Doses maiores

30 de novembro de 2022

Barreiras naturais e ameaças catastróficas

Para Marx a capacidade de “afastar as barreiras naturais” constitui um traço essencial de nossa espécie. O bicho humano é biologicamente incapaz de voar ou de mergulhar a grande profundidade, por exemplo. Mas tais limitações foram superadas.

Ainda segundo Marx, a constante diminuição dessas restrições naturais é que nos tornariam cada vez mais humanos. Teoricamente, quanto menos necessidade tivermos de trabalhar pela reprodução meramente biológica, mais tempo teríamos para nos dedicar a atividades artísticas e intelectuais, ao lazer, às relações pessoais, a práticas lúdicas, etc.

O problema é que forçar os limites naturais também pode nos levar a situações arriscadas. É o que mostram os inúmeros desastres ecológicos ocorridos na história da humanidade.

Mas as coisas ficaram ameaçadoras mesmo quando a Revolução Industrial levou esse processo a um ritmo, alcance e intensidade inéditos. Desde então, passamos a destruir barreiras naturais pelo planeta todo na insana busca por lucros.

Um exemplo muito próximo foi a pandemia do covid-19. É muito provável que o vírus tenha se espalhado devido à invasão humana de espaços que antes estavam isolados por barreiras naturais.

Outro caso grave é o derretimento das calotas polares causado pelo aquecimento global. Um fenômeno que pode libertar patógenos que estão presos no gelo. Recentemente, cientistas franceses conseguiram “ressuscitar” vírus que estavam congelados há 48 mil anos na Sibéria.

Enquanto isso, a recém-encerrada conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas não conseguiu nem mesmo aprovar um cronograma para a eliminação dos combustíveis fósseis, importante fator de desequilíbrio ecológico.

É assim que o capitalismo vem fazendo as barreiras naturais avançarem perigosamente sobre nós.

Leia também:
A COP-25 e o princípio da sétima geração
A febre amarela e as barragens do capital

29 de novembro de 2022

O tamanho da encrenca

“A verdade muito além do fiscal”, diz o título de artigo de Míriam Leitão, publicado no Globo de 27/11/2022. “O que gera mais incerteza? O golpismo de Bolsonaro ou a falta de definição sobre a âncora fiscal do novo governo?”, pergunta a articulista.

Ela afirma que sempre defendeu “a sustentabilidade da dívida pública e o rigor nos gastos do governo”. Mas, diferente do que vem fazendo o grande capital em relação ao governo eleito, pede paciência porque “o país está em escombros”.

Na mesma página, uma reportagem alerta: “Alckmin diz que novo governo não vai desfazer reformas”. Em evento com empresários no Guarujá, o vice-presidente eleito defendeu a reforma trabalhista e prometeu “quatro anos de ajuste fiscal”.

Eis aí a explicação para a boa vontade de Miriam Leitão em relação ao próximo presidente. Um governo que nem tomou posse, já se encontra cercado e chantageado pelo neoliberalismo. E ainda corre elevado risco de continuar convivendo com as ações terroristas dos bolsonaristas. Práticas às quais a “institucionalidade”, incluídas as forças repressivas, assistem com uma passividade carregada de cumplicidade. 

O governo Lula dificilmente chegará a ser progressista, dadas as limitações impostas por forças que, mais do que o apoiar, o limitam. Mesmo assim, será tratado como esquerdista pelo “mercado” e comunista pela extrema-direita. 

Nesse cenário, caberá aos movimentos sociais e forças de esquerda assumir a defesa de um governo que nem será um aliado tão próximo assim contra ataques que virão de vários lados. Dos fascistas, dos neoliberais e de setores do próprio campo governista. Este é o tamanho da encrenca em que nos encontramos.

Leia também: Ajuda-nos a te ajudar

28 de novembro de 2022

As correntes da dívida pública

Os números são espantosos: a dívida interna federal brasileira somava, em dezembro de 2021, o valor de RS 7.378.330.084.715 (sete trilhões, trezentos e setenta e oito bilhões. trezentos e trinta milhões, oitenta e quatro mil e setecentos e quinze reais). No mesmo ano de 2021, pagamos de juros e amortizações a escandalosa quantia de R$ 1.960.823.058.735 (um trilhão, novecentos e sessenta bilhões, oitocentos e vinte e três mil, setecentos e trinta e cinco reais). Isso corresponde a R$ 5,4 bilhões pagos a cada dia!
 
O trecho acima está no artigo “A dívida pública: falando sério com pessoas comuns”, de Virginia Fontes, publicado no livro “Brasil, 200 anos de (in)dependência e dívida”, recém-lançado pelo Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs).

Os números mostram o tamanho do buraco por onde escoam diariamente recursos que poderiam ser direcionados a políticas públicas, programas sociais, serviços essenciais, investimentos produtivos. Ao contrário disso, essa dinheirama vai para os detentores dos papéis da dívida pública. Em sua imensa maioria, grandes capitalistas com negócios sediados aqui e no exterior. Com essa situação, não há independência ou soberania nacional possível. 

Enquanto isso, manchete da Folha de hoje diz: “Mais pobres se endividam para comer e pagar contas”. Já entre os mais ricos, explica a matéria, “o principal motivo para pegar um empréstimo é empreender”.

O fato é que esse mecanismo perverso trocou a economia baseada nas correntes da escravidão pela economia acorrentada à escravidão das dívidas. No capitalismo atual, as dívidas atravessam toda a sociedade. Mas uma minoria poderosa as transforma em investimento. A grande maioria explorada é massacrada por elas.

25 de novembro de 2022

A falsa oposição entre autoritarismo e totalitarismo

Os liberais até toleram os regimes designados como autoritários, mas condenam fortemente os regimes ditos totalitários, uma categoria que englobaria o fascismo e o comunismo. 

Este debate é abordado por João Bernardo em seu livro “Labirintos do Fascismo”. Segundo ele, trata-se de uma polêmica que teve grande influência de Hannah Arendt. Para esta filósofa alemã, regimes totalitários seriam aqueles que liquidariam e pulverizariam as classes sociais, deixando as elites dirigentes diante de uma massa de “indivíduos atomizados, indefiníveis, instáveis e fúteis”. Ora, diz ele, esta visão das massas atomizadas é partilhada também pelo fascismo, o que torna impossível usá-la como elemento de distinção entre um e outro regime. 

Para Hannah, polícias políticas de regimes como o soviético teriam inventado sistemas de classificação e vigilância, capazes de mostrar as relações, e a ligação entre relações, de toda a população. Pode ser, diz Bernardo, mas é precisamente este também o objetivo da vigilância informatizada. É o que mostra, por exemplo, o sistema de cartões perfurados criado pela IBM para viabilizar a política de extermínio racial do Terceiro Reich.

Afinal, pergunta Bernardo, o que dizer da ampla adoção de computadores interligados em rede que torna possível “mostrar as relações, e a ligação entre relações, de toda a população”? É assim que chegamos à estranha conclusão de que toda sociedade que utiliza a internete é totalitária.

A verdade, conclui o autor, é que a separação entre autoritarismo e totalitarismo serve para situar este último no capítulo das anomalias da história. Apenas um hiato no desenvolvimento capitalista e não uma das várias consequências lógicas do seu processo de evolução.

Leia também: Marx e Engels também fizeram merda

24 de novembro de 2022

O negacionismo e a guerra civil não declarada

É costume definir guerra civil como um confronto entre cidadãos de uma mesma sociedade. Mas o que ocorre se as vítimas do conflito não são consideradas cidadãs?

Por exemplo, na antiguidade grega, quando cidadãos atenienses trocavam espadadas tratava-se de uma guerra civil. Mas essa classificação já não servia se a agressão partia dos cidadãos contra escravos ou estrangeiros.

Muitos séculos depois, essa regra continua valendo. Quando as vítimas são indígenas, negros, homossexuais, mulheres, pobres ninguém chama de guerra civil.

Mas e se universitários, profissionais liberais, pacatos frequentadores de restaurantes, enfim “cidadãos”, são agredidos apenas por usar roupas vermelhas? Aí, sim, é guerra civil.

O raciocínio acima serve para introduzir o que diz o professor de filosofia Pedro Rocha de Oliveira no interessante artigo “As razões do negacionismo: guerra civil e imaginário político moderno”.

Segundo Oliveira, o negacionismo não é uma recusa irracional de verdades estabelecidas. É uma postura ideológica compatível com as enormes contradições da sociedade contemporânea. Ele surge de um sistema social que se pretende justo, mas garante alguns direitos para uma minoria cidadã, enquanto castiga uma grande maioria marginalizada.

Diante de tanta disparidade, recusar fatos jornalísticos, evidências científicas, consensos historiográficos não é tão absurdo. Há muitos anos, Bolsonaro nega os crimes da ditadura. E suas promessas de matar “uns 30 mil” só escandalizavam quem estava distante das mortes violentas presentes no cotidiano da população pobre.

Quando o bolsonarismo toma como alvo aqueles tidos como esclarecidos e progressistas, fica oficializada a guerra civil. O problema é que dificilmente contaremos com grande apoio daqueles que já vinham sendo vítimas de uma guerra civil jamais declarada.

Leia também: A polícia bolsonarista é anterior ao bolsonarismo

23 de novembro de 2022

A revolta da chibata

Em 22 de novembro de 1910, João Cândido Felisberto, membro da Marinha Nacional, liderou uma revolta de 2.300 marinheiros. O movimento assumiu o comando de quatro navios de guerra, apontando seus canhões para o Rio de Janeiro, capital federal na época. A principal exigência era o fim das chibatadas como punição. Por isso, o motim recebeu o nome de Revolta da Chibata. João Cândido ficou conhecido como o Almirante Negro. 

Abaixo, um trecho da carta dos revoltosos endereçada ao então presidente Hermes da Fonseca:

Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira (...). Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os oficiais, os quais, tem sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Excia. faça aos Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilitam, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira...

Caso não fossem atendidos, os marinheiros ameaçavam bombardear a capital. Temeroso, o governo prometeu atender todas as exigências. Mas com exceção do fim das chibatadas, nada mais foi cumprido. Dos 600 revoltosos presos, 18 foram jogados em um cárcere cheio de cal virgem. Somente dois sobreviveram. Um deles era Cândido.

“Vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos”, diz a carta dos marinheiros. Mais de 130 anos depois, nos fazem falta muitas outras revoltas da chibata.

Leia também: A chibata continua a castigar

22 de novembro de 2022

Ajuda-nos a te ajudar

“Temos que incluir o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”, declarou Lula em entrevista à CBN, em agosto de 2021.

Sintético, claro e inteligente como costuma ser, Lula estava se referindo a dois elementos fundamentais para começar a pensar em distribuição de renda em um país tão injusto como o nosso.

Primeiro, criar ou ampliar o lugar dos programas e direitos sociais nos orçamentos públicos. Segundo, cobrar menos impostos sobre o consumo e priorizar taxação pesada sobre grandes patrimônios e fortunas. 

Mais do que isso, é preciso cobrar impostos sobre lucros e dividendos. Desde 1995, o Brasil é um dos únicos países do mundo a isentar de tributação esse tipo de ganhos, beneficiando uma minoria de magnatas.

Durante a campanha eleitoral, Lula também reafirmou que despesas com saúde e educação não são gastos, mas investimentos. Era um recado para os defensores do teto de gastos aprovado durante o governo golpista de Michel Temer. 

Essa medida provavelmente coloca o Brasil como o único país do mundo a constitucionalizar uma política fiscal. Um absurdo criado apenas para garantir o enorme fluxo de recursos públicos para o pagamento da dívida pública, cujos títulos estão em poder do grande capital nacional e estrangeiro. 

Mas para além de esperar que Lula consiga fazer valer suas próprias palavras, seria importante avançar algumas propostas. Que tal tirar da Constituição o teto de gastos e colocar nela o Bolsa-Família, por exemplo? 

Nós, aqui do lado de fora, temos a obrigação de ajudar. Mas, como fazem os melhores cristãos, também somos obrigados a dizer: ajuda-nos a te ajudar, Lula.

Leia também: Preparando a cama para Lula

21 de novembro de 2022

Preparando a cama para Lula

Nas últimas semanas, a grande imprensa vem dando voz a uma entidade chamada “mercado”, que estaria muito nervoso. Na verdade, trata-se do grande capital, que exige de Lula um compromisso selado com sangue de irrestrita fidelidade à responsabilidade fiscal. 

Responsabilidade fiscal nada mais é que o desvio de enormes montantes de recursos públicos para o pagamento dos juros da dívida interna. Os beneficiários desse pagamento são capitalistas, detentores de títulos da dívida pública. E não se trata apenas de banqueiros, mas dos grandes empresários em geral, tanto nativos como estrangeiros.

Enquanto isso, a enorme maioria pobre da população vê seus direitos desrespeitados ou eliminados e programas sociais fundamentais para garantir o mínimo de dignidade para milhões de pessoas amargam a mais extrema penúria. Tantas perdas humanas apenas para honrar uma dívida que já foi paga várias vezes, sem que jamais tenha diminuído.

Na mitologia grega, um sujeito chamado Procusto costumava deitar suas vítimas numa cama. Se o coitado fosse maior que o leito, decepava-se o que ficava sobrando. 

É nesse leito cruento que o grande capital está querendo meter o governo Lula. Com a diferença de que mesmo que o encaixe entre a cama fiscal e o orçamento público fique do tamanho exigido pelo poder econômico, continua sendo grande o risco de graves mutilações. 

Afinal, não nos esqueçamos que Dilma aceitou as imposições desse mesmo Procusto fiscal, em 2015. Na época, ela delegou ao neoliberal Joaquim Levy a tarefa de conferir as medidas do catre a ser ocupado. O resultado todos testemunhamos. Foi um verdadeiro esquartejamento transmitido ao vivo, em cores e aos berros.

Leia também: A cama de Dilma

18 de novembro de 2022

Sou o Deus que transtorna, diz o Capital

Os tempos anunciados chegaram: como os monstros vorazes dos mares e as feras raivosas dos bosques, os homens se devoram selvagemente.

“Trabalhe, e a escassez fugirá de você; trabalhe e seus celeiros ficarão cheios de provisões”, diz a sabedoria antiga.

Eu digo: “Trabalho, constrangimento e miséria serão seus companheiros fiéis; trabalhe e você esvaziará sua casa no Monte da Piedade.”

Eu sou o Deus que transtorna os impérios: sob meu jugo igualitário submeto os orgulhosos; reduzo a individualidade humana à insolência e ao egoísmo; torno a humanidade estúpida para a igualdade. Conduzo trabalhadores e capitalistas ao desenvolvimento comunista da sociedade futura.

Os homens expulsaram do céu Brahma, Júpiter, Jeová, Jesus, Alá... Eu me suicido.

Quando o comunismo for a lei da sociedade, terminará o reinado do Capital, o Deus que encarna as gerações do passado e do presente. O Capital não dominará mais o mundo: obedecerá ao trabalhador, a quem odeia. O homem não mais se ajoelhará diante do trabalho de suas mãos e de seu cérebro; ele se levantará e, de pé, olhará para a natureza, como um mestre.

Os trechos acima encerram as pílulas sobre o livro “A Religião do Capital”, de Paul Lafargue.

A título de breves comentários, importante destacar o caráter suicida que o autor parece atribuir ao Capital. Uma ideia que não encontra fundamento nos escritos de Marx, autor que inspira a obra de Lafargue.

Quanto a considerar o animal humano como ser destinado ao papel de “mestre da natureza”, apresenta-se em descompasso com o debate ecológico atual, que denuncia o caráter ambientalmente destrutivo que tal concepção pressupõe.

No mais, amém!

Leia também: Eu sou o Deus da tormenta e do sofrimento

17 de novembro de 2022

Lula e STF facilitando para o bolsonarismo

“Discurso de Lula na COP27 resgata papel do Brasil”, diz o título do editorial do Globo de hoje sobre o pronunciamento do presidente eleito na conferência do clima das Nações Unidas.

Mas, segundo o jornalão, Lula “errou feio” ao aceitar carona no avião de José Seripieri Junior, dono da Qualicorp, um dos maiores grupos de saúde privada do País.

Depois de saudar o pronunciamento de Lula, o editorial termina, esperando que “doravante” ele saiba “separar o espaço público de interesses privados”.

Por falar em mistura de interesses públicos e privados o jurista Conrado Hübner Mendes, tratou do tema em sua coluna publicada também hoje, na Folha. Mendes destacou a presença de seis ministros do STF na "Lide Brazil Conference", em Nova York.

O evento foi organizado pela "Lide - Grupo de Líderes Empresariais", empresa de João Doria, que segundo o articulista, dedica-se a "fazer pontes" entre o mundo corporativo e o mundo público. “Não precisa chamar de lobby se tiver apego ao eufemismo”, adverte ele.

Realmente, não há o que justifique seis dos togados mais poderosos do país juntos e misturados com quem manda em grande parte da economia nacional. Apesar disso, não houve editoriais condenatórios nem toda a comoção que se verificou no caso de Lula.

Além disso, comparando os dois casos, note-se que, diferente de magistrados pretensamente neutros, Lula nunca escondeu suas amizades com empresários desde que era metalúrgico.

Mas, de um jeito ou outro, é preciso levar a sério a advertência do colunista da Folha: “há várias formas de Bolsonaro sair vitorioso após a derrota eleitoral”. Toda essa promiscuidade é uma delas.

Leia também: Lula sob ameaça de prisão

16 de novembro de 2022

O partido das Panteras Negras

Uma busca na internete por imagens com as palavras “Partido Pantera Negra” mostrará homens pretos, usando jaquetas de couro e boina, em posição militar e portando armas. Mas essas imagens estão longe de mostrar toda a verdade. 

Acaba de ser lançado nos Estados Unidos o livro “Comrade Sisters - Women of the Black Panther Party”, que pode ser traduzido como “Camaradas Irmãs - Mulheres do Partido Panteras Negras”. A edição conta com um prefácio da grande ativista e teórica antirracista e anticapitalista Ângela Davis. Melhor apresentação, impossível.

A obra mostra como seis em cada dez integrantes daquela importante organização política eram mulheres. Muitas delas eram responsáveis pela elaboração dos jornais e boletins do partido. Também estavam nas manifestações e lutas contra o racismo e o capitalismo. Mas sua presença era ainda mais majoritária na luta por melhores condições de saúde, educação, alimentação e, principalmente, justiça social para o povo preto e pobre. Apesar da enorme importância simbólica e política das armas em punho, era essa atividade comunitária que garantia ao partido o indispensável apoio social diante de um aparelho repressivo disposto a tudo para esmagá-lo.

O livro traz fotos de Stephen Shames, feitas quando ele tinha 20 anos de idade e estudava em Berkeley, nos anos 1970. A parte escrita é de Ericka Huggins, uma das primeiras integrantes do Partido, ao lado de Bobby Seale e Huey Newton. Encarcerada por 15 anos, Ericka jamais abandonou a luta e ainda tornou-se mestra em Sociologia pela Universidade do Estado da Califórnia.

A luta antirracista, ou melhor, a luta antifascista deve muito a essas mulheres. 

Leia também: Panteras Negras: armados contra o racismo policial

11 de novembro de 2022

Lula sob ameaça de prisão

Uma pílula publicada em agosto passado já alertava que Lula, vitorioso nas eleições, seria nosso homem infiltrado na direita, “sozinho e muito mal acompanhado”.

Hoje, os jornais parecem confirmar essa ideia. Bastou o presidente eleito criticar a “responsabilidade fiscal que sacrifica o combate à fome e enche o bolso dos banqueiros” para o dólar disparar e a Bolsa despencar.

Também são recorrentes as cobranças pela nomeação imediata do sacrossanto Ministro da Fazenda, mesmo que gente como os pais do Plano Real e um neoliberal certificado e homologado como Henrique Meirelles estejam na equipe de transição. 

Falando em equipe de transição, há ótimos nomes em sua composição, como Silvio de Almeida, Sônia Guajajara, Guilherme Boulos, Anielle Franco. Mas resta saber quais deles realmente comporão o governo. Podem estar apenas aplainando o terreno para os tratores da direita passarem. 

Uma coisa é estabelecer um programa de diretrizes para os futuros ministérios. Outra é quem realmente será o titular das pastas. Não adianta, por exemplo, prever fortes medidas ambientais se a área correspondente ficar com representantes do agronegócio, como Simone Tebet ou Kátia Abreu.

Mas tudo isso já estava na conta desde que se impôs a necessidade de impedir a reeleição de Bolsonaro. Por mais que lamentemos, Lula já está com o cheque assinado em favor da austeridade fiscal.

O que não pode entrar nessa conta é impunidade para a indisciplina do aparato repressivo, os oficiais golpistas na máquina pública e a ação miliciana dentro e fora dos quartéis. Ou Lula dá um basta nisso tudo ou vai retornar à prisão. Desta vez, a do Alvorada.

Leia também: Lula: nosso homem infiltrado na direita

10 de novembro de 2022

Marx e Engels também fizeram merda

As últimas duas pílulas abordaram um grave equívoco teórico cometido por Marx e Engels. Trata-se da ideia de que nações e povos inteiros podem ser classificados como reacionários ou revolucionários. 

Em seu livro “Labirintos do Fascismo”, João Bernardo argumenta que esse erro teria aberto uma brecha política que foi aproveitada por forças de direita para iniciar um processo que viria a desembocar no fascismo. 

Afinal, se há povos reacionários, como eslavos e turcos, seria justo que fossem atropelados pela vanguarda revolucionária da civilização. Que alguém tirasse conclusões racistas disso não deveria surpreender.

Mas em defesa de Marx e Engels, é importante considerar que as evidências documentais utilizadas por Bernardo saíram principalmente de suas correspondências. Em suas obras de maior fôlego, aqueles raciocínios estapafúrdios praticamente não aparecem.

Além disso, já no fim da vida, Marx começou a manter contato frequente com os revolucionários russos, fazendo questão de aprender seu idioma. Mais do que isso, ele chegou a admitir um caminho russo para o socialismo, ainda que achasse que isso dependeria da vitória da revolução no Ocidente. O desprezo que a dupla nutria pelos povos eslavos parecia ter ficado no passado. 

De qualquer maneira, Marx e Engels tiveram sorte de não viverem para ver o surgimento do fascismo entre os trabalhadores ser facilitado por algumas de suas teses infelizes. Assim como foi pena não terem visto os eslavos abrirem uma ruptura histórica sem precedentes em 1917. E tampouco tiveram o desgosto de testemunhar sua Alemanha, que consideravam um berço de revolucionários, enviando tropas para esmagar a vitoriosa revolução socialista russa. 

Pois é, até grandes revolucionários podem fazer merda.

Leia também: Do socialismo nacional ao nacional-socialismo 

9 de novembro de 2022

Do socialismo nacional ao nacional-socialismo

Entre 1908 e 1910 o político e pensador nacionalista Enrico Corradini começou a apresentar a Itália como uma “nação proletária”. Tratava-se de transformar a luta de classes numa luta entre nações. 

“Há nações que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras, tal como há classes que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras classes”, escreveu Corradini em outubro de 1910.

Nos anos que precederam a Primeira Guerra, Corradini esforçou-se por consolidar uma aliança entre nacionalistas radicais e sindicalistas revolucionários, que transportasse a luta da classe trabalhadora do interior da Itália para o exterior, convertendo uma nação proletária numa nação imperial.

O génio de Corradini consistiu em renovar a direita politicamente, usando para isto o proletariado. Residiu aqui a substância mesma do fascismo. Era o socialismo, mas um socialismo encerrado na nação logo transformou-se no nacional-socialismo. Assim começou a maior tragédia do século passado. Se Mussolini levou o fascismo para as massas, Corradini forneceu a formulação teórica que nortearia a fundação do Partido Nacional Fascista, em 1923. Mussolini não inovou nada; realizou.

O relato acima é do livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo. Segundo ele, uma das raízes dessa enorme confusão teórica está na própria obra de Marx e Engels. Afinal, diz o autor, foram eles que cometeram o terrível erro de separar nações e povos entre reacionários e revolucionários em muitos de seus escritos. Equívoco que seria mantido pela 2ª Internacional, quando sua ala alemã considerou a entrada de seu país na Primeira Guerra como uma intervenção modernizadora contra o atraso das colônias. Outro enorme disparate. 

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também:  Um grande equívoco de Marx e Engels

8 de novembro de 2022

Um grande equívoco de Marx e Engels

Em uma carta endereçada a Wilhelm Liebknecht, em fevereiro de 1878, Marx afirmou que só conseguia ver por detrás das lutas de independência nacional dos sérvios a sinistra mão do Império Russo. 

Em 1839, Engels escreveu que a “próxima guerra mundial não só fará desaparecer do globo terrestre as classes e as dinastias reacionárias, mas igualmente povos reacionários inteiros. E também isto será um progresso”.

Nas palavras de Engels, em uma correspondência de 1849, “o ódio à Rússia foi e continua a ser a primeira paixão revolucionária dos alemães”.  

As informações acima são do livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo. Estão no capítulo em que o marxista português condena Marx e Engels por cometer um de seus equívocos teóricos mais lamentáveis. 

Segundo o autor, em muitas de suas análises geopolíticas, os pais do marxismo teriam “convertido cada um dos campos das lutas nacionais em representante de uma ou outra classe social”. O alvo favorito dos ataques da dupla eram os eslavos, considerados povos “sem história”.

Tratar alguns povos como inerentemente reacionários, enquanto outros seriam vocacionados para a revolução é um equívoco sério demais para ser ignorado. E não só porque foram exatamente os eslavos que, no século seguinte, protagonizariam a primeira revolução socialista, em plena Rússia. 

Como diz Bernardo, tal posicionamento também “teria aberto a brecha teórica e prática onde mais tarde o fascismo haveria de se instalar”. Para dar um exemplo concreto, essas concepções teriam sido fundamentais para fazer Mussolini de um revolucionário socialista um ditador fascista. 

Muito grave, não? Voltaremos a isso na próxima pílula.

Leia também: A histórica tolerância dos “democratas” com o fascismo

7 de novembro de 2022

É hora do exorcismo

“Ninguém sofreu tantas injustiças e foi tão ‘satanizado’ como o próprio Satã”. Estas palavras são de Leonardo Boff, no artigo “Dessatanizar a Satã ou o Diabo”

No texto, Boff lembra que Satã era um dos anjos de Deus. O problema é que na Bíblia recebeu a tarefa “inusitada e ingrata” de colocar à prova a fé do pobre e bondoso Jó, num dos momentos mais cruéis do Antigo Testamento.

Depois, veio a influência de Zoroastro, durante o exílio dos judeus na Babilônia, cuja cosmologia dividia o mundo entre o bem e o mal. Em seguida, veio a criação do inferno por teólogos da Idade Média. Daí foi um passo para que o inferno e suas criaturas servissem aos interesses colonialistas.

Os sacerdotes cristãos ameaçavam os povos originários com o inferno, caso não negassem suas crenças. Além de acusarem suas entidades espirituais de serem criaturas malignas. Prática, aliás, que não mudou muito. Ao contrário, tivemos provas muito recentes de que só vem se fortalecendo.

Como diz Boff: 

...o inferno e os demônios e o principal deles, Satã, são projeções nossas da maldade que existe na história ou que nós mesmos produzimos e das quais não queremos nos responsabilizar e as projetamos nestas figuras sinistras.

Ele também afirma que é apelando a Satã “que hoje, em tempos de ira e ódio social, procura-se desqualificar o adversário, não raro, feito inimigo a ser desmoralizado e, eventualmente, liquidado”. 

O autor está certo. Mas, cá entre nós, após quatro anos de um governo genocida, só dessatanizar parece muito pouco. Um bom e velho exorcismo é altamente recomendável. Sai, capeta!

Leia também:
O anticomunismo neopentecostal escolhe as coisas loucas
Machado, o Diabo e sua igreja

4 de novembro de 2022

Eu sou o Deus da tormenta e do sofrimento

“Eu sou o rei do mundo”, diz o livro “A Religião do Capital”, de Paul Lafargue, no capítulo em que o Capital se apresenta conforme segue abaixo.

Ando escoltado por mentiras, inveja, ganância, chicana e assassinato. Trago divisão na família e guerra na cidade. Semeio, onde quer que eu vá, ódio, desespero, miséria e doença.

O trabalhador não pode fugir de mim: se fugir de mim, ele atravessa as montanhas, encontra-me além das montanhas; se cruzar os mares, eu o espero na praia onde ele desembarca. O trabalhador é meu prisioneiro, a terra é sua prisão.

Encho os capitalistas com um bem-estar pesado, estúpido e rico em doenças. Eu emasculo física e intelectualmente meus escolhidos: sua raça está morrendo na imbecilidade e na impotência.

Encho os capitalistas com tudo o que é desejável e os castro com todo desejo. Encho suas mesas com pratos apetitosos e suprimo o apetite. Encho suas camas com moças e entorpeço seus sentidos. Todo o universo é sem graça, tedioso e cansativo para eles: eles bocejam suas vidas; eles invocam o nada e a ideia da morte os transita com medo.

Quando é do meu agrado e sem a razão capaz de ser sondada pelos homens, golpeio meus eleitos, precipito-os na miséria, no inferno dos assalariados.

Os capitalistas são meus instrumentos. Eu os uso como um chicote com mil tiras para açoitar seu estúpido rebanho. Elevo meus trabalhadores eleitos para a vanguarda da sociedade e os desprezo.

Eu sou o Deus implacável. Deleito-me no meio da discórdia e do sofrimento. 

Sou o Deus que conduz os homens e confunde sua razão.

Leia também: A teologia do Capital. Resistente, coerente, diabólica

3 de novembro de 2022

Fazendo o L de Lênin

Não. Não se trata de defender a revolução socialista após a vitória de Lula sobre a extrema-direita. Nem de criar um partido revolucionário, fortemente centralizado e hierarquizado, guia absoluto das massas proletárias. 

Em geral, muito do que se costuma chamar de leninismo despreza grande parte da obra teórica e prática do grande revolucionário russo. 

Lênin sempre procurou ser um seguidor fiel de Marx. Assim, em junho de 1920, por exemplo, ainda em plena guerra em defesa da Revolução Russa, Lênin escreveu num artigo: “aquilo que constitui a própria essência, a alma viva, do marxismo é a análise concreta da situação concreta”.

Somente a análise concreta da realidade pode fornecer pistas sobre o que fazer para alcançar objetivos revolucionários. Ou seja, aquilo que muitos identificam como sendo a fórmula leninista para todas as revoluções resume-se à escolha de determinados caminhos feita por ele e seus camaradas nas condições da Rússia do início do século passado.

Lênin aprendeu com Marx que a realidade é o resultado de múltiplas determinações. Portanto, nossa análise da realidade deve levar em consideração o máximo de determinações que a constitui para nos aproximarmos de sua concretude. 

São, certamente, muitas as determinações que levaram à terrível situação que estamos vivendo. A herança escravocrata, um aparato de dominação extremamente brutal, enorme injustiça social, forte conservadorismo social, superexploração econômica, uma institucionalidade totalmente corrompida. Estas são apenas algumas delas.

Dialeticamente, porém, esses anos de terrível sofrimento com a extrema-direita no poder revelaram muitas dessas determinações da forma mais crua. É preciso agarrar essa dialética pelos cabelos. Fazer o L de Lula, de Lênin, mas principalmente da luta.

Leia também: Uma vitória de Pirro? Uma vitória da porra!

1 de novembro de 2022

Os rinocerontes e os cisnes de Xi Jinping

No 20° Congresso do Partido Comunista Chinês, encerrado há poucos dias, Xi Jinping foi reeleito secretário-geral do partido e presidente da China e da Comissão Militar Central. É a maior concentração de poder desde Mao Tsé-Tung. 

Em janeiro de 2018, Xi fez um discurso em um seminário para os membros do Comitê Central do PCCh. Por seu caráter elucidativo, a publicação Vozes Chinesas divulgou um resumo do pronunciamento.

No discurso, Xi reafirma o socialismo chinês como parte do processo iniciado há mais de 170 anos, com Marx e Engels, e continuado por Lenin.

Mas a parte mais curiosa do pronunciamento é aquela em que Xi adverte “que a China entrou em um período de desenvolvimento em que oportunidades estratégicas, riscos e desafios são concomitantes e as incertezas e fatores imprevistos estão aumentando”. 

Assim, continua ele, vários eventos de "cisne preto" e "rinoceronte cinza" podem ocorrer a qualquer momento. Portanto, “devemos estar mais atentos aos perigos potenciais, estar preparados para lidar com os piores cenários e estar prontos para resistir a ventos fortes, águas agitadas e até mesmo tempestades perigosas”. 

A metáfora do rinoceronte cinza foi criada pela especialista em riscos Michele Wucker para descrever perigos altamente óbvios e prováveis, mas ainda assim negligenciados. Já cisnes negros simbolizariam riscos imprevisíveis ou altamente improváveis.

Difícil saber o que quis dizer o poderoso líder chinês. Mas ao se colocar a tarefa de construir o socialismo à frente de uma nação que vem se tornando importante pilar da globalização capitalista, Xi vai precisar encarar manadas de rinocerontes cinzas ferozes e bandos de cisnes negros desorientados.

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