Doses maiores

30 de novembro de 2014

A concentração no futebol e fora dele

     Buchenwald
O Atlético Mineiro sagrou-se campeão da Copa do Brasil. A imprensa esportiva debate se a abolição da concentração para os jogadores não teria colaborado para a conquista. Afinal, desde que liberou seus jogadores, o Galo obteve 16 vitórias, sendo três goleadas sobre Flamengo e Corinthians.

Acaba de ser lançado o belo documentário "Democracia em Preto e Branco", de Pedro Asberg. A produção lembra que uma das principais conquistas da Democracia Corintiana foi exatamente o fim da concentração.

No filme, Sócrates defende a medida de forma pragmática. Preso na concentração, o jogador teria como meta principal não a realização da partida, mas a reconquista de sua liberdade. Sem a restrição, o objetivo passaria a ser o próprio jogo.

Porém, alguns comentaristas e dirigentes ainda hoje discordam. Liberados, dizem, os jogadores podem abusar da comida e da bebida, por exemplo. Ou se dedicar a atividades pouco saudáveis. Também podem se atrasar para treinos de vésperas de jogo. São justificativas nada pragmáticas. Mal escondem seu racismo e preconceito de classe.

O futebol movimenta milhões de reais, mas todo este lucro não é controlado por seus jogadores. Estes são formados por uma maioria negra de origem pobre. Para seus patrões, não passam de pessoas indisciplinadas. Fora de campo, seriam pouco inteligentes, andariam em más companhias e cultivariam vícios nada sofisticados.

Por sua origem social e cor da pele, jogadores de futebol não passariam de animais de puro sangue. Apenas músculos e uma inteligência para uso exclusivo nos gramados. Mas nada disso permite afirmar que a restrição a sua liberdade recebeu um nome inspirado pelos campos nazistas de trabalho forçado, certo?

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28 de novembro de 2014

O ministério de Dilma e a esquerda dos manifestos

A nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda foi saudada pelos editoriais da grande imprensa e pelo "mercado". O indicado promete "ajuste fiscal". Definição genérica para mais apertos nos já estrangulados programas sociais. Enquanto isso, continua o pagamento dos juros da ilegítima dívida pública que come metade dos orçamentos públicos.

Dias atrás, intelectuais e dirigentes de movimentos sociais divulgaram um manifesto contra a indicação de Levy e Kátia Abreu para o ministério. Foi assinado por lideranças e personalidades que apoiaram a reeleição de Dilma.

O episódio poderia lembrar as reações do PCB ao ministério montado pelo governo Goulart no início dos anos 1960. Os comunistas faziam pressões para que o presidente nomeasse ministros menos hostis às lutas populares e operárias. Mas a comparação é frouxa.

São momentos históricos bem diferentes. Goulart era um latifundiário que foi empurrado para a esquerda pelos golpistas de sua própria classe. Os governantes petistas se jogaram nos braços da direita porque viraram as costas para a classe da qual surgiu e onde se fortaleceu.

Por outro lado, acerta quem diz que Dilma não tinha opção. Há 12 anos, o PT governa sem romper com o essencial da política neoliberal. Agora que o País caminha para uma crise econômica e a reeleição foi conquistada a duras penas, os petistas jamais mudariam de rumo.

Muito mais grave é a fragilidade da reação da maior parte das forças de esquerda. Nos anos 1960, o PCB também ficou a reboque de um governo reformista. Mas, pelo menos, convocou uma greve geral por um "gabinete nacionalista". Hoje, nos limitamos ao lançamento de manifestos.
 
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27 de novembro de 2014

Os maiores derrotados pela meritocracia

   Kuczynski
Em "A ralé brasileira", Jessé Souza denuncia a "ideologia da meritocracia" como a mais poderosa do mundo moderno. É através dela que a grande maioria de nós aceita a desigualdade social como "justa" e "legítima", pois refletiria o "mérito diferencial" dos indivíduos.

Um dos fatores que fortaleceria essa concepção é o fato de que a burguesia é a primeira classe dominante que também trabalha. Mas há outro fator, lembrado pelo marxista estadunidense Hal Draper: o capitalismo é o primeiro sistema que tem na competição selvagem entre os membros de sua classe dominante um elemento importante para sua manutenção e expansão.

Junte-se a isso o individualismo extremado típico do capitalismo e temos a fórmula perfeita para justificar as injustiças sociais: a livre competição premia os melhores.
 
Claro que ficam de fora alguns elementos que desmentem a perfeição dessa fórmula. O trabalho do burguês está longe de ser tão degradante, tedioso, cansativo, mal remunerado ou alienante como o da grande maioria.
 
E a vitória na competição social está garantida de antemão aos que contam com as enormes vantagens proporcionadas pela classe em que nasceram. Exageram-se as exceções apenas para esconder as injustiças do ponto de partida.
 
O mais grave é que a obra de Souza mostra como esta lógica é poderosa exatamente entre suas principais vítimas. A maioria dos indivíduos da chamada "ralé" responsabiliza a própria incompetência por seus fracassos.
 
Mas o pior, mesmo, é vermos valores meritocráticos sendo adotados por organizações que afirmam combater as injustiças sociais. Partidos, sindicatos, entidades populares competem mortalmente pelo título de representante maior dos derrotados. Quem perde é a grande maioria.
 
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Jessé Souza e o necessário combate à meritocracia

O que faz uma classe social ser uma classe, ou seja, o que faz um certo universo de indivíduos agirem de modo semelhante não é (...) a “renda”, mas a sua construção “afetiva” e pré-reflexiva montada por uma “segunda natureza” comum que tende a fazer com que toda uma percepção do mundo seja quase que “magicamente” compartilhada sem qualquer intervenção de “intenções” e “escolhas conscientes”.

O trecho acima pertence ao livro “A ralé brasileira”, organizado por Jessé Souza. Ela pode causar estranheza aos que se alinham politicamente à esquerda, mas o objetivo da obra é combater um “economicismo” sociológico bastante útil à direita.

A principal fonte de inspiração dos autores do estudo é Pierre Bourdieu. O que eles denominam “segunda natureza”, o sociólogo francês chamava de habitus de classe. Esta noção permitiria entender as motivações subjetivas das relações entre as classes sociais. Explicaria por que as ideias que justificam a dominação social não apenas são aceitas por suas maiores vítimas, como reproduzidas por elas.

Trata-se de uma abordagem complexa para a maioria de nós, acostumados a enxergar a realidade social usando quase exclusivamente lentes e critérios quantitativos. Algo que passa por ser rigor científico, mas fica só um pouco acima do senso comum. Não à toa, muito presente na grande mídia, com seus infográficos pretensamente objetivos.

Mas o centro desse debate não é científico. É político. Diz respeito à luta de classes. Um dos objetivos do estudo coordenado por Souza é combater a meritocracia. Esta ideologia moderna que esconde a injustiça e a desigualdade sociais de modo tão eficiente. Voltaremos a ela e ao livro.

25 de novembro de 2014

A guinada à direita de Dilma vem de longa data


O histórico de Joaquim Levy não deixa dúvida sobre o seu conservadorismo, posto em prática evidente ao menos desde que foi secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento no governo Fernando Henrique. Conservadorismo confirmado no governo Lula, quando foi um dos inspiradores da política econômica que consagrou Antonio Palocci nos setores do domínio financeiro. E conservadorismo consolidado como secretário do Tesouro, quando Levy foi o ponto de resistência a gastos e outras medidas de linha social pretendidas no governo Lula.

A ficha corrida acima pertence ao mais novo indicado pelo governo Dilma para assumir o Ministério da Fazenda. Foi publicada por Janio de Freitas, em 23/11, na Folha. A ela deveríamos juntar outro prontuário. O de Kátia Abreu, provável ocupante da pasta da Agricultura. Mas a trajetória da representante maior do agronegócio nacional dispensa apresentações.

Apesar disso, o principal motivo para recusar o voto tanto a Dilma como aos tucanos no último turno eleitoral não dizia respeito a medidas como essas. Pela quarta vez, os petistas voltam a se eleger na condição de representantes das forças de esquerda para governarem atendendo aos interesses da direita. Não há novidade alguma aqui.

Muito mais grave que nomeações ministeriais conservadoras foi o decidido e firme reforço do governo federal aos instrumentos repressivos estatais como reação às manifestações de junho de 2013. Incluindo prisões ilegais de militantes políticos e manifestantes em geral. E é este aparato que será colocado em funcionamento caso as medidas adotadas pelo governo reeleito despertem a resistência popular.

A verdadeira guinada à direita do governo Dilma aconteceu muito antes de sua reeleição.

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24 de novembro de 2014

Jessé Souza e a necessária sociologia das subjetividades

O sociólogo Jessé Souza é uma das vozes mais atuantes no recente debate sobre o suposto surgimento de uma nova classe média no País. Para ele, os membros desse setor social são apenas os já conhecidos trabalhadores precarizados. Pessoas que foram incorporadas ao mercado de trabalho em funções pouco qualificadas e mal pagas.

Entre os estudos publicados pelo sociólogo potiguar está "A ralé brasileira", de 2009. O livro reúne artigos de diversos pesquisadores. São estudos de caso feitos sob coordenação de Souza, envolvendo uma parte da população fortemente afetada pela histórica e extrema desigualdade social do País.

Na obra, o sociólogo define "ralé" como "a classe, que compõe cerca de 1/3 da população brasileira", condenada a ser apenas "corpo mal pago e explorado". Por isso, objetivamente desprezada e não reconhecida por todas as outras classes que compõem a sociedade.

Um dos capítulos trata da "miséria do amor dos pobres", abordagem que raramente aparece em análises sociológicas. Mas é apenas mais um dos estudos com que o livro procura superar o "economicismo" sociológico. Um mal que, segundo seu organizador, domina as ciências sociais atualmente. Vício de que não escapariam tanto os cientistas liberais, como um certo marxismo pouco criativo.

Pode-se concordar ou não com as principais teses apresentadas pelo livro. Mas não há como negar a importância do desafio que propõe. Não há conhecimento crítico da realidade social sem abordar a subjetividade dos explorados e humilhados. Não haverá transformação social sem respeitar o que vai na alma e na mente daqueles a quem mais interessa o fim da atual ordem desigual e opressora.

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