que o marxismo surgiu, uns 170 anos atrás, temos elementos suficientes para saber que, muitas vezes, a realidade que é contraditória.
E se isso não bastasse, ainda é possível contar com a ajuda da obra que Antônio Gramsci iniciou há mais de 100 anos. Segundo o revolucionário italiano, a ideologia dominante é formada por uma maçaroca de concepções de mundo, misturando religião, filosofia, valores tradicionais e modernos, crenças e preconceitos etc. Mas nem por isso, ela é imutável ou monolítica, sofrendo metamorfoses que se adaptam às necessidades da luta de classes.
Carteira assinada, empreendedorismo liberal, teologia da prosperidade, livre comércio, imprensa livre, conservadorismo de costumes, autoritarismo, fundamentalismo religioso, estado mínimo, corporativismo sindical...
Todos esses valores hegemônicos conflitantes e até opostos entre si convivem bem porque correspondem às contradições da própria realidade. E quando os choques se tornam agudos a ponto de ameaçar a ordem dominante entra em cena o elemento de coerência nesse aparente caos: a dominação burguesa e seu aparato de repressão.
Sempre que ignora esse elemento de coerência, a esquerda acaba culpando ou o povo ou a burguesia. Culpar o primeiro é abrir mão da disputa política e contra-hegemônica. Culpar a segunda, é pedir ao inimigo para pegar leve. Ambas as atitudes implicam abdicar da verdadeira transformação social.
O que fazer, então? Fica para a próxima pílula
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