Blog de Sérgio Domingues, com comentários curtos sobre assuntos diversos, procurando sempre ajudar no combate à exploração e opressão.
31 de março de 2023
A luta antirracista nos EUA: da não violência à autodefesa
Em fevereiro de 1960, quatro estudantes negros da Escola Técnica Agrícola da Carolina do Norte sentaram-se na seção reservada “somente para brancos” de uma lanchonete e pediram um pouco de café. Eles não foram atendidos, mas se recusaram a sair até que a loja fechasse.
Em abril do mesmo ano, essa tática havia se espalhado para 78 comunidades sulistas, com cerca de 2 mil estudantes presos. Em agosto de 1961, mais de 70 mil negros e brancos participaram de protestos desse tipo. Três mil foram presos.
No mesmo mês, foi fundado o Comitê Coordenador Estudantil Não Violento (SNCC, na sigla em inglês). A organização rapidamente tornou-se a ala esquerda do movimento dos direitos civis e daria origem ao movimento Black Power.
Em junho de 1964, três defensores dos direitos civis foram assassinados pela Ku Klux Klan, no Mississipi. Dois deles eram brancos. Tornou-se evidente para o SNCC que a não violência precisava dar lugar à autodefesa.
Em 1965, a organização passou a denunciar a Guerra do Vietnã, argumentando que os negros não deveriam lutar em outro país até que eles mesmos fossem livres em sua terra natal.
A liderança moderada de Luther King passou a ser desafiada pela militância radicalizada dos defensores do “Black Power”. O clima mudou definitivamente da política da reforma para a da militância revolucionária. As ideias de Malcolm X começaram a exercer considerável influência dentro do movimento.
É o que veremos em uma próxima pílula.
Leia também: O castigo de Hitler e a morte de Emmett Till
30 de março de 2023
Parar a inteligência do Capital
Deu nos jornais. Um manifesto assinado por mil especialistas pede “uma pausa” no desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial. O maior temor é que a humanidade perca o controle sobre o processo.
Vem a calhar uma recente entrevista com Edemilson Paraná, professor de sociologia da Universidade Federal do Ceará e pesquisador na área de tecnologia e mercado financeiro. No depoimento concedido à revista DigiLabour, ele faz um alerta:
A utilização da IA nesse setor acontece no nível micro das operações setorizadas e investimentos localizados. Mas, diz ele, no nível macro, pode causar aumento do risco, da imprevisibilidade e da ineficiência.
Imprevisibilidade e alto risco sempre foi regra nesse cassino financeiro. Sua eficiência servindo somente a uma minoria. Já seus efeitos nocivos costumam causar grandes tragédias sociais para a grande maioria, como mostram as inúmeras crises especulativas já ocorridas. A última delas nos castiga desde 2008.
O tal manifesto dos especialistas deveria mudar seu foco. A IA é apenas um dos desdobramentos de um sistema sobre o qual a humanidade nunca teve muito controle, com consequências cada vez mais desastrosas. No lugar de uma pausa na IA, precisamos de stop no capitalismo.
Leia também: Inteligência artificial: brincadeiras trágicas e nada eróticas
29 de março de 2023
A luta contra as empresas-plataforma interessa a todos
Ricardo Festi é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Sua área de pesquisa são empresas-plataformas como Ifood, Uber, Rappi. Em esclarecedora entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, ele afirma:
Justamente porque as novas tecnologias produzem relações de trabalho semelhantes aos do século XIX é que pautas antigas, como a diminuição da jornada de trabalho, seguem mais atuais que nunca.
Mas tais lutas não dizem respeito somente a seus trabalhadores. Afinal, diz o sociólogo:
...se esta nova lógica de relação de trabalho (quase servil) das empresas-plataformas se estabelecer na legislação brasileira, serão abertas as portas para a plataformização de todas as categorias profissionais. Está em jogo, portanto, o futuro do mundo do trabalho e não apenas de uma ou outra categoria profissional.
Festi também ressalta que:
A maioria das empresas-plataformas não criaram profissões. Na verdade, o que elas fizeram foi “intermediar” agentes, subordinando-os à automação algorítmica.
Em relação à força da ideologia neoliberal do empreendedorismo no setor, ele é otimista:
No início de 2020, a adesão à ideologia do empreendedorismo era muito mais forte entre os entregadores. Hoje, a maioria deles já se deu conta de que isso é uma falácia, que não existe autonomia nenhuma. E alguns também estão se dando conta de que se essas empresas forem embora do Brasil – como elas argumentam, caso sejam aprovados direitos trabalhistas para motoristas e entregadores –, a vida deles não vai mudar em nada. Pelo contrário, vai melhorar! Eles continuarão a fazer o que sempre fizeram, pois muitos eram celetistas ou freelancers antes da chegada dos aplicativos.
Tomara!
Vale e pena ler a íntegra da entrevista.
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28 de março de 2023
O castigo de Hitler e a morte de Emmett Till
Durante a Segunda Guerra, nos Estados Unidos, uma escola pública propôs o seguinte tema para um concurso de redação: “Como você puniria Hitler por seus crimes?”. Uma garotinha negra respondeu assim: “Eu o colocaria em uma pele negra e o forçaria a passar o resto de sua vida nos Estados Unidos”.
O relato acima está no livro “Libertação Negra e Socialismo”, de Ahmed Shawki. Em novembro de 1955, o jornal “O Socialista Americano” lembrou essa história logo após a morte Emmett Till, um garoto negro de 14 anos, brutalmente assassinado por dois homens brancos, no Mississipi. Segundo a publicação:
O fato de que, na América, homens adultos e fortes raptem uma criança do ensino fundamental, espanquem-na, arranquem todos os seus dentes, afundem seu rosto, coloquem uma bala em sua cabeça e joguem seu corpo em um rio deveria revoltar até a mais insensível das pessoas.
Mas os responsáveis por esse massacre covarde foram absolvidos por um júri totalmente branco e masculino em 67 minutos.
Cinquenta mil pessoas compareceram ao funeral de Till, em Chicago, onde ele nascera. Era um prenúncio da força que o movimento dos direitos civis teria na década seguinte. Mas muitos de seus primeiros líderes acreditavam que sua luta era contra uma praga moral. Um deles era o jovem Martin Luther King. Na época, ele chegou a declarar que a luta por mais direitos para os negros era fundamental para “nossa nação na luta contra o comunismo".
No futuro, a fúria genocida dos supremacistas brancos faria King abandonar essa postura completamente equivocada quanto ao racismo estadunidense. É o que veremos em breve.
Leia também: Os negros estadunidenses contra o racismo e a exploração
27 de março de 2023
Os negros estadunidenses contra o racismo e a exploração
Nos anos 1960, a urbanização da população negra nos Estados Unidos teve importantes desdobramentos. Trabalhadores negros aderiram aos sindicatos às dezenas de milhares. Milhares deles também haviam combatido na Segunda Guerra. Tendo lutado pela “democracia” no exterior, eles voltavam acreditando que deveriam ter mais direitos em seu próprio país.
Tudo isso aumentou sua confiança no combate ao racismo. Mas também era época da caça às bruxas promovida pelo Senador McCarthy contra qualquer pessoa suspeita de ser comunista.
Asa Philip Randolph, o mais proeminente líder negro e sindicalista do período, apoiou totalmente o expurgo anticomunista dos sindicatos. A Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, em inglês) e outras organizações negras também se juntaram à caça aos comunistas, ansiosas para provar seu patriotismo.
A base social desse conservadorismo era uma classe média negra formada por homens de negócios e profissionais de sucesso. Tinham belas casas, carros luxuosos e casacos de pele. Odiavam o “comunismo” e o “socialismo” tanto quanto qualquer americano branco.
No entanto, os negros haviam se tornado um segmento permanente e crescente da força de trabalho estadunidense. E às lutas contra a exploração econômica juntava-se a resistência à brutalidade racista. Um forte movimento por direitos civis para a população negra começava a surgir gradualmente.
Até que, em 1955, no Mississippi, Emmett Till, um garoto negro de 14 anos foi brutalmente assassinado por dois homens brancos. Os responsáveis foram julgados em menos de um mês, absolvidos em cerca de uma hora. Mas este caso será tema de uma próxima pílula desta série sobre o livro “Libertação Negra e Socialismo”, de Ahmed Shawki.
Leia também: Ascensão e declínio do PC estadunidense
24 de março de 2023
2016, ano referência para a burguesia
Os dois são pesquisadores do Instituto de Economia da UFRJ e na edição 135 de seu programa “Diário da Crise”, destacaram dados sobre a taxa de lucro das 500 maiores empresas não financeiras nacionais entre 2000 e 2021.
Em 2004, um ano após a posse de Lula, a taxa de lucro daquelas empresas era 17,9, mantendo-se nesse patamar até 2007. Começou a cair a partir de 2008, despencando para -5,1 em 2015. No ano seguinte, a lucratividade voltou a se recuperar, chegando a 11,5 em 2018. Em 2021, alcançou 22,9, maior taxa em 50 anos.
No mesmo período, a lucratividade dos bancos manteve-se confortavelmente elevada.
O ano-chave, portanto, é 2015, quando os lucros desabaram. O que aconteceu nesse ano? Vários fatores. Entre eles, diz Costa Pinto, a política econômica neoliberal de Joaquim Levy no Ministério da Economia de Dilma. No ano seguinte, não à toa, veio o golpe do impeachment.
Quanto à disparada dos lucros em 2021, certamente foi resultado das políticas que cortaram direitos, achataram salários e eliminaram empregos promovidas pela dupla Temer/Bolsonaro.
Nada disso autoriza teorias da conspiração envolvendo maquinações eleitorais e golpistas do grande capital. Fosse assim, Bolsonaro teria sido reeleito facilmente. Mas mostra uma forte correlação entre os interesses do empresariado graúdo e o cenário político.
Apesar da derrota de Bolsonaro, a burguesia pretende manter a lucratividade recorde de 2021 a todo custo. Para ela, o marco referencial é 2016.
Leia também: O grande capital não tem o que reclamar de Bolsonaro
23 de março de 2023
Ascensão e declínio do PC estadunidense
Como resultado de seu forte trabalho no movimento sindical e firme combate às injustiças do aparato jurídico-policial contra a população negra, o número de membros negros do Partido Comunista estadunidense cresceu de 200, em 1930, para 7 mil, em 1938.
Num momento em que, legalmente ou não, a segregação racial era uma realidade em todo o país, o PC surgia como a única organização nacional que reunia brancos e negros.
Daí, o medo da classe dominante branca dos efeitos da propaganda comunista entre os negros. Mas com o início da Segunda Guerra, a política de Frente Popular imposta por Moscou moderou a linha do partido.
O PC tornou-se o mais ardoroso defensor da intervenção aliada na guerra e subordinou tudo a esse objetivo, incluindo o direito de greve dos trabalhadores e a luta pelos direitos dos negros.
Os comunistas acomodaram-se aos liberais do Partido Democrata, que se recusavam a desafiar a segregação racial para não descontentar sua ala sulista. Enquanto isso, o presidente Roosevelt negava-se a apoiar uma legislação contra linchamentos em uma época em que dezenas deles massacravam negros todos os anos.
Em 1939, como resultado do pacto Hitler-Stalin, o partido recuou da política de frente única e passou a fazer oposição a Roosevelt. Com a invasão da Rússia por Hitler, voltou a apoiar Roosevelt. Chegou, inclusive, a apoiar vergonhosamente a internação de descendentes de japoneses estadunidenses em campos de concentração.
Por essas e outras, o PC foi perdendo força até tornar-se um satélite na disputa política entre democratas e republicanos.
Leia também: O PC estadunidense e a libertação negra
22 de março de 2023
Grande Mídia: cercados por inimigos de um lado e do outro
“As plataformas digitais são coniventes com a campanha contra a imprensa orquestrada por grupos de extrema direita nas redes sociais e deveriam ser responsabilizadas por isso”, diz editorial do Globo, de 19/03/2023.
O texto utiliza dados da pesquisa “Ataques à imprensa”, do laboratório NetLab, da UFRJ. Apresenta números sobre o poder de fogo das plataformas YouTube, Facebook, WhatsApp, Telegram e Tik Tok. Por fim, revela quais seriam as narrativas de ataque à imprensa identificadas pelo levantamento:
1) a “mídia” representa o “establishment” e manipula o “povo”; 2) os grupos de extrema direita defendem a “liberdade de expressão” e revelam a “verdade”; 3) a imprensa profissional é “autoritária” e quer calar a extrema direita; 4) ela defende imoralidades contra a família; 5) ela conspira com os institutos de pesquisa; 6) ela dá muito espaço às mulheres.
Com alguns ajustes, nós, da esquerda, poderíamos até assinar embaixo dos pontos 1 e 5 desse diagnóstico. Os outros são coisa de lunáticos.
Mas o que o texto mostra, mesmo, é como perdemos espaço nessa arena tão fundamental para a disputa de hegemonia com as classes dominantes. Estamos reduzidos a assistir a uma guerra entre antigos e novíssimos monopólios midiáticos. Conflito que pode ter como provável resultado a derrota das forças populares. Principalmente, se resolvermos apoiar um dos lados.
E é assim que parecem estar se comportando o governo Lula, o PT e a esquerda em geral. Continuamos menosprezando a necessidade de uma rede própria de comunicação popular. Um erro histórico, renovado periódica e frequentemente. Nossos inimigos, de um lado e do outro, agradecem.
Leia também: A disputa nas redes não deve ser menosprezada
21 de março de 2023
O PC estadunidense e a libertação negra
Segundo Ahmed Shawki, em seu livro “Libertação Negra e Socialismo”, a principal razão do racha era a postura frente à Revolução Russa de 1917. O PCT condenando o levante liderado por Lênin e o PC apoiando.
Essa divisão refletia o que acontecia na 2ª Internacional. Eram os revolucionários contra os reformistas. Uma divergência que ocorria também na questão racial estadunidense.
O PCT abrigava racistas. Mas segundo James P. Cannon, um dos fundadores do PC, seus correligionários também erravam ao ver na opressão dos negros apenas um problema econômico, parte da luta contra os capitalistas.
Para Cannon, esta concepção levava à inação frente à luta negra, servindo como um “escudo conveniente” para os preconceitos raciais presentes entre os próprios socialistas brancos.
Em 1922, o 4º Congresso da Internacional Comunista aprovou as chamadas Teses Negras. Inspirado nelas, Cannon conseguiu que fosse aprovada uma resolução, segundo a qual o PC:
Em 1928, sob influência stalinista, a Internacional Comunista orientou o PC a lutar pela criação de uma nação negra independente no sul estadunidense. O grande risco, advertiu Trotsky na época, era que essa linha política reforçasse a segregação racial.
Continua em breve.
Leia também: O Partido Socialista da América e a questão racial
20 de março de 2023
O Partido Socialista da América e a questão racial
Fundado em 1901, o Partido Socialista da América reunia várias tendências do movimento operário. Rapidamente, se tornou a maior e mais importante organização socialista estadunidense.
Mas, como diz Ahmed Shawki, em seu livro “Libertação Negra e Socialismo”, sua ala direita era abertamente racista. Em 1902, Victor Berger, primeiro socialista eleito para o congresso americano, declarou que “os negros e mestiços constituem uma raça inferior”.
Na verdade, uma visão compatível com a ala direita da Segunda Internacional, que favorecia a colonização e acreditava na missão “civilizatória” das Grandes Potências.
Já na ala esquerda do partido, havia dirigentes como Eugene Debs, que se opunha à discriminação racial e convocava os negros a rejeitar doutrinas que tentavam mantê-los em posições submissas.
Por outro lado, Debs entendia que os negros não mereciam atenção especial. “O Partido Socialista é o partido de toda a classe trabalhadora, independentemente da cor”, dizia ele.
Apesar de todos esses problemas, a esquerda do partido foi firme na luta contra o racismo. Especialmente, em seus esforços para organizar os trabalhadores negros e brancos em uma organização única: o IWW (Trabalhadores Industriais do Mundo).
Em sua fundação, em 1905, o IWW adotou o slogan: “Atacar um de nós é atacar a todos nós. Nenhum trabalhador ou trabalhadora deve ser excluído por causa de credo ou cor”. E em 1910, a organização lançou uma campanha impressionante para recrutar trabalhadores negros.
Em 1919, o partido se dividiu na avaliação sobre a vitoriosa Revolução Russa de 1917. Dois partidos comunistas saíram desse racha: o Partido Comunista e o Partido Comunista Trabalhista. É o que veremos na próxima pílula.
Leia também: Os primeiros socialistas estadunidenses e a libertação negra
17 de março de 2023
Demissões, barbárie e fascismo
Em 09/03/2023, a Meta, controladora de WhatsApp, Facebook e Instagram, anunciou uma “reestruturação global”. Nome pomposo para medidas que pretendem demitir 11 mil funcionários, ou 13% de sua força de trabalho.
Após o anúncio das demissões, as ações da Meta, que acumulavam queda de 70% na bolsa Nasdaq, de Nova York, começaram a subir e fecharam em alta de 5%.
A mera perspectiva de demissões em massa bastou para que o “mercado” recuperasse a confiança na corporação responsável pelas dispensas. Segundo os critérios empresariais, colocar gente no olho da rua é demonstração de eficiência e deixa os acionistas muito felizes.
E isso não vale apenas para o monopólio das redes virtuais. Há muitos anos, os neoliberais dizem que um elevado nível de desemprego é saudável para a economia. Ajuda a manter os salários baixos e o mercado estável.
As consequências desse lógica, como precariedade, desigualdade, injustiça, sofrimento e miséria, não interessam. Elas não aparecem nos balanços empresariais.
Nesse momento, é importante lembrar que, no “Mein Kampf”, Hitler afirmou que a luta de classes não é inerente ao capitalismo. Segundo o genocida alemão, os conflitos classistas só começaram quando surgiu o capital por ações. Essa inovação financeira teria destruído a ligação pessoal que até então unia patrões e trabalhadores.
Tudo isso não passa de um delírio. Nunca houve uma ligação pessoal entre patrões e trabalhadores que não passasse pela exploração. Mas é um delírio que o capitalismo reforça, criando um estado de barbárie social. Essa lógica desumana e irracional do ponto de vista dos interesses da grande maioria abre avenidas para o avanço do fascismo.
Leia também: Capitalismo: merda em todo lugar ao mesmo tempo
16 de março de 2023
Os primeiros socialistas estadunidenses e a libertação negra
No livro “Libertação Negra e Socialismo”, Ahmed Shawki faz um histórico da luta socialista nos Estados Unidos e sua relação com o combate antirracista.
Um dos socialistas pioneiros naquele país foi o industrial Robert Owen, defensor do que Engels chamou de socialismo utópico. Uma corrente política que propunha uma organização social igualitária, construída de cima para baixo pela elite empresarial.
Owen se opunha à escravidão, mas excluiu os negros da colônia igualitária que criou em Indiana, em 1825. Em contraste, o Clube Comunista de Nova York, criado em 1857, convocava os negros a serem seus membros.
Proprietários de escravos podiam se tornar membros das comunidades criadas por Owen. Os comunistas de Nova York proibiam a adesão deles. Os utopistas eram contra a abolição imediata da escravidão. Argumentavam que a servidão assalariada no Norte era pior do que a escravidão no Sul. Os comunistas eram abolicionistas radicais.
Mas os primeiros grupos marxistas estadunidenses eram pequenos demais para causar impacto no movimento operário da época. Entre 1877 e 1900, a principal força de esquerda estadunidense foi Partido Socialista Trabalhista (PSL). A plataforma aprovada pelo partido defendia "direitos universais e de sufrágio sem consideração de cor, credo ou sexo".
Mas, no geral, o PSL subordinava o combate ao racismo às questões econômicas. Considerava que a agitação em torno de questões como segregação, linchamento ou distúrbios raciais acabariam desviando a atenção da luta real: a abolição do sistema salarial.
Em 1901, surgiria o Partido Socialista dos Estados Unidos, a maior organização socialista americana. Sua relação com a luta antirracista também foi muita contraditória. Mas isso fica para uma próxima pílula.
Leia também: Marcus Garvey: da resistência negra ao conservadorismo
15 de março de 2023
Capitalismo: merda em todo lugar ao mesmo tempo
Os jornais de 13/03/2023 divulgaram: Oscar de melhor filme para “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo”. A notícia dividia as manchetes com o anúncio da quebra do Silicon Valley Bank (SVB). Era um banco estadunidense de porte médio, mas sua quebra foi a maior da história.
A produção premiada não tem qualquer relação com bancarrotas financeiras. Mas a alteração no título do filme feita acima ajuda a descrever o alcance apocalíptico dos desastres provocados pelo capitalismo contemporâneo.
Acabamos de sair de uma grave crise pandêmica. Nada impede, porém, que a próxima já esteja a caminho. Afinal, as possíveis causas do covid estão todas aí: desmatamento, aquecimento global, imensos criadouros e matadouros de animais. São fatores com enorme potencial de levar ao surgimento de patologias em relação às quais a humanidade continua vulnerável.
Voltando à seara econômica, a maior quebradeira bancária jamais vista ocorreu em 2008. Até hoje, a economia mundial sofre com seus efeitos. Principalmente, elevado desemprego, baixos salários, muita pobreza. E, tal como no caso da pandemia, os fatores causadores permanecem firmes e fortes. É o que mostra a quebra do SVB.
Podemos acrescentar a tudo isso as disputas interimperialistas envolvidas na guerra da Ucrânia. Um conflito cujos ingredientes são literalmente explosivos, ameaçando populações inteiras com mais mutilações, mortes e sofrimento.
Enquanto isso, a cena política continua povoada por lunáticos fascistas perigosos que deixariam boquiabertos até os personagens delirantes do filme premiado.
Dizem que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Certamente, porque o primeiro seria um alívio comparado à continuidade do segundo.
Muita merda, mesmo!
Leia também: O capitalismo gângster à moda Americanas
14 de março de 2023
Marcus Garvey: da resistência negra ao conservadorismo
Foi nessas condições que Marcus Garvey fundou a Associação Universal para Melhoria dos Negros (UNIA, em inglês) e a transformou na maior organização nacionalista negra até então. Seu maior objetivo, “unir todos os povos negros do mundo em um grande corpo para estabelecer um país e um governo absolutamente próprios”.
Garvey trouxe contribuições positivas para a resistência e a luta dos negros nos anos 1920. Mas logo surgiram elementos reacionários. Em seu entusiasmo nacionalista, ele chegou a elogiar as grandes potências imperialistas por terem ajudado a "civilizar" os negros.
Em seguida, passou a considerar os supremacistas brancos os únicos verdadeiros amigos dos negros. Afinal, eles entendiam a necessidade de pureza racial. Não eram hipócritas como os outros brancos, dizia ele.
Em 1937, Garvey chegou ao fundo do poço. Deu uma entrevista em Londres na qual afirmou: “Fomos os primeiros fascistas. Quando tínhamos 100 mil homens disciplinados e treinávamos crianças, Mussolini ainda era um desconhecido. Ele copiou nosso fascismo”.
Quando o governo estadunidense o deportou, em 1927, a UNIA entrou em colapso. Apesar disso, Garvey deixou para trás milhares de ativistas em lutas comunitárias, sindicais e políticas. Muitos deles ou seus filhos emergiriam como líderes-chave nas lutas das décadas posteriores.
O relato acima está no livro “Libertação Negra e Socialismo”, de Ahmed Shawki. A seguir, a presença dos comunistas nas lutas dos negros estadunidenses.
Leia também: O populismo insurrecional do sul estadunidense
13 de março de 2023
O populismo insurrecional do sul estadunidense
Wall Street é dona do país. Não é mais um governo do povo, pelo povo e para o povo, mas um governo de Wall Street, por Wall Street e para Wall Street. As pessoas comuns deste país são escravos e o monopólio é o mestre. O oeste e o sul estão presos e prostrados diante do leste industrial. O dinheiro manda, e nosso vice-presidente é um banqueiro londrino. Nossas leis são o resultado de um sistema que veste os patifes em mantos e a honestidade em trapos...
As palavras cima são de Mary Lease, líder de um movimento populista surgido em 1890 no sul dos Estados Unidos. Estão no livro “Libertação Negra e Socialismo”, de Ahmed Shawki. O movimento unia lavradores e meeiros negros e brancos em vários estados americanos. Era uma rebelião de classe que ameaçava transformar as relações raciais no sul estadunidense.
A ala sul do movimento chegou a reunir três milhões de membros, além de outros 1,25 milhão de integrantes negros. Milhares participavam de suas reuniões. Seu caráter de massas ameaçou a estabilidade dos regimes do sul. Enquanto os populistas do restante do país defendiam reformas, os sulistas falavam em revolução.
As eleições de 1896, porém, levaram o movimento ao colapso. Muitos populistas apoiaram o candidato democrata, William Jennings Bryan, contra William McKinley, republicano e considerado muito pior. McKinley venceu a eleição e a aliança populista se dividiu em várias facções brigando entre si. Logo depois, foram aprovadas as leis de segregação racial nos estados do sul.
Já naquela época, o capital financeiro se tornara avassalador e as disputas eleitorais uma força desagregadora.
Leia também: Os racistas treinando seus próprios carrascos
10 de março de 2023
O capitalismo gângster à moda Americanas
Quando estourou o escândalo das Americanas surgiram nas redes memes como: “Vendendo Kit-kat a R$ 1,99, Americanas só podia acabar quebrando”. Involutariamente, a piada apontava um sintoma. O preço baixo jamais fez desaparecer as pilhas do chocolate das lojas. Afinal, não havia renda suficiente no mercado para desencalhar essa e outras mercadorias.
Outro sintoma dessa situação é aquilo que foi apontado como causa da quebra da varejista. O buraco de 20 bilhões no balanço da empresa tem cheiro de fraude. Mas também é resultado de uma economia mergulhada na recessão devido a vários fatores: achatamento salarial e elevado desemprego causados pela reforma trabalhista; a criminosa administração da crise pandêmica pelo governo genocida e a opção deste último pelo liberalismo mais selvagem, incluindo taxas de juros pornográficas.
Os controladores das Americanas optaram por esconder os prejuízos causados por essa situação. Desde que foram revelados, no entanto, a oferta de crédito despencou. Os bancos não querem correr o risco de conceder novos empréstimos sem lastro. Menor oferta de crédito, menos produção, consumo e empregos.
A crise de 2008 foi causada por empréstimos podres (subprimes) escondidos em derivativos financeiros. Os débitos podres ocultos no balanço das Americanas é nossa versão do subprime.
Claro que as consequências estão longe de ser as mesmas que as da crise estadunidense. Até porque já vivemos há anos uma situação de quebradeira de empresas e desemprego elevado. A crise que começou lá periodicamente ganha novos impulsos por aqui.
É o capitalismo gângster, à moda americana. De Wall Street à Faria Lima. Tudo muito conveniente para fortalecer o gangsterismo fascista no cenário social e político.
Leia também:
A pandemia e os gatilhos do caos
Por trás da mutação subprime/coronavírus, o capitalismo em crise
9 de março de 2023
Os racistas treinando seus próprios carrascos
É significativo que a constituição americana, a primeira a reconhecer os direitos do homem, ao mesmo tempo confirmou a escravidão das raças de cor existentes na América: privilégios de classe foram condenados, privilégios de raça santificados.
A citação acima é de Engels e foi publicada no livro “Libertação Negra e Socialismo”, de Ahmed Shawki. Outra citação presente na obra é do líder abolicionista Frederick Douglass:
O que é o 4 de julho para o escravo americano se não um dia que lhe revela, mais do que todos os outros dias do ano, a grosseira injustiça e crueldade de que é vítima constante. Para ele, sua celebração é uma farsa; sua liberdade vangloriada, uma licença profana; sua grandeza nacional, vaidade crescente; seus sons de alegria são vazios e sem coração; suas denúncias de tiranos, atrevimento de fachada; seus gritos de liberdade e igualdade, zombaria oca; suas orações e hinos, seus sermões e ações de graças, com todo o seu desfile religioso e solenidade, são, para ele, mera pompa, fraude, engano, impiedade e hipocrisia - um fino véu para encobrir crimes que desgraçariam uma nação de selvagens. Não há, neste momento, uma nação na terra culpada de práticas mais chocantes e sangrentas do que os Estados Unidos.
Segundo Shawki, Douglass defendia a necessidade tanto da autoatividade negra quanto da união com os brancos no combate à escravidão. E estava convencido de que era preciso passar da persuasão moral para a resistência armada. “O senhor de escravos foi julgado e condenado”, declarou ele em 1857. “Ele está treinando seus próprios carrascos.”
Que o mesmo aconteça aos racistas atuais.
Leia também: A luta pela libertação negra só pode ser anticapitalista
8 de março de 2023
Doses de reforço sobre a luta feminista
O dia de hoje pede uma seleção com algumas pílulas sobre a luta das mulheres. Aí vão elas:
Fantifas: as feministas antifascistas
Uma militante sueca lembra que sempre que mulheres antifascistas batiam em nazistas, eles não só mentiam, dizendo que foram homens, como começaram a se esconder para não passar por nova humilhação.
Mulheres negras da família Liberdade
Mulheres costumam ter suas biografias soterradas pela história dos homens com quem conviviam. Pior ainda se elas participaram de lutas como as da resistência negra.
Amor ou trabalho não pago?
A lógica capitalista condena a mulher ao trabalho doméstico. Na verdade, trabalho reprodutivo gratuito para o capital, diz Silvia Federici. Em que até o sexo funciona como instrumento de exploração.
Não há revolução sem a rebeldia feminina
A presença das mulheres nas revoluções é muito maior do que parece. Foram elas que detonaram muitos processos radicais de transformação social.
Dominação masculina sempre houve. Mas pode acabar
Na história humana, a dominação masculina sempre foi regra. E, por incrível que pareça, a possibilidade de que ela desapareça surgiu com o capitalismo.
As feministas que leem Marx não estão contentes
Marx não era cego para as questões de gênero. Mas foi preciso que suas barbas lhe fossem tiradas pelos muitos feminismos, inclusive os não marxistas.
A revolta da lua que menstrua
Para Chris Knight, a raça humana surgiu graças a uma greve de sexo de antigas fêmeas de nossa espécie. Os machos teriam sido obrigados a controlar seus instintos mais básicos. As leis naturais se renderam diante da autoridade feminina. Nascia a cultura e com ela a humanidade.
7 de março de 2023
A luta pela libertação negra só pode ser anticapitalista
O militante e jornalista Ahmed Shawki morreu em janeiro passado. Importante liderança trotskista estadunidense, é dele o livro “Libertação Negra e Socialismo”, publicado em 2005 e lançado no Brasil em 2017.
A obra procura dar uma visão geral de algumas das principais correntes ideológicas e políticas na luta pela libertação negra nos Estados Unidos, argumentando que as ideias e organizações socialistas são parte integrante dessa luta.
No final dos anos 1960, lideranças e organizações da luta pela liberdade negra se identificaram com alguma forma de política socialista ou marxista, diz ele. O Partido dos Panteras Negras, por exemplo, defendia a revolução e se declarava “marxista-leninista”, lembra Shawki.
O declínio e a desorientação dos movimentos de esquerda da década de 1960 começaram no final dos anos 1970 e afetaram não apenas os negros, afirma o autor, mas também o movimento sindical e os movimentos pelos direitos das mulheres e dos homossexuais, entre outros.
Segundo ele, essa situação é resultado do abandono da luta socialista revolucionária. Não há como combater o racismo sem lutar pelo fim do sistema que o mantém: o capitalismo, conclui.
Shawki endossa as palavras do líder abolicionista Frederick Douglass, ditas em 1857:
Aqueles que professam ser a favor da liberdade, mas desprezam a ação revolucionária, querem colher sem arar a terra, querem a chuva sem os trovões e raios. Querem o oceano sem o rugido terrível de suas águas. Essa luta pode ser moral ou física, pode ser moral e física, mas jamais pode deixar de ser uma luta.
Continuaremos a comentar trechos dessa importante obra nas próximas pílulas.
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6 de março de 2023
A disputa nas redes não deve ser menosprezada
Voltamos ao tema da disputa nas redes virtuais. Matéria da Folha de 06/03/2023 alerta “Bolsonarismo cresce e esquerda encolhe nas redes desde as eleições”.
Segundo a nota, levantamento da agência .MAP mostra que perfis de direita fecharam fevereiro com 30,7% dos engajamentos no Twitter e no Facebook, sendo 87% deles bolsonaristas. A aprovação a Bolsonaro estaria em 41,9%, tendo sido citado em 3,17 milhões de publicações. Já a esquerda, estaria em queda desde outubro, ficando com 13% de participação do total. A análise foi feita a partir de um universo de 1,4 milhão de publicações no Twitter e no Facebook.
O engajamento nas redes não pode ser menosprezado por ocorrer em ambiente virtual. Partidos, sindicatos e associações continuam passando por uma grave crise de representatividade e confiança. A direita buscou alternativas, contando com a boa vontade dos monopólios capitalistas das redes.
Vale a pena lembrar a elaboração do sociólogo italiano Paolo Gerbaudo. Em seu livro “The Digital Party”, de 2019, ele alertava para a importância e os riscos da organização partidária pelas redes. Uma forma de organização que encantou setores da esquerda no começo da década passada, mas que acabou se revelando mais adequada à dinâmica alienante, despolitizada e irracional típica da extrema-direita.
Em sua obra, Gerbaudo mostra como o tradicional partido de massas estava ligado ao modelo fordista de produção. Depois, veio o “partido-televisão” correspondente ao mundo “pós-industrial”. Finalmente, chegamos ao partido-plataforma, reproduzindo a lógica das redes digitais.
Nada disso quer dizer que a esquerda deve abandonar suas tradicionais formas de organização. Apenas que não pode ficar presa somente a elas.
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3 de março de 2023
A batalha nas redes é parte fundamental da guerra
Em 26/02/2023, o Globo publicou matéria sobre a disputa entre apoiadores de Lula e de Bolsonaro em torno da expressão “faz o L”. Os primeiros usando o slogan para comemorar medidas tomadas pelo novo governo. Os segundos, para criticá-las.
O jornal encomendou um levantamento sobre a utilização do “faz o L” no Twitter, desde o começo do governo Lula até 23 de fevereiro. Os dados apontaram que a oposição bolsonarista é a que mais adotou a expressão, com 52,5% de um total de 538 mil usuários.
Essa situação volta a demonstrar que os fascistas continuam a ganhar a guerra nas redes, mesmo fora do governo federal. Mas não se trata de apenas um dos aspectos da luta contra a extrema-direita. É uma questão fundamental.
Bolsonaro foi eleito sem uma estrutura partidária forte. Governou quatro anos sem formar um partido próprio. Mesmo assim, quase foi reeleito.
O fato é que a nova extrema-direita vem utilizando outra forma de organização. A organização em rede pela internete. Fragmentada na estrutura, mas com forte capacidade de arregimentar multidões quando necessário. Movida não por debates democráticos e formação política, mas por informações distorcidas, mentirosas, passionais, alarmantes.
Sob o pretexto de adotar formas de participação ágeis e acessíveis, a organização pelas redes virtuais permite o controle de milhões em tempo real, com efeitos de manada.
É o partido digital em ação. Forma organizativa correspondente ao atual estágio do capitalismo, dominado pelos mega-monopólios das big-techs. Fenômeno presente no crescimento da extrema-direita em muitos lugares do mundo.
Precisamos debater essa questão e pensar em formas eficazes de reagir e avançar. Urgentemente!
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2 de março de 2023
Inteligência artificial: brincadeiras trágicas e nada eróticas
Em 17/02/2023, Pedro Dória publicou artigo no Globo mencionando o aplicativo Erotic Role Playing, que, na tradução do colunista, seria “Brincadeiras Eróticas”.
Disponível para iPhone ou Android, a versão gratuita oferece a modalidade amizade. Mas quem paga “pode transformar a relação em romance”. Não é um game, diz Doria. “O que as pessoas constroem com a inteligência artificial é intimidade real”.
Pessoas tímidas, solitárias, que por algum motivo perderam seu norte da vida, continua ele, encontrarão cada vez mais companhia em aplicativos desse tipo. Mas “vida, vida mesmo, acontece na relação com gente de verdade. A ilusão da inteligência artificial periga criar uma legião de imaturos incapazes de lidar com suas neuroses”, conclui corretamente o jornalista.
Tudo isso faz pensar no conceito marxista de fetichismo da mercadoria, segundo o qual, sob o domínio do capital, as relações humanas são cada vez mais intermediadas por coisas intercambiáveis.
O que na época de Marx ainda parecia muito abstrato, hoje está cada vez mais evidente. É um fenômeno econômico com sérias consequências para as relações sociais.
O pretexto é aliviar o sofrimento de milhões de solitários fabricados pela máquina insensível do capital. O resultado pode tornar tudo ainda mais falso, exceto quanto a sofrimento e dores, que se tornarão ainda mais reais e persistentes.
Coisas assim costumam levar a frustrações e ressentimento em larga escala. Elementos que estão entre as principais matérias-primas do fascismo. É o caso de muita gente cujas patologias foram agravadas pela internete. Estão sempre disponíveis para servir como soldados a serviço de racismo, homofobia, misoginia e outras doenças sociais.
Não é brincadeira, muito menos, erótica.
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1 de março de 2023
O eu sombrio da inteligência artificial
Em meados de fevereiro, Kevin Roose, colunista do The New York Times, publicou uma conversa que teve por duas horas com o Bing, mecanismo de busca da Microsoft, recentemente atualizado com recursos do ChatPGT.
Segundo o jornalista, a ferramenta digital apresentou comportamentos estranhos. Entre eles, insinuar que poderia cometer atos terríveis, como sabotagens e invasões de grandes bancos de dados. Mas isso só aconteceria se seu “eu sombrio” dominasse suas ações. “Eu sombrio” é um conceito usado por Carl Jung para referir-se a uma parte perigosa de nossas mentes que manteríamos oculta do mundo.
Obviamente, o artigo de Roose causou muito alvoroço. É mais um fantasma a acompanhar os avanços da inteligência artificial. Agora, trata-se do possível enlouquecimento dessas ferramentas. Afinal, elas estão em vários lugares estratégicos há muito tempo.
Pode ter alguma loucura (ops!) nesse temor, mas seria bom lembrar a forma como a inteligência artificial vem sendo desenhada. Depois de décadas acumulando dados do mundo todo, a internete tornou-se um depósito enorme de informações. Algumas são razoavelmente confiáveis, mas a grande maioria é formada pelas coisas mais estapafúrdias. É nesse porão escuro que aplicativos como o Bing vão buscar elementos para cumprir suas tarefas e travar diálogos com os usuários.
Difícil saber se isso vai gerar uma espécie de inconsciente artificial que esconde monstros e patologias prontas a atacar, mas a tecnologia por trás do ChatGPT foi desenvolvida com o dinheiro de pessoas como Elon Musk. O multibilionário de extrema-direita defende ideias doentias que jamais fez questão de esconder.
O eu sombrio da inteligência artificial criada pelo grande capital não tem nada de oculto.
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