Segundo Kishore Mahbubani, em seu livro “A China venceu?”, na Guerra Fria, os
Estados Unidos eram frequentemente flexíveis e racionais na tomada de decisões,
enquanto a União Soviética era rígida e doutrinária.
Hoje, na nova “guerra fria” entre China e Estados Unidos acontece o contrário,
diz ele. Os Estados Unidos se comportam como a União Soviética, e a China age
como os Estados Unidos.
Por exemplo, observa o autor, é irracional que os Estados Unidos aumentem seus
gastos militares, pois já possuem armas suficientes para destruir a China
várias vezes. Portanto, o lógico seria que os estadunidenses reduzissem seus
gastos militares e redirecionassem recursos para áreas críticas, como pesquisa
e desenvolvimento tecnológico.
Os Estados Unidos têm 6.450 armas nucleares dos Estados Unidos. A China tem 280. Mas, se 280 é suficiente para impedir a América (ou a Rússia) de lançar um ataque nuclear à China, por que pagar mais?
O problema é que os gastos com defesa estadunidenses não são decididos segundo
uma estratégia racional, mas são produto de um complexo e poderoso lobby da
indústria armamentista e de equipamentos pesados.
Enquanto isso, diz Mahbubani, os chineses não estão aprisionados por nenhum
lobby desse tipo. Estão mais preparados para tomar decisões coerentes de longo
prazo para manter a China segura.
Para completar a ironia da situação, o autor lembra que, perto de sua
derrocada, a União Soviética envolveu-se em uma invasão desastrosa do
Afeganistão. Hoje, adivinhem quem está gastando trilhões de dólares em uma
ocupação militar daquele mesmo país?
Amanhã, voltaremos a essa interessante comparação feita por Mahbubani entre
União Soviética, Estados Unidos e China.
Leia também: Estados
Unidos x China: guerra fria de sinais trocados
“A China venceu?” é uma possível versão para o título do livro de Kishore
Mahbubani, lançado este ano e ainda sem tradução do inglês.
Nascido em Singapura e diplomata por 30 anos atuando na região asiática,
Mahbubani adota em seu livro um ponto de vista liberal. Este enfoque deixa de
capturar as enormes contradições que envolvem o gigante asiático em um sistema
econômico global em constante crise e dando sérios sinais de esgotamento
histórico.
Ainda assim, as informações que a obra traz e a abordagem que adota dão pistas
importantes sobre as características da China, sua sociedade e sistema de
dominação. Por isso, as próximas pílulas trarão comentários sobre o livro, na
tentativa de ajudar a esclarecer o que poderíamos chamar de enigma chinês.
Por enquanto, fiquemos com duas teses provocativas do autor. Na primeira,
Mahbubani afirma que do século 1 ao 19, China e Índia dominaram a economia
mundial. Os 200 anos posteriores de predomínio anglo-saxônico, portanto, seriam
apenas uma curta interrupção dessa hegemonia asiática que começa a impor-se
novamente.
A segunda: na Guerra Fria que opunha Estados Unidos e União Soviética, esta
última se caracterizaria por sua rigidez econômica e política, enquanto os
estadunidenses contavam com uma flexibilidade maior, proporcionada pela melhor
adequação de sua economia de mercado às necessidades de uma acumulação
capitalista cada vez mais globalizada.
Na atual “guerra fria”, seriam os Estados Unidos que encontram sérias
dificuldades para se adequar aos novos desafios da economia mundial, enquanto o
gigante asiático, autointitulado comunista, se movimenta com grande
desenvoltura pelo cenário internacional.
Ou seja, vale a pena aguardar os próximos capítulos.
Leia também: Indústria
americana, capital chinês, exploração global
“Hoje, dispomos de mais dados sobre os aglomerados humanos do que sobre a
maioria dos fenômenos físicos que temos o hábito de estudar”, afirma Giuliano
Da Empoli, em seu livro "Os Engenheiros do Caos".
Comparado a um gás, diz ele, o Facebook tem quase o mesmo volume de elementos. Ou
seja, usuários. Neste caso, os métodos da Física levariam vantagem, já que trabalham
com uma quantidade infinita de dados.
Na campanha favorável ao Brexit, por exemplo, o trabalho de físicos aplicado à
comunicação permitiu que cada categoria de eleitores recebesse uma mensagem sob
medida:
...para os animalistas, uma mensagem
sobre as regulamentações europeias que ameaçam os direitos dos animais; para os
caçadores, uma mensagem sobre as regulamentações europeias que, ao contrário,
protegem os animais; para os libertaristas, uma mensagem sobre o peso da
burocracia de Bruxelas; e para os estatistas, uma mensagem sobre os recursos
desviados do estado de bem-estar para a União. Graças a todas as versões
possíveis dessas mensagens, os físicos de dados puderam identificar as mais
eficazes, da formulação do texto ao aspecto gráfico. Puderam também otimizar
continuamente, em função dos cliques registrados em tempo real.
O grande problema é que não nos interessa essa dinâmica da fragmentação
alienante. Não podemos entregar mensagens sob encomenda para cada segmento
dos explorados e oprimidos, sem apontar para a totalidade do sistema que nos
divide para nos oprimir e explorar.
Dominar algoritmos é muito importante, claro. Mas de nada vale sem o retorno ao
trabalho de base e o abandono das prioridades meramente eleitorais. Ainda é a velha
luta de classes. Mas de baixo para cima.
Leia também: Eleições
e física quântica
Em seu livro "Os Engenheiros do Caos", Giuliano Da Empoli destaca o papel
dos físicos como profissionais capazes de influenciar os resultados das atuais disputas
eleitorais.
Para justificar, ele cita o físico Antonio Ereditato, diretor do “Centro de
física fundamental Albert Einstein”, em Berna, Suíça:
Na física, o comportamento de cada
molécula não é previsível, uma vez que cada uma delas é submetida a interações
com uma infinidade de outras moléculas. O comportamento de um aglomerado, por
outro lado, é previsível, pois através da observação do sistema é possível
deduzir o comportamento médio. (...) não poderemos jamais gerenciar um bilhão
de pessoas como um bilhão de moléculas, mas há analogias com base nas quais
alguns princípios podem ser aplicados, mesmo se forem sistemas caóticos.
Para um físico, explica Da Empoli, sistema caótico é aquele “no qual uma
pequena variação das condições iniciais pode produzir efeitos enormes em sua
evolução”. Assim, exemplifica ele, uma “fake news pode ser a pequena
modificação inicial que produz imensos efeitos secundários”.
E não se trata apenas da física que vai de Newton a Einstein, mas também da
física quântica, teorizada por Max Planck. Neste domínio, a relação entre causa
e efeito deixa de ser determinista, pois as variáveis passam a ser aleatórias
no nível mais profundo.
Bom, não é preciso ser um especialista para saber que um modelo como o
fornecido pela física quântica pode ser muito útil para interferir na dinâmica do
comportamento das massas populacionais contemporâneas. Sempre muito próximo do caos.
Na próxima pílula, mais sobre as relações entre física e política.
Leia também: Na
campanha eleitoral, esqueça os marqueteiros. Chame os físicos
Mais um interessante relato do livro "Os Engenheiros do Caos", de
Giuliano Da Empoli.
Em 2016, os britânicos foram às urnas para votar em um plebiscito sobre a saída
ou não do Reino Unido da União Europeia. O famoso “Brexit”.
O principal estrategista da campanha em favor do Brexit era Dominic Cummings. Certa
vez, ele escreveu em seu blog: “Se você quer fazer progresso em política, meu
conselho é contratar físicos, e não especialistas ou comunicadores.”
Cummings organizou sua campanha com a ajuda de uma equipe de cientistas
originários das melhores universidades da Califórnia e de uma empresa canadense
de Big Data ligada à Cambridge Analytica. A eles pediu apenas o seguinte: digam
para onde devo enviar meus voluntários, em que portas devo bater, a quem devo
mandar e-mails e mensagens nas redes sociais e com quais conteúdos.
Muitos cientistas sonham reduzir o governo da sociedade a equações matemáticas
que suprimissem as margens de irracionalidade e de incerteza inerentes ao
comportamento humano.
Nos últimos anos, essa aspiração tem se tornado muito próxima de se
concretizar. É o que mostrou o referendo sobre o Brexit. Ainda que por pequena
margem, o resultado foi favorável à saída dos britânicos da União Europeia.
As redes virtuais se generalizaram e os comportamentos humanos começaram a
produzir um fluxo de dados que podem ser mensuráveis. “Cada um de nós se
desloca voluntariamente com sua própria ‘gaiola de bolso’, um instrumento que
nos torna rastreáveis e mobilizáveis a todo momento”, diz Da Empoli.
O que exatamente os físicos têm a ver com tudo isso, é o que abordaremos na
próxima pílula.
Leia também: Um pioneiro do caos político
Arthur Finkelstein militava, desde muito jovem, no Partido Republicano. No
final dos anos 70, teve um papel decisivo na projeção no cenário nacional
estadunidense do então governador da Califórnia, Ronald Reagan.
Já nessa época, seu método era o “microtargeting”. Ou seja, análises demográficas
sofisticadas e sondagens de boca de urna entre os participantes de eleições.
Levantamentos que vão permitir identificar os diversos grupos para os quais
devem ser enviadas mensagens segmentadas.
O Facebook ainda está longe, mas Finkelstein já utiliza maciçamente cartas e
telemarketing para mapear os partidários em potencial de seus clientes. Mas seu
verdadeiro talento consiste, desde o começo, não tanto em promover seu
candidato, mas em destruir seus adversários. Segundo ele, "uma forma de
arte".
Em 1996, Finkelstein desembarca em Israel. Com uma campanha violentíssima,
totalmente inédita em Israel, pinta o pacifista Shimon Peres como um traidor da
pátria. No lado oposto, o slogan criado para o candidato conservador é simples
e eficaz: “Benjamin Netanyahu é bom para os judeus”.
Netanyahu conquista a maioria graças a um punhado de votos de diferença e é
eleito primeiro-ministro. Desde então, continuou a fortalecer sua hegemonia
política utilizando a simples linha divisória estabelecida por Finkelstein: nós
contra eles, eles contra nós, o povo de um lado, seus inimigos do outro.
Este é mais um relato do livro "Os engenheiros do caos", recentemente
publicado por Giuliano Da Empoli. Mostra como a manipulação das comunicações
para fins políticos é muito menos recente do que parece.
Mais do que causa, as novas ferramentas virtuais são consequência de um sistema
que sempre colocou a política a serviço da classe dominante.
Leia também: Um
país governado por um blog
Giuliano Da Empoli inicia seu livro “Os Engenheiros do Caos” sustentando que, no
decorrer de todo o século 20, a Itália foi “o laboratório onde foram conduzidas
experiências políticas vertiginosas”. Do fascismo ao maior partido comunista do
Ocidente.
Portanto, afirma ele, não deveria surpreender que, no início do século 21,
surgisse na Itália o “Vale do Silício do populismo”, referindo-se à utilização
das redes digitais por forças políticas em disputas eleitorais.
O primeiro relato do livro envolvendo esse tipo de atuação é sobre o Movimento
5 Estrelas (M5S). O grande atrativo dessa organização seria uma proposta de democracia
direta, em que seus participantes tomam todas as decisões por um processo de
consulta on-line permanente.
Mas, na verdade, diz o autor, o M5S funciona como o “PageRank” do
Google. Ele não tem visão, programa, qualquer conteúdo ou agenda positivos. É
um simples algoritmo construído para aferir o consenso sobre certos assuntos e
tópicos.
Segundo esse método de funcionamento, para onde quer que a opinião pública se
inclinasse, o M5S mudaria de posição. Esse “partido-algoritmo” teria por único
objetivo satisfazer de modo rápido e eficaz a demanda de consumidores
políticos.
Numa entrevista ao Corriere della Sera, o chefão do M5S, Davide Casaleggio, definiu
desse modo a organização que comanda: “A velha partidocracia é a Blockbuster,
nós somos a Netflix".
O problema é que, prisioneiro da mesma lógica que rege os negócios da locadora de vídeos ou do serviço de
streaming, o M5S jamais irá além dos limites impostos pelo sistema de
dominação. Não à toa, surgiu como movimento de esquerda e se inclina cada vez
mais à direita.
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