Doses maiores

31 de janeiro de 2022

A China preocupada com o capitalismo digital

Em 23/01/2022, a Revista e-government do governo chinês publicou o artigo “Ganhando 1 bilhão por dia, como os gigantes da Internet extraem valor residual digital?”, do professor He Zhe, da Escola Central do Partido Comunista Chinês.

Em um trecho do texto, ele diz:

Na era industrial, pode levar décadas ou mesmo centenas de anos de trabalho árduo e acumulação de longo prazo para que um empresário comum se torne o homem mais rico (seja em um país ou no mundo), como Rockefeller, Carnegie, etc. Mas na era da economia digital, o efeito de agregação de capital em grande escala e a rápida expansão replicável da economia de dados podem permitir que um empreendedor tenha dezenas de bilhões ou centenas de bilhões de riqueza em um período muito curto de tempo (dentro de uns poucos anos). Isso significa que o efeito de aglomeração de capital na era da economia digital será mais evidente, o que pode levar a um resultado inevitável, ou seja, na era da economia digital, poderá ocorrer uma polarização mais grave, levando a uma série de consequências graves da polarização das classes sociais.

O texto é muito interessante, pois mostra como o pensamento oficial chinês está preocupado com as contradições do funcionamento do capital. A leitura atenta deixa claro, no entanto, que o objetivo maior é como fazer com que o sistema funcione sem os solavancos e crises para os quais a “governança” ocidental vem irresponsavelmente dando pouca atenção. Ou seja, o governo chinês está seriamente comprometido com a salvação do capital.

O artigo está aqui, em chinês, com conversão automática para o português.

Leia também: Revolução Chinesa e revolução permanente desviada

28 de janeiro de 2022

Tancredo, Lula e transações pelo alto

Em 26/01/2022, Elio Gaspari publicou o artigo “Lula está um passo à frente”, sobre os esforços do ex-presidente para se mostrar moderado.

Mas interessante, mesmo, foi o colunista comparar o petista a Tancredo Neves, quando este conseguiu ser eleito presidente no Colégio Eleitoral em 1985, desalojando os generais do Palácio do Planalto.

Ocorre que, naquele momento, o PT foi o único partido a boicotar a votação. Tratava-se de uma “transação” pelo alto, justificou Lula. Ele estava correto. A vitória de Tancredo inaugurou a Nova República, cujo caráter conservador garantiu, por exemplo, a impunidade aos militares que viria a parir criaturas como Bolsonaro.

Mas é exatamente uma “transação” parecida o que Lula está tentando agora. A possibilidade de fazer de Alckmin seu vice nas próximas eleições sendo um dos sinais mais claros de tal pretensão.

Uma diferença é que a oposição institucional à ditadura só conseguiu fazer valer seu projeto 20 anos após o golpe empresarial-militar. Lula está tentando negociar algo semelhante apenas seis anos depois do golpe parlamentar.

Mas a diferença fundamental é que na época do Colégio Eleitoral havia um polo de oposição popular e de esquerda se consolidando através de organização pela base e muitas lutas.

O problema é que esse polo acabou se dissolvendo na institucionalidade e nada foi construído em seu lugar. Lula chegou à Presidência, mas totalmente vulnerável, como prova sua prisão.

A tentativa de reação por dentro do golpe é o que nos restou. Vai ser difícil, mas é preciso transformar esse péssimo ponto de chegada em ponto de partida. Com Lula e contra ele.

Leia também: Lula, o cavalo do terreiro nacional

27 de janeiro de 2022

A marca de Caim do proletariado

Em um artigo publicado em 2014, o marxista canadense Bryan Palmer expõe uma caracterização do proletariado que valoriza a expropriação/desapossamento:

A expropriação é uma experiência altamente heterogênea, já que nenhum indivíduo pode se tornar despossuído precisamente da mesma forma que outro, ou viver esse processo de alienação material exatamente como outro o faria. Ainda assim, o desapossamento em geral define a proletarização. É a metafórica marca de Caim estampada em todos os trabalhadores, independentemente do nível de emprego, frequência de pagamento, status, condição de assalariado ou grau de ausência de assalariamento.

O título do texto é “Reconsiderations of Class: Precariousness as Proletarianization” e a citação aparece no livro “A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo”, de Marcelo Badaró. Ela ajuda a mostrar que a exploração e a opressão assumem variadas formas, mas todas são reconhecíveis facilmente por quem as sofre.

Encerrando seu livro, Badaró afirma:

Reconhecer a heterogeneidade, a diversidade e a dinâmica histórica do sujeito coletivo classe trabalhadora, sem perder de vista sua existência como unidade relacional, é um desafio para o qual acredito que estejamos mais bem acompanhados com Marx.

O grande revolucionário alemão e seu parceiro Engels não disseram tudo sobre o proletariado e seu potencial revolucionário. Mas deixaram elementos suficientes, tanto teóricos como práticos, para armar os explorados e oprimidos não só por sua libertação, mas pela própria emancipação humana. Aquela capaz de libertar não só os que sofrem as injustiças da dominação, mas também os que exercem vergonhoso papel na condição de dominadores.

Encerram-se aqui os comentários sobre o livro de Badaró, com fortes recomendações para sua leitura.

Leia também: Marx e as feministas marxistas

26 de janeiro de 2022

Marx e as feministas marxistas

Em seu livro “A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo”, Marcelo Badaró destaca a importância de abordagens como a “teoria feminista/marxista unitária”. O autor destaca essa proposta por basear-se na elaboração de Marx como “crítica de uma totalidade articulada e contraditória de relações de exploração, dominação, e alienação”.

Dessa forma, afirma ele, torna-se possível “interpretar as relações de poder baseadas no gênero ou orientação sexual como momentos concretos daquela totalidade articulada, complexa e contraditória que é o capitalismo contemporâneo”. Entendendo ainda que “a opressão de gênero e a opressão racial não correspondem a dois sistemas autônomos que possuem suas próprias causas particulares: eles passaram a ser uma parte integral da sociedade capitalista através de um longo processo histórico que dissolveu formas de vida social precedentes”.

Em “O capital”, continua nosso autor, Marx expôs o drama do trabalho industrial feminino. No entanto, essa forma de opressão não foi desenvolvida por ele, mas por feministas marxistas que escreveram um século depois e apontaram para a centralidade do trabalho reprodutivo. Especialmente, o desempenhado de forma não remunerada pelas mulheres na família proletária, como elemento essencial à manutenção, reprodução (biológica e social) e regulação do preço da força de trabalho.

Esse é um dos melhores exemplos de como uma reflexão que reconhece as insuficiências de certas discussões específicas na obra de Marx encontra quase sempre respostas mais ricas do que em seus próprios escritos.

Mais uma vez dimensões importantes do proletariado ganham concretude nos embates cotidianos contra o domínio do capital em suas dimensões econômica e social. Nas lutas contra a exploração e contra a opressão.

Leia também:
Mariátegui e a consaguinidade revolucionária indígena
As feministas que leem Marx não estão contentes

25 de janeiro de 2022

Mariátegui e a consaguinidade revolucionária indígena

O realismo de uma política revolucionária, segura e precisa, na avaliação e utilização dos fatos sobre os quais cabe atuar nesses países em que a população indígena ou negra tem proporções e papel importantes, pode e deve converter o fator raça em um fator revolucionário. É imprescindível dar ao movimento do proletariado indígena ou negro, agrícola ou industrial, um caráter nítido de luta de classes.

O trecho acima é do livro “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”, de José Carlos Mariátegui, destacado por Marcelo Badaró em seu livro “A classe trabalhadora”.

Para Badaró, a elaboração do revolucionário peruano consegue:

...ao mesmo tempo, rejeitar o eurocentrismo do projeto “civilizatório” do capital e proclamar a universalidade do projeto emancipatório socialista, entendendo o vínculo necessário entre as demandas específicas dos indígenas peruanos (relacionadas à questão da terra e da exploração do trabalho, sob a égide do capitalismo em sua fase imperialista) e a luta internacional do proletariado pela revolução socialista.

Mariátegui morreu em 1930, mas sua obra permanece válida como mostra o protagonismo indígena em lutas nas mais variadas frentes. Os zapatistas liderando a última grande insurreição do século passado. Na América andina, indígenas arrancando conquistas de seus governos. Em terras brasileiras, os povos da floresta são vanguarda na luta contra o agronegócio.

Se a obra de Marx e Engels já apresentava alguns desses elementos, seu seguidor peruano usou da necessária criatividade revolucionária para a atualizar: “A consanguinidade do movimento indígena com as correntes revolucionárias mundiais é demasiado evidente para que precise documentá-la”, disse Mariátegui. Mais que as teorias, são as lutas que o comprovam.

Leia também: A revolução permanente dos povos colonizados

24 de janeiro de 2022

A revolução permanente dos povos colonizados

“Na década de 1850, Marx já antevia a possibilidade de que as lutas de classes nas colônias asiáticas (China e Índia em especial) tivessem impacto decisivo no processo da revolução proletária europeia”. A afirmação é de Marcelo Badaró, em seu livro “A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo”.

Além disso, destaca novamente Badaró, em “O capital”, o revolucionário alemão afirmou taxativamente que “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”.

Esses elementos mostram o equívoco da ideia de uma classe trabalhadora europeia, branca, masculina e reunida em fábricas como única capaz de protagonizar processos revolucionários.

A própria Revolução Bolchevique foi uma grande refutação prática dessa concepção. Na Rússia czarista, o campesinato era a enorme maioria da população. O capitalismo apresentava-se em um nível de desenvolvimento muito inferior ao do britânico, francês e alemão. Ainda assim, uma revolução socialista foi possível graças à utilização criativa do conhecimento acumulado por décadas de lutas dos explorados contra o capitalismo nos mais diferentes países.

Um dos principais responsáveis por isso foi Leon Trotsky, cuja teoria do desenvolvimento desigual e combinado procurava entender a dicotomia entre centro e periferia do sistema capitalista em sua etapa imperialista. Um esforço teórico que permitiu entender o processo russo como uma revolução permanente que pulou etapas, da autocracia à república soviética.

Também foi essa elaboração que levou, por exemplo, o marxista peruano José Carlos Mariátegui a perceber a especificidade das realidades latino-americanas e propor uma potencialidade revolucionária do elemento indígena nas lutas socialistas, ainda nos anos 1920.

Voltaremos a Mariátegui na próxima pílula.

Leia também: A origem heterogênea e multiétnica do proletariado

21 de janeiro de 2022

A origem heterogênea e multiétnica do proletariado

No livro “A hidra de muitas cabeças”, Peter Linebaugh e Marcus Rediker fazem uma crítica à obra de E. P. Thompson, cuja elaboração sobre a origem da classe operária inglesa foi fundamental, mas apresenta lacunas importantes .

Marcelo Badaró apresenta esse debate no livro “A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo”, para ressaltar a origem heterogênea e multiétnica do proletariado moderno, formado a partir de “escravizados africanos levados à força para as Américas; imigrantes pobres europeus, expropriados em suas regiões de origem (Inglaterra, Irlanda etc.) e muitas vezes enviados compulsoriamente para o Novo Continente; pobres urbanos e rurais da Inglaterra durante o processo de acumulação primitiva”.

Desse modo, diz nosso autor, “onde Thompson teria visto um ‘movimento inglês’ por uma ‘democracia inglesa’, Linebaugh e Rediker perceberam uma circulação atlântica de ideias e enfatizaram que a ‘parte mais vigorosa do debate não vinha de nenhuma experiência nacional isolada, fosse inglesa ou outra qualquer’”. Segundo eles, Thompson não atenta para as conexões com o imperialismo e simplesmente ignora o colonialismo, com sua crescente e significativa influência sobre as vidas das classes subalternas ao longo do século 19.

O que Linebaugh e Rediker fizeram
, diz Badaró, foi retomar o que Marx já dizia nos anos 1870 e 1880. Nessa época, ele afirmou ser impossível “tomar o caso inglês de formação da classe trabalhadora, abordado em ‘O capital’, como modelo de validade universal”.

“Circulação atlântica de ideias” diz respeito ao colonialismo e principalmente à escravidão. Mas também ao caráter necessariamente plural e multidimensional da emancipação proletária. Algo que Marx, Engels e seus melhores seguidores jamais perderam de vista.

Lei também: A consciência de classe como ponto de chegada

19 de janeiro de 2022

A consciência de classe como ponto de chegada

“Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real”. Esta frase está no livro “A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo”, de Marcelo Badaró.

Mas a citação pertence ao livro “A formação da classe operária inglesa”, de E. P. Thompson. Publicada em 1963, a obra mostrou-se valiosa ao afirmar algo que para Marx e Engels era óbvio, mas parecia esquecido. A consciência de classe não pode surgir se não das experiências concretas do proletariado.

Em um famoso trecho, Thompson diz:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe.

Mas um grande problema da antológica obra do historiador inglês é seu descuido em relação ao colonialismo. A experiência operária descrita por ele limita-se às experiências do proletariado inglês.

Para fazer o contraponto, Badaró cita, entre outras obras, “A hidra de muitas cabeças”, de Peter Linebaugh e Marcus Rediker. Lançado originalmente em 2000, o livro mostra que o proletariado tem muitas cores, origens, culturas. Será tema da próxima pílula.

Leia também: A classe trabalhadora e suas múltiplas determinações

18 de janeiro de 2022

A classe trabalhadora e suas múltiplas determinações

“Como a totalidade da realidade concreta, a classe trabalhadora também é uma síntese de múltiplas determinações”. Esta frase do livro “A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo”, de Marcelo Badaró, oferece uma chave importante para o debate sobre as chamadas “lutas identitárias”.

Sendo constituída por múltiplas determinações, a classe trabalhadora não pode, por exemplo, ser reduzida a sua dimensão branca, masculina, industrial e submetida apenas a relações formais de trabalho.

Como esclarece o autor, a maior parte das sociedades do passado não se enxergava dividida em classes. Desde o século XIX, porém:

...é possível dizer que parcelas expressivas de homens e mulheres que vivem do próprio trabalho passaram a se definir como pertencentes a uma mesma classe, distinta de outra(s). Classe se somou a um repertório de parâmetros de identificações coletivas compartilhadas (compatriotas, cidadãos, membros do mesmo sexo ou gênero, autoidentificações étnico-raciais etc.) para expressar uma desigualdade fundamental.

Ou seja, Badaró nos permite ver que as pessoas concretas que formam a classe trabalhadora carregam elementos identitários que as definem das mais variadas formas. E a condição proletária não elimina essas determinações, muito menos as simplifica.

Como diz o autor, o que se expressa é uma “desigualdade fundamental”. Múltiplas determinações implicam múltiplas contradições. Trabalhadoras e trabalhadores não se definem apenas pelas relações econômicas a que estão submetidos. As dimensões opressivas de gênero, etnia, orientação sexual, entre outras, também concorrem para manter a dominação. Mas tal situação não necessariamente inviabiliza uma síntese que permita à classe entender-se como única na diversidade e unida na luta contra suas adversidades.

Continuaremos debatendo como isso seria possível na próxima pílula.

Leia também: A permanência do proletariado

17 de janeiro de 2022

A permanência do proletariado

Em meio ao intenso e legítimo debate sobre as chamadas lutas “identitárias”, um livro como “A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo”, de Marcelo Badaró, traz importante contribuição.

A obra do historiador e militante marxista procura recolocar alguns fundamentos das concepções de Marx e Engels que costumam ser esquecidos ou ignorados até por muitos marxistas.

Para começar, eis a tese defendida por Badaró: “a classe trabalhadora, também chamada de proletariado, tal como aparece na obra de Karl Marx, continua tendo validade como categoria analítica para o entendimento da vida social sob o capitalismo”.

E um primeiro esclarecimento a ser feito envolve o conceito de “classe operária”. Segundo o autor, na língua alemã em que foram escritas as obras de Marx e Engels não há expressão equivalente.

Marx utilizava denominações que podemos traduzir literalmente como “classe trabalhadora” ou “proletariado”. Um termo, diz o autor, que é ao mesmo tempo mais rigoroso e mais abrangente do que classe operária.

Nos textos dos fundadores do materialismo histórico, o conceito de “proletariado” aparece, quase sempre, associado àqueles que não possuem outra forma de sobreviver numa sociedade de mercadorias, a não ser vendendo sua força de trabalho como mercadoria.

Nos “Manuscritos econômico-filosóficos”, de 1844, Marx adota o conceito a partir do latim “proletarius” (aquele que é definido apenas por si e sua prole, seus filhos). Portanto, nunca o restringiu ao operariado industrial.

E segundo essa definição, nas sociedades desenvolvidas, o proletariado da indústria e dos serviços representa de dois terços a quatro quintos da população ativa. Ou seja, o proletariado continua majoritário e ainda tem pesadas correntes a romper.

Continua...

Leia também: O exército de trabalhadores e suas divisões econômicas

14 de janeiro de 2022

Lula, o cavalo do terreiro nacional

Com seu jeito conciliador e envolvente de tratar os oponentes nas discussões e negociações, a figura de Lula se destacava entre as lideranças operárias...

(...)

Convertido em habilidoso negociador, ao mesmo tempo que sustentava a greve Lula tentava negociar com os patrões sem abrir mão das exigências...

Os trechos acima são da biografia de Lula, recém-lançada por Fernando Morais. Nela se destaca um líder “maneiro no trato com adversários e patrões, apesar da aparência de mal-humorado”.

Esse traço da personalidade de Lula não é segredo para quem acompanhou de perto sua trajetória. Sempre foi um conciliador disposto a tudo para evitar o confronto.

Mas prevalece em grande parte da sociedade a imagem de Lula como um feroz líder das massas e perigosa ameaça aos interesses dos poderosos.

O fato de que Lula nunca tenha conseguido se livrar completamente dessa imagem é intrigante. Mas talvez fosse mais fácil entender esse fenômeno se considerássemos o ex-metalúrgico uma espécie de “cavalo” das contradições sociais do País. Cavalo no sentido que as religiões afro-brasileiras utilizam para designar os médiuns que são “possuídos” por entidades espirituais.

No caso de Lula, essas entidades seriam os conflitos e contradições de uma das sociedades mais injustas do planeta. Elas teriam encontrado nele o médium adequado para se manifestarem de forma barulhenta, mas pacífica.

Na verdade, as classes dominantes deveriam agradecer Lula por fazer esse papel. Não fosse por isso, talvez os fantasmas das muitas gerações massacradas por séculos de dominação criminosa já poderiam ter encarnado em outras forças sociais. Forças que estão vivas, atuantes, com muito ódio de classe e sede de justiça.

Leia também: O que está em disputa são os rumos do golpe de 2016

13 de janeiro de 2022

Fascismo se combate

O fascismo é um blefe permanente. Em situações “normais” ninguém o leva a sério. Nas crises todos fingem que não o levam a sério. Se está no poder todos fingem que ele não é fascismo. A marcha sobre Roma [de Mussolini] foi um blefe do ponto de vista militar. Uma única ordem e o Exército teria dizimado os fascistas. Mas quem se arriscaria a dá-la? Seria obedecida? O temor coletivo nos leva a normalizar cada bravata, cada ameaça. Quando nos levantamos indignados, eles recuam. Depois retornam mais audazes.

O trecho acima é de Lincoln Secco, historiador e militante marxista. Faz parte do livro “Fascismo: ontem e hoje”, publicado recentemente pela Fundação Perseu Abramo. Organizado por Julian Rodrigues e Fernando Sarti Ferreira, sua leitura é obrigatória para quem está na obrigatória luta antifascista.

Traz um didático resgate histórico do fascismo na Itália, Alemanha, Japão, Portugal, Espanha e Brasil. Em sua parte mais teórica, destacam-se os textos de Secco, com ajuda de contribuições feitas pelos antifascistas mais combativos do movimento socialista mundial como Gramsci, Togliati, Trotsky e Reich.

Em outro trecho, Lincoln afirma:

Os fascistas agem no senso comum sem jamais alçar a esfera da Filosofia. Por isso não pode haver um debate com um fascista na mesma medida em que pode existir um entre socialistas e liberais. Grandes pensadores podiam aderir ao nazismo, mas não concorreram para transformá-lo em uma filosofia; ao contrário, só conseguiram se revelar pessoas degeneradas e imbecis durante a vigência do regime fascista.

Ou seja, debater o fascismo sem combatê-lo é rebaixar-se ao nível de sua imbecilidade e degeneração. E assegurar sua vitória.

Leia também: Antifascismo cotidiano e anticapitalismo radical

12 de janeiro de 2022

Não olhe para cima: capitalismo suicida

Para encerrar os comentários sobre o filme “Não olhe para cima”, seria bom lembrar o que disse Fredric Jameson em seu livro “Arqueologias do futuro”, de 2009.  Segundo o filósofo  estadunidense, as pessoas conseguem imaginar o fim do mundo, mas jamais o fim do capitalismo. O sucesso dos filmes-catástrofe seria uma confirmação disso.  

A diferença de “Não olhe para cima” para os outros filmes do gênero é que nele a grande maioria se recusa a acreditar na iminência do desastre, apesar de todas as evidências científicas. É também a ideia de que tudo o que diz respeito ao que é real está sob intensa disputa, menos a realidade da tragédia capitalista.

Outro autor a destacar a incapacidade generalizada de imaginar o fim do capitalismo foi Mark Fisher em seu livro “Realismo Capitalista: não há alternativa?”.  O realismo capitalista, diz o filósofo britânico, seria uma espécie de barreira que impede pensar em alternativas ao atual modo de vida.

Ou seja, como demonstra o personagem do filme, Pete Isherwell, não há motivos para pânico. Um planeta prestes a ser destruído pode ser abandonado a qualquer momento a bordo de uma nave espacial. O fato de que somente uma pequena minoria se salvaria é só uma extrapolação das condições imensamente mais vantajosas de que as classes dominantes dispõem para escapar das catástrofes que já ocorrem todos os dias pelo mundo e que, mesmo sendo menos espetaculosas, seguem fazendo vítimas aos milhões entre os mais pobres.

Tudo se resume a saber se permitiremos que o capitalismo morra de morte morrida ou de morte matada. No primeiro caso, trata-se de suicídio.

Leia também: Não olhe para cima: infodemia

11 de janeiro de 2022

Não olhe para cima: infodemia

Em 2003, o jornalista estadunidense David J. Rothkopf criou o termo infodemia, em artigo sobre a epidemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave. Dezessete anos depois, a Organização Mundial da Saúde adotou o conceito para a pandemia do Covid.

Segundo a organização, a infodemia caracteriza-se por um “excesso de informações, algumas precisas e outras não, que torna difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa”.

Desde então, Covid e infodemia passam por momentos de alívio e agravamento, mas não cedem. As cepas do coronavírus se multiplicam tanto quanto as falsidades em relação a elas.

É um pouco disso que trata o filme “Não olhe para cima”, de Adam Mckay. Obter informações apenas não basta. É preciso literalmente fazê-las valer. Ou seja, agregar-lhes valor necessário para que circulem.

Mas o modo como isso vem sendo feito nos últimos anos é pela quantidade de cliques obtidos nas redes virtuais. Quanto mais cliques, mais a informação circula e mais se torna passível de monetização.

A lógica não é muito diferente da velha mídia empresarial. Mas nesta, a informação ainda mantinha um valor de uso residual necessário para a manutenção dos monopólios do setor.

Com os novíssimos gigantes midiáticos surgidos no Vale do Silício e arredores, o valor de troca da informação passou a engolir seu valor de uso ainda mais rapidamente. Paradoxalmente, o filme de Mckay faz parte dessa onda ao atrair para a plataforma que o divulga a audiência necessária para manter essa roda girando. Em falso, mas girando.

Na próxima pílula, porque é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

Leia também: Não olhe para cima: infocalipse

10 de janeiro de 2022

Não olhe para cima: infocalipse

Dois astrônomos descobrem que em poucos meses um cometa destruirá a Terra. Mas seus alertas são ignorados, menosprezados ou ridicularizados por governantes e mídia. No final, o mundo acaba para todos, menos para uma pequena minoria poderosa e rica que foge do planeta num foguete.

Este é o resumo da trama de “Não olhe para cima”, grande lançamento da Netflix na virada de 2020/2021. O enorme sucesso da atração certamente deve-se às semelhanças com a vida real dos últimos tempos, em que desinformação, mentiras deslavadas e guerra de versões chegaram a um ponto inédito na sociedade de massas.

O apocalipse retratado pelo filme teve seu advento facilitado pelo que Aviv Ovadya, membro do Centro de Responsabilidade para Mídias Sociais do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, chamou de “infocalipse”. Um fenômeno que ocorreria:

...à medida que a qualidade das informações num geral diminui, a inteligência de todos os membros da sociedade e de todas as diferentes organizações que a tornam funcional, no geral, diminui, e, se você vai muito fundo nisso, sua sociedade basicamente desmorona.

Certamente, há uns 10 anos, o filme de Adam McKay seria considerado bizarro demais. Hoje, somente seu tom fortemente satírico impede que a produção ganhe ares de documentário.

Alguns críticos condenam o filme por passar longe das causas profundas que levaram ao “desmoronamento social” de que fala Ovadya. Algo que McKay até certo ponto fez em seu filme “A Grande Aposta”, sobre a crise dos subprimes. Mas, talvez, a própria produção seja parte da “infodemia” que acomete o mundo atual. Fenômeno que abordaremos na próxima pílula.

Leia também: A verdadeira aposta é contra o capital