Doses maiores

25 de março de 2022

O contrário da guerra não é a paz, mas o massacre

O livro “Estratégia socialista e arte militar”, de Emilio Albamonte e Matías Maiello é uma fraterna provocação à esquerda. Afinal, perguntam eles, nos tornamos pacifistas? Pior que isso, deixamos de discutir estratégia?

Grosseiramente falando, a diferença entre tática e estratégia é a mesma entre meios e fins. Mas, aparentemente, a esquerda vem concentrando tanto tempo e esforço nos meios que acabou esquecendo os fins a que eles devem servir.

Albamonte e Maiello utilizam a elaboração de Carl von Clausewitz como meio para discutir os fins defendidos por personalidades como Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Guevara e tantos outros. Todos eles também estudiosos da obra do grande estrategista militar prussiano. É famosa a frase em que Clausewitz define a guerra como “continuação da política por outros meios”. Em outras palavras, são os objetivos políticos, mais do que os militares, que devem predominar numa guerra.

Assim, nas sociedades de classe, o contrário do pacifismo não é a beligerância. É a consciência de que não se trata de debater se ações armadas acontecem ou não. Mas como os explorados, suas maiores vítimas, podem se defender delas. Afinal, no capitalismo, o contrário da guerra não é a paz, mas o massacre. A morte constante e massificada de pobres e não brancos. Das minorias e maiorias exploradas e discriminadas.

Guerrilhas, milícias populares, ações armadas. Nenhuma dessas formas de autodefesa popular deve ser um fim em si mesmo. Nosso objetivo é o socialismo. É uma sociedade justa, em que as ações bélicas pertençam a um triste passado. Admitido isso, nossas táticas não podem baixar a guarda frente à trágica violência do presente.

Até maio!

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24 de março de 2022

A luta armada como fim em si mesmo

“A tática ensina como usar as forças armadas nos confrontos e a estratégia, como usar os confrontos para atingir os objetivos da guerra”. Che Guevara começa um texto de 1962 com esta referência à definição de tática e estratégia de Clausewitz.

Em seu livro “Estratégia socialista e arte militar”, Emilio Albamonte e Matías Maiello apontam Guevara como um crítico radical do “evolucionismo” reformista, limitado ao parlamentarismo, à luta sindical, às mobilizações pacíficas e à colaboração de classes, sem perspectivas revolucionárias.

Mas o problema, dizem nossos autores, é que Guevara tende a desenvolver uma oposição mais ou menos mecânica entre reformismo-pacifismo versus armada-revolução. No entanto, é perfeitamente possível promover ações armadas sem objetivos revolucionários.

Na verdade, Guevara retomou a guerra popular prolongada defendida por Mao Tsé-Tung. Mas a vitória dos guerrilheiros cubanos teria levado à equivocada ideia de que a “luta armada”, por si só, garantiria o caráter revolucionário do processo. Os meios teriam tomado o lugar dos fins.

Uma consequência importante dessa concepção é uma teoria divorciada de problemas estratégicos reais. Por isso, dizem Albamonte e Maiello, na obra de Che não se encontram elaborações significativas sobre fenômenos como o movimento camponês real, a urbanização e expansão da classe trabalhadora entre as décadas de 1950 e 1960 ou o movimento sindical.

Essa característica se refletirá no amplo leque de organizações que, nas décadas de 1960 e 1970, transformaram a guerrilha em estratégia. Apesar de seu heroísmo, um erro que muitos deles pagaram com suas vidas.

Se a guerra é continuação da política, esta jamais pode ficar a reboque daquela.

Concluiremos esta série na próxima pílula.

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23 de março de 2022

Bandeiras à prova de bala

Em momentos de ruptura do equilíbrio social e político, na medida em que os capitalistas modificam a correlação entre os elementos coercitivos e consensuais de sua dominação, a classe trabalhadora também deve fazê-lo.

No parágrafo acima de seu livro “Estratégia socialista e arte militar”, Emilio Albamonte e Matías Maiello estão se referindo ao duplo caráter da dominação de classe. O elemento consensual, conquistado através da hegemonia social e cultural, e a dimensão repressiva, em que pesam os instrumentos de coerção. Ambos convivem, claro. Mas quando o primeiro é insuficiente, o segundo se faz sentir de modo mais esmagador e explícito.

Eles citam Trotsky, que diz: “Os fascistas mostram audácia, saem às ruas, enfrentam a polícia, ameaçam fechar o parlamento. Isso impressiona o pequeno burguês desesperado”. Enquanto isso, continua ele, muitos dizem que a esquerda não deve assustar a classe média com a revolução porque ela abomina radicalismos.

O problema é que quando o pequeno proprietário perde a esperança, costuma se entregar facilmente às medidas mais extremas. Para Trotsky, a construção de uma aliança com os setores médios empobrecidos é fundamental. Mas desde que o proletariado mantenha sua independência de classe e aperfeiçoe seus mecanismos de autodefesa. Caso contrário, os setores médios acabam apoiando a repressão estatal e os atentados fascistas contra os trabalhadores.

Albamonte e Maiello citam ainda Carl Clausewitz, que diz que não se pode “perder de vista o inimigo para que, caso ele pegue sua espada de combate, não sejamos obrigados a nos defender com um estandarte”.

Ou seja, as bandeiras do proletariado podem ser muito bonitas, mas não são à prova de bala.

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22 de março de 2022

Também na luta de classes, a melhor defesa é o ataque

“A forma defensiva da guerra não é (...) um simples escudo, mas um escudo formado essencialmente por golpes desferidos com habilidade”, disse Carl Clausewitz em sua obra “Da Guerra”.

Emilio Albamonte e Matías Maiello citam o respeitado teórico militar em seu livro “Estratégia socialista e arte militar” para explicar como, durante a Revolução Russa, os bolcheviques souberam usar sua posição defensiva para golpear os setores vacilantes e conciliadores da esquerda russa.

Por exemplo, ao levantar a exigência junto àquelas lideranças no sentido de que rompessem com os ministros capitalistas e as potências imperialistas e tomassem o poder. Segundo essa tática, os revolucionários não participariam de tal governo, mas lutariam pelo poder conquistando a maioria nos sovietes. Ao mesmo tempo, sem dar apoio ao governo burguês que sucedeu ao monarquismo, lideraram a resistência a uma tentativa de golpe da extrema direita. Com isso, aproveitaram para armar o proletariado.

Nem Lênin nem Trotsky acreditavam que uma etapa democrática intermediária fosse possível sob o governo dos conciliadores. Mas, se algo assim fosse tentado, a classe trabalhadora estaria em melhores condições para lutar pelo poder operário. E se nada disso acontecesse, ainda assim, serviria para arrancar os trabalhadores da influência das direções conciliatórias. A ação dos bolcheviques durante a revolução de 1917 foi uma verdadeira escola de como lutar defensivamente, estando em minoria, para alcançar objetivos que minavam a força inimiga.

Essa importante lição, proveniente dos campos de batalha, mostra que estar na defensiva não pode ser pretexto para recuos ou rendição. Mesmo que se trate de uma mera disputa eleitoral. Menos ainda, lutando por votos com a extrema-direita.

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21 de março de 2022

A revolução, o exército e as forças policiais

Muita gente acha que os bolcheviques fizeram a revolução à frente de uma enorme máquina de guerra. Mas o Exército Vermelho foi formado somente após a tomada do poder, graças principalmente a Trotsky, que defendia a necessidade de preparar o novo regime para se defender militarmente do cerco imperialista e da contrarrevolução interna.

Mas, então, como os revolucionários enfrentaram as poderosas forças repressivas do antigo regime? Fazendo um longo e dedicado trabalho militante nos quartéis e nas trincheiras.

É preciso lembrar que o exército russo foi bastante ampliado para lutar na Primeira Guerra. Incluindo, a convocação de muitos camponeses. Gente que dificilmente entraria em contato com trabalhadores revolucionários em seus lugares de origem. Influenciados por eles, os soldados camponeses começaram a desertar para não morrer em uma guerra que não era sua. Ao mesmo tempo, levavam de volta para suas aldeias as propostas socialistas que conheceram nas trincheiras. Esse trabalho permitiu ganhar grandes parcelas das forças armadas para a revolução, ou, pelo menos, neutralizar sua atuação.

E quanto às forças policiais? No livro “Estratégia socialista e arte militar”, Emilio Albamonte e Matías Maiello citam um relato de Trotsky: “A polícia, diz ele, não tardou a desaparecer completamente do mapa”. Para os trabalhadores em luta, “os policiais eram inimigos cruéis, irreconciliáveis, odiados”. Não havia como pensar em conquistá-los. Falavam, inclusive, em açoitá-los ou matá-los.

Assim, no início da revolução de 1917, dizem nossos autores, enquanto o exército estava dividido, a polícia fora destruída. A intensa militarização das sociedades contemporâneas tornaria muito difícil adotar proposta semelhante em uma nova situação revolucionária. Mas fica a dica.

Continua.

Leia também: Trabalhadores armados no processo revolucionário russo

18 de março de 2022

Trabalhadores armados no processo revolucionário russo

Em situações de guerra civil, muitas vezes ocorre um armamento generalizado da população. Cada lado do conflito procura armar o máximo de apoiadores. O problema ocorre na hora de desarmá-los. O livro “Estratégia socialista e arte militar”, de Emilio Albamonte e Matías Maiello, discute as contradições dessa situação.

Na Rússia, durante o processo revolucionário de 1917, a burguesia foi obrigada a permitir o armamento da população para superar a crise do czarismo. A partir daí, surgiram dois modelos de milícias populares. No modelo “democrático europeu”, elas eram heterogêneas do ponto de vista da composição de classe. Substituíam a polícia na manutenção da ordem e estavam sob o controle do Governo Provisório. Já as milícias operárias eram unidades formadas a partir das necessidades de autodefesa dos trabalhadores e respondiam aos comitês de fábrica. Era a Guarda Vermelha, que tirava o sono das classes dominantes.

Essa diferença entre as formas de organização militar popular está longe de ser desprezível. Um exemplo de “milícia cidadã” foi a Guarda de Assalto, surgida durante a Revolução Espanhola. Formada em 1932, acabou desempenhando um papel vergonhoso na repressão ao movimento operário entre 1936 e 1937.

No processo revolucionário russo, a Guarda Vermelha resistiu às tentativas de liquidá-la e manteve sua independência. Até que durante a tentativa de golpe do general Kornilov, no início de setembro, sua situação deu uma guinada. Passou da “semilegalidade” à legitimação junto aos trabalhadores, por sua atuação na derrota da contrarrevolução. Logo depois, se tornou a principal força armada dos sovietes.

Mas e quanto à polícia e ao exército regulares? É o que veremos na próxima pílula.

Leia mais: Em tempos de paz, escolas de guerra revolucionária

17 de março de 2022

Em tempos de paz, escolas de guerra revolucionária

Os conflitos da luta de classes em tempos de paz são fundamentais para as concepções estratégicas de Lênin. Ele os concebe, já em 1901, como “escolas de guerra”. É assim que analisa, por exemplo, as greves combativas: os trabalhadores não conhecem as leis e não convivem com autoridades, mas quando iniciam uma paralisação, enfrentam forças repressoras, que logo os ensinam muito sobre o caráter de classe das leis e autoridades.

Lênin observa que "a 'escola da guerra' ainda não é a própria guerra". No entanto, atribuiu-lhe uma importância fundamental. Por um lado, porque obriga o partido revolucionário a vincular-se à vanguarda operária. Por outro, porque permite que os revolucionários adquiram "virtudes guerreiras".

Uma abordagem semelhante foi realizada por Clausewitz em relação à possibilidade de conquistar hábitos de combate fora da própria guerra: manobras em que elementos como perigo, acaso, fadiga exercitam o julgamento, a capacidade de avaliação e até a determinação de comandantes e combatentes.

As “escolas de guerra” foram essenciais na preparação dos bolcheviques para a situação da Rússia durante a Primeira Guerra. Teve sua máxima expressão em fevereiro de 1917, quando aqueles que Trotsky chamou de “operários treinados por Lênin” lideraram a insurreição que derrubou o czarismo sem a anuência do próprio Lênin ou da maioria da direção do partido, que estava no exílio.

Escolas de guerra socialistas devem formar militantes capazes de agir e pensar com independência. Do contrário, eles serão capazes de fazer qualquer coisa, menos uma revolução.

As informações acima estão no livro “Estratégia socialista e arte militar”, de Emilio Albamonte e Matías Maiello. Na próxima pílula, continuaremos a comentá-lo.

Leia também: A revolução como guerra civil

16 de março de 2022

A revolução como guerra civil

Para os marxistas, revoluções são uma forma de guerra civil. Não à toa, o relato de Marx sobre a Comuna de Paris tem como título “A Guerra Civil na França”.

É esta problemática que abordam Emilio Albamonte e Matías Maiello no livro “Estratégia socialista e arte militar”. Durante a Primeira Guerra, dizem eles, Lênin deixou muito claro: somente a revolução poderia parar a guerra. Essa conclusão foi baseada em uma fórmula utilizada pelo respeitado teórico prussiano Carl Clausewitz. Para este, a guerra era a continuação por meios violentos da política dos estados imperialistas em tempos de paz. Na formulação leninista, a única maneira eficaz de lidar com esses conflitos era derrotar a política que as originou. E para fazê-lo era fundamental travar uma guerra contra a ordem dominante no interior de cada país.

Essa postura inspirou a política que Lênin chamou de “derrotismo”. Ela consistia em rejeitar a "paz" que os diferentes estados imperialistas queriam impor. A classe trabalhadora não deveria abandonar suas lutas para atender as prioridades militares de seus opressores e exploradores. Nesse sentido, a derrota do próprio país seria um “mal menor” diante da necessidade de desenvolver a luta de classes no sentido de transformá-la em uma guerra revolucionária.

E nos tempos de paz? Para Lênin, na ausência de confrontações bélicas, os conflitos da luta de classes seriam “escolas de guerra”. Ou seja, os confrontos contra o capital devem servir como preparação e ensaio para aqueles momentos de guerra de classes que dificilmente deixam de acontecer.

É o que veremos na próxima aula. Quer dizer, pílula.

Leia também: O socialismo e a questão militar

15 de março de 2022

O socialismo e a questão militar

O dever de um partido revolucionário é prever a inevitabilidade da transformação da política em conflito armado declarado e se preparar com todas as suas forças para esse momento, assim como o fazem as classes dominantes.

A frase acima é de Leon Trotsky e está no livro “Estratégia socialista e arte militar”, de Emilio Albamonte e Matías Maiello. Ela e o título do livro devem ser suficientes para deixar claro qual a grande preocupação dos autores.

Para muitos da esquerda, falar em resistência armada contra as classes dominantes pode soar anacrônico. Mas basta olhar em volta com atenção e sob a ótica dos interesses de classe dos dominados para considerar a questão mais do que atual. Principalmente, em plena guerra da Ucrânia.

Os autores identificam no marxismo contemporâneo um “pacifismo” incompatível com suas aspirações revolucionárias. Por isso, acham necessário restaurar a relação “entre estratégia, marxismo e questão militar”.

Albamonte e Maiello são do Partido Socialista dos Trabalhadores na Argentina e da Fração Trotskista da Quarta Internacional. Portanto, a principal referência da obra é Trotsky. Mas em diálogo com Marx, Engels, Lênin, Rosa, Gramsci, Mao e Che Guevara.

Porém, a figura teórica central do livro é Carl Phillip Clausewitz, general prussiano que se destacou como grande estrategista e estudioso da guerra moderna, tendo sido estudado por Marx, Engels e muitos de seus seguidores. Em sua obra “Da Guerra”, aparece a famosa definição da guerra como “continuação da política por outros meios". Frase que Trotsky adaptou para o âmbito da luta revolucionária. Nesta, diz ele, a revolução torna-se guerra civil e fase violenta da luta de classes.

Continua.

Leia também: Gandhi e Lênin: uma comparação

11 de março de 2022

Os beatos que lutam pelo bem comum no “agora"

Em seu livro “A terra da mãe de Deus”, Luitgarde Cavalcanti estuda o mundo beato do Juazeiro de Padre Cícero. Para abordar a forte presença da religiosidade católica na região, sua principal referência teórica é Antônio Gramsci. Por exemplo, neste trecho:

Depois de definir o folclore como "um conjunto indigesto de fragmentos de todas as concepções de mundo e da vida sucedidas na história", Gramsci distingue nele uma religião popular "muito diferente da dos intelectuais e da hierarquia eclesiástica, uma moral popular formada por um conjunto de máximas para a conduta prática e de costumes". Esse catolicismo popular, próprio das camadas subalternas, é divergente da Teologia – concepção da hierarquia religiosa dos intelectuais católicos.

Referindo-se às promessas de redenção eterna, Luit mostra como as classes dominadas, diante das injustiças que sofrem, tentam “realizar no ‘agora’ as promessas do bem comum”. Enquanto esperam o "fim do mundo":

...não se quedam num imobilismo transcendental, mas, muito pelo contrário, partem para uma ação de "plantar" o novo mundo, de "construir" a utopia do mundo do espírito santo. Como se tivessem consciência teórica do papel histórico do homem na construção material e espiritual de seu próprio mundo, não esperam a chegada de Deus construtor dessa "existência inefável", mas fazem eles mesmos as suas "cidades santas", as cidades longe do pecado. Nesse movimento de precipitação dos fatos prometidos, o encurtamento do tempo, com a ameaça do julgamento final, obriga os homens a superar a contradição máxima entre dominadores e dominados.

Foi o que fizeram em Canudos, Caldeirão, Contestado e vão continuar a fazer até que já não haja dominadores ou dominados.

10 de março de 2022

A religião como ação transformadora sobre o mundo

Entre 1926 e 1937, surgiu a comunidade Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no Crato, Ceará. Organizada por sertanejos em bases socialmente igualitárias e liderada pelo Beato José Lourenço, a iniciativa foi considerada um desafio à alta hierarquia católica e aos poderes políticos locais.   

Em seu livro “A terra da mãe de Deus”, Luitgarde Cavalcanti entende a religião como uma ideologia de classe. Mas quando “as baixas camadas, submetendo essa ideologia a sua práxis, constatam sua inadequação, vão-se afastando progressivamente do polo hegemônico”, diz nossa autora. Desse modo, continua ela, lideranças como José Lourenço e Antônio Conselheiro:

...enquanto produtores de ideologia, reeducam o povo para abandonar a ideologia do enriquecimento pessoal em troca do enriquecimento coletivo, o que eles vão conseguir através da colocação da mensagem cristã como mobilizadora e norteadora das formas de relação dos homens entre si e com a natureza. As relações religiosas passam a constituir relações de autoridade no grupo, ficando hierarquicamente privilegiados quanto ao poder de mando aqueles que reproduzem com maior fidelidade a doutrina igualitária cristã na vida prática. É assim que se dá uma ordenação da vida social capaz de promover o processo de produção e distribuição, o controle enfim da própria sociedade. A religião deixa de ser nessas condições específicas apenas uma forma de representação, transformando-se também numa "ação sobre o mundo", agindo eficazmente sobre uma realidade.

Os beatos, conclui Luit, assumem papel de produtores de ideologia, exercendo efetiva hegemonia em toda a comunidade. Não por acaso, tiveram o mesmo destino de Canudos, sofrendo um massacre em que morreram, pelo menos, 400 deles.

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também: O povo beato e seus intelectuais orgânicos

9 de março de 2022

O povo beato e seus intelectuais orgânicos

Entendendo a religião como uma ideologia de classe, consideramos necessário, para estudá-la, conhecer a "repartição dos diferentes intelectuais, suas ligações mais ou menos orgânicas com as classes sociais, etc. É necessário também estudar os canais pelos quais se efetuam a produção e a difusão da ideologia". Nessa perspectiva resolvemos estudar o movimento social religioso de Juazeiro, a partir não apenas dos trabalhos existentes sobre o tema, isto é, da forma como ele é visto por aqueles que não integram o "mundo do Padre Cicero", mas também considerando os discursos de integrantes desse universo.


As palavras acima são de Luitgarde Cavalcanti, no livro “A terra da mãe de Deus”, sobre o mundo beato do Juazeiro de Padre Cícero. Nela estão implícitos os conceitos gramscianos de intelectuais orgânicos e intelectuais tradicionais. Estes últimos, trabalhando pela conservação da ordem dominante, enquanto os primeiros se formariam na luta contra ela.

No caso em questão, Padre Cícero desempenharia o papel de intelectual tradicional da Igreja Católica, ainda que a forma se sua atuação fosse repudiada pela alta hierarquia católica, colocando-o em uma situação ambígua. Enquanto isso, diz a autora, os beatos seriam os “intelectuais orgânicos, produtores de ideologia das baixas camadas”. Sua atuação manifestando-se sob a “forma limite da consciência historicamente possível da ideologia dominada, na formação social do Nordeste sertanejo”.

É fundamental notar, porém, que essa “forma limite” afeta os dominados em geral. Pelo menos, até que superem sua condição subalterna. Ou seja, ainda que pouco letrados, ainda que brutalizados pela ordem dominante, os beatos sempre foram perfeitamente capazes de assumir o papel de intelectuais responsáveis por sua própria emancipação.

Leia também: Os beatos do Juazeiro e o comunismo dos apóstolos

8 de março de 2022

Os beatos do Juazeiro e o comunismo dos apóstolos

Em seu livro “A terra da mãe de Deus”, Luitgarde Cavalcanti analisa o mundo beato ligado ao Juazeiro do Padre Cícero. Em sua vivência sob condições sociais e naturais hostis, os beatos se guiavam pelos valores originais do comunitarismo cristão.

A autora cita uma homilia do século V de São João Crisóstomo, segundo Rosa Luxemburgo, "aquele que pregou mais ardentemente aos cristãos para regressarem ao primeiro comunismo dos Apóstolos":

E havia uma grande caridade entre eles, ninguém era pobre entre eles, ninguém considerava como seu o que lhe pertencia, todas as suas riquezas estavam em comum... uma caridade existia entre eles. Esta caridade consistia em que não havia pobres entre eles, de tal modo que os que tinham bens apressavam-se a desprender-se deles. Não dividiam as suas fortunas em duas partes, dando uma e guardando a outra; davam o que tinham. Assim não havia desigualdade entre eles. Todos viviam em grande abundância. Tudo se fazia com o maior respeito. O que davam não passava da mão do doador para a mão do que recebia; as suas dádivas eram sem ostentação; traziam os bens aos pés dos apóstolos que se tornavam os controladores e donos deles que os usavam, daí para o futuro, como bens da comunidade e já não como propriedade de indivíduos.

“A ideologia dominada só existe pela oposição à ideologia dominante da qual se origina, e pela qual estará contaminada”, escreve Luit. É a “descontaminação” das concepções de mundo dos dominados em relação aos valores dominantes que os torna perigosos para os de cima. No caso, para a cúpula católica.

Mais na próxima pílula.

Leia também: Os marxistas práticos do mundo beato no sertão nordestino

7 de março de 2022

Os marxistas práticos do mundo beato no sertão nordestino

“Marxistas práticos”. Foi assim que José Góes de Campos Barros chamou os beatos do povoado de Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que existiu no Crato, Ceará, entre 1926 e 1937. Para Campos Barros, “o beato, sem o saber, era marxista - marxista prático”.

O autor dessas palavras não tinha a menor simpatia pela comunidade que descrevia. Ao contrário, como oficial do Exército, integrou o comando da operação que promoveu o massacre dos moradores de Caldeirão. O crime de que eram acusados? Comunismo.

Sob liderança do Beato José Lourenço, afirma Campos Barros, aqueles “homens rudes, de rostos severos e mãos calosas como carapaças de tartarugas” faziam uma terra “estéril” produzir. “Para os seus celeiros convergiam todos os produtos da comuna”. Ainda segundo o relato do militar, seus moradores declaravam orgulhosos: “aqui nada me pertence, é patrimônio de todos os que vivem nesta irmandade e recorrem à nossa proteção”.

O relato aparece em “A terra da mãe de Deus”, importante livro de Luitgarde Cavalcanti, publicado em 1988. Nascida em Santana de Ipanema, no sertão de Alagoas, a autora é antropóloga, com quase 60 anos de trabalho acadêmico envolvendo a cultura e o modo de vida sertanejos. Entre seus muitos livros, estão obras fundamentais sobre Padre Cícero e Lampião.

Nas próximas pílulas, mais comentários sobre “A terra da mãe de Deus”, estudo no qual Luitgarde utiliza a elaboração de Antonio Gramsci para abordar a religiosidade popular como foco de resistência às injustiças sociais. Fenômeno importante para entender rebeliões como a do próprio Caldeirão, do arraial de Canudos e dos povoados do Contestado.

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