Doses maiores

29 de fevereiro de 2024

Os idiomas artificiais e o extermínio das línguas indígenas

Klingon: Star Trek. Dothraki: Game of Thrones. Nadsat: Laranja mecânica. Kryptoniano: Super-Homem. Na'vi: Avatar... Esta lista refere-se às línguas criadas para séries, filmes e livros de fantasia e ficção científica. Com menção especial para os idiomas Quenya, Sindarin e Élfico, inventados por J.R.R. Tolkien para a saga “Senhor dos Anéis”.

Fenômenos de massa, alguns desses idiomas artificiais estão disponíveis até em aplicativos de aprendizado de línguas estrangeiras. Ou seria melhor dizer alienígenas?

Mas o caso de Tolkien é específico. Ele criou os idiomas antes de inventar os povos que os utilizam. Faz todo sentido. Afinal, as formas simbólicas de comunicação de um povo dizem quase tudo sobre o que ele é, sua história, crenças, cultura, moral, religião. É por isso que entre as formas de dominação e extermínio cultural mais eficazes de um povo está a supressão de seu idioma. Um exemplo claro disso é a situação dos indígenas.

Calcula-se que quando os europeus invadiram as terras que atualmente chamamos Brasil, havia mais de 5 milhões de indígenas, falando cerca de 1.200 línguas. Hoje, esses idiomas foram reduzidos a um número entre 160 e 180. Uma das consequências disso é o baixo índice de pessoas que se identificam como indígenas na população brasileira. Ao massacre físico desses povos juntou-se seu extermínio simbólico. Um etnocídio.

Na esfera do entretenimento comercial, o capitalismo se apropria dos mundos criados pela fantasia humana para gerar cada vez mais lucros, beneficiando cada vez menos gente. Ao mesmo tempo, utiliza o extermínio cultural para eliminar mundos incompatíveis com sua lógica destruidora da vida e produtora de injustiça social.

Leia também: No pós-apocalipse, sob orientação indígena

28 de fevereiro de 2024

Os professores Nádia e Lênin

Quando Nádia Krupskaya conheceu Lênin, seu futuro companheiro, não gostou muito do comportamento implacável que ele adotava nas polêmicas partidárias. Por outro lado, a capacidade pedagógica de Lênin a impressionou muito positivamente. Nos grupos de estudos com trabalhadores, por exemplo, a primeira metade da aula era dedicada a uma apresentação de algum aspecto do “Capital”, de Marx. Na outra metade, Lênin estimulava os alunos a falarem sobre detalhes de suas vidas profissionais, relacionando os relatos ao que já haviam discutido.

Lênin também esteve na vanguarda daqueles que defendiam um método de agitação centrado nas necessidades cotidianas dos trabalhadores, apoiando ativamente suas lutas por melhorias no local de trabalho e combinando as lutas econômicas e políticas. Em suma, escreveria Nádia sobre Lênin mais tarde, ele fornecia “um exemplo brilhante de como abordar o trabalhador médio da época”.

Mas a própria Nádia era uma professora popular e respeitada entre os trabalhadores. Também era considerada uma organizadora extraordinariamente esforçada e eficaz, seja na sala de aula ou na clandestinidade. Por toda a sua vida, continuaria demonstrando talento em atrair mulheres trabalhadoras e jovens para a luta. Profundamente consciente das injustiças que permeavam a sociedade, ela comentava várias vezes, quase compulsivamente: “o trabalhador russo vive mal”, “nossos camponeses não têm direitos” e “a autocracia é inimiga do povo”, sempre procurando fazer avançar a si mesma e aos outros na luta por uma vida mais justa.

As informações acima estão no livro “Lenin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution“, do marxista estadunidense Paul Le Blanc. Voltaremos a comentar essa obra durante este ano, que marca o centenário da morte do líder bolchevique.

Leia também: O Pravda enganando a perseguição czarista

27 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: o crime como modo capitalista de funcionamento

Já comentamos o estatuto que rege o funcionamento do PCC, a partir de informações do livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso. Segundo este autor, trata-se da “governança do PCC”, com a qual “procurava-se garantir a justiça e a concorrência entre os irmãos, cabendo à mão invisível do mercado ilegal empurrar seus membros para uma ação mais racional e lucrativa”.

O bandido impulsivo, com sangue nos olhos, disposto a matar ou morrer, diz Manso, tinha dado lugar a uma gama de profissionais, como doleiros e advogados capazes de comprar fazendas, postos de gasolina, bares e emissoras de rádio que podiam esquentar o capital fazendo apostas em sites esportivos, criando contas-laranja, investindo em criptomoeda, paraísos fiscais, empresas e imóveis.

Afinal, informa o autor, já que crimes e dinheiro ilegal são inevitáveis, o jeito era enquadrar os criminosos dentro de certos limites para diminuir os danos. Se o dinheiro viesse do crime, mas o ladrão seguisse uma ética mínima, evitando a violência quando possível, emprestando dinheiro e empreendendo em negócios legais, as portas do sistema se abririam para ele. Foi o que aconteceu.

Foram encontrados fortes indícios de participação do PCC em empresas de transporte alternativo em São Paulo. O mesmo acontecendo no Rio, mas, neste caso, sob controle das milícias. O objetivo principal? Criar firmas legais para lavar dinheiro e desviar recursos públicos.

Tudo isso sem preferências partidárias. A criminalidade empreendedora interage com representantes da esquerda e da direita. Afinal, ambas precisam de dinheiro para vencer eleições, conclui Manso.

Tá errado? Sim, muito. Mas o crime sempre fez parte do modo capitalista de funcionamento.

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26 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: a revolta aliada da barbárie

Abaixo, outro relato do livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso.

Ney Santos nasceu em um bairro pobre de Embu das Artes, na Grande São Paulo. Não veio de movimentos sociais ou das comunidades católicas. Em 1999, foi condenado por receptação. Quatro anos depois, foi preso em flagrante, dentro de um automóvel utilizado em um assalto, passando dois anos na cadeia. De volta à liberdade, montou uma ONG que distribuía brinquedos no Dia das Crianças e passou a produzir shows na cidade.

Em 2010, se candidatou a deputado estadual. Durante a campanha, foi acusado de lavar dinheiro para o PCC em seus quinze postos de gasolina. Não foi eleito. Em 2012, elegeu-se vereador, mas foi condenado por compra de votos. Conseguiu manter o mandato graças a uma decisão judicial.

Teve a candidatura à prefeitura de Embu barrada pela Lei da Ficha Limpa, em 2016. Com uma liminar, venceu a disputa e assumiu o cargo. Criou uma guarda municipal ao estilo da Rota. Simpático e comunicativo, administrava em contato direto com a população nas redes sociais. Promoveu shows populares com celebridades do sertanejo e atuou com agilidade durante a Pandemia. Enfrentou novos processos, mas foi reeleito em 2020.

Durante a campanha, pesquisas mostraram que seu suposto envolvimento com o PCC era considerado positivo pela maioria. Facilitaria o controle dos roubos na cidade.

Apoiou Bolsonaro em 2018 e 2022.

Esse  caso é apenas mais um exemplo dos caminhos que tomou a frustração popular frente à “democracia racionada” da qual também nos tornamos reféns. No lugar da revolução, a revolta que se alia à barbárie.

Leia também: Fé e Fuzil: PCC, religião e racionalidade

23 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: PCC, religião e racionalidade

O primeiro estatuto do PCC tinha como uma de suas referências os Dez Mandamentos. “Não usarás o nome do Senhor em vão”, por exemplo, inspirava um item que proibia o uso do PCC para objetivos pessoais. Quem flertava com as mulheres de outros presos infringia proibição semelhante ao mandamento “Não cobiçarás a mulher do próximo”. E havia o batismo, em que o novo integrante assumia a defesa da organização e das leis do crime.

O PCC também criou um sistema de comunicação eficiente para disseminar suas leis. Os “torres” usavam telefones para ditar as regras aos “sintonias”. Estes, espalhados pelos presídios e quebradas, rapidamente repassavam as mensagens.

Os “disciplinas” faziam funcionar um sistema informal de justiça com espaço para acusação, defesa, análise das provas e prolação de sentenças.

Os sintonias e os disciplinas formavam as células do PCC espalhadas pelas novas unidades penitenciárias construídas depois de 1995, durante a gestão do governador Mário Covas. Entre 1990 e 2020, mais de 1 milhão de pessoas passaram por uma de suas unidades.

Quanto maior a quantidade de presos, mais crescia o tamanho do contingente à disposição da facção e o volume de conexões entre as prisões e as ruas. Era uma estrutura inteligente e durável que não estava ligada a nomes ou pessoas, mas a funções. O isolamento ou morte de um “sintonia” ou “disciplina” não afetava o funcionamento do sistema.

As informações acima estão no livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso. Mostram como doutrina religiosa e racionalidade capitalista se combinaram para criar uma nova forma de organização do crime.

Leia também: Fé e Fuzil: a gênese da teologia do domínio

22 de fevereiro de 2024

A aposta de 1 bilhão de dólares na barbárie

Em 16/02/2024, Pedro Doria publicou o artigo “Como lidar com riqueza digital?”. Segundo o texto, recentemente Sam Altman, alto executivo da empresa de Inteligência Artificial OpenAI, deu uma entrevista em que declarou:

No meu grupo de chat com outros executivos de tecnologia temos um bolão para ver quem acerta o ano em que teremos a primeira empresa que vale US$ 1 bilhão com uma só pessoa.

Em seguida, o colunista explica que até 20 anos atrás, companhias avaliadas em US$ 1 bilhão tinham “parques fabris espalhados pelo planeta e centenas de milhares de funcionários”.

Já as atuais corporações tecnológicas que chegaram ao US$ 1 bilhão empregam somente algumas dezenas de milhares de trabalhadores. Agora, a utilização da inteligência artificial possibilitaria criar firmas com valor de mercado bilionário, empregando uma única pessoa, seu proprietário.

O articulista afirma que tais companhias poderiam ser pesadamente taxadas. Desse modo, financiariam um programa de renda mínima universal para socorrer os que tiverem seus empregos eliminados. Só que essa conta não fecha. O mesmo neoliberalismo que incentivou a criação dessas enormes corporações eliminadoras de empregos é especialista em transferir a carga fiscal do grande capital para os trabalhadores.

Claro que ainda há diversas atividades que exigem muita força de trabalho humana. Mas que a atual vanguarda tecnológica da economia capitalista trabalhe para aumentar ainda mais a concentração de patrimônio e riqueza mostra o tipo de sociedade que pretende construir.

E confirma que o propósito maior da inteligência artificial é descartar trabalho humano, contribuindo para condenar grandes parcelas da população ao subemprego, superexploração e desemprego.

A verdadeira aposta é na barbárie.

Leia também: Inteligência artificial e trabalho mal pago

21 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: a gênese da teologia do domínio

"Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra", diz a famosa passagem do Gênesis.

Nos final dos anos 1980, setores evangélicos interpretaram o trecho acima como um mandato para dominar o mundo, inclusive nas esferas não religiosas. Surgia a teologia do domínio.

“Chegara a hora de os ímpios serem governados pelos abençoados”, pregavam os evangélicos adeptos dessa doutrina. E para chegar ao poder, eles precisam avançar sobre os “Sete Montes”: família, religião, educação, mídia, entretenimento, finanças e governo.

Em 1987, o deputado da Assembleia de Deus, Matheus Iensen, propôs a emenda parlamentar que aumentou de quatro para cinco anos o mandato de José Sarney. Três dias antes da votação da proposta, foram liberados 110 milhões de cruzados para a Confederação Evangélica do Brasil

As concessões de rádio e TV se tornaram importantes moedas de troca. Entre 1985 e 1989, o presidente concedeu 632 canais FM e 314 AM. Deputados da bancada evangélica receberam sete concessões de rádios e duas de TV.

Em 2005, com uma grande emissora de TV nas mãos, a Universal fundou o Partido Republicano Brasileiro. Entre seus filiados, estava o então vice-presidente da República de Lula, o empresário José de Alencar.

As informações acima estão no livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso. Mostram a gênese de um fenômeno que viria a ajudar a fortalecer algo que, sem ser divino ou diabólico, manifesta-se como uma das piores formas da maldade humana: o fascismo.

Leia também: Fé e Fuzil: lições sobre hegemonia pentecostal

20 de fevereiro de 2024

Sionismo e Apartheid irmanados

Desmond Tutu ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 1984 por sua luta contra o Apartheid na África do Sul. Em agosto de 2009, ele afirmou: "O Ocidente se envergonha do Holocausto, com razão, mas quem paga por isso? Os palestinos estão pagando".

Em junho de 2015, Tutu repetiu a dose:

Nós, sul-africanos, sofremos décadas de apartheid e podemos reconhecer isso em outros lugares. Eu, pessoalmente, testemunhei a realidade de apartheid que Israel criou dentro de suas fronteiras e nos territórios palestinos ocupados.

Mas muito antes, em 1987, um israelense já havia chegado a essa conclusão. Militante do movimento por direitos civis, Uri Davis escreveu um livro cujo título é autoexplicativo: “Israel: An Apartheid State”.

E, em 2006, o ex-presidente estadunidense Jimmy Carter em seu livro “Palestine: Peace not Apartheid”, definiu a situação na Palestina como:

... um sistema de apartheid, com dois povos ocupando a mesma terra, mas completamente separados uns dos outros, com os israelenses totalmente dominantes e com extrema violência, privando os palestinos de seus direitos humanos básicos.

Há quem diga, com razão, que foi o sionismo que inspirou o nazismo. No caso da relação entre os apartheids sul-africano e israelense é difícil afirmar algo parecido. Mas o regime segregacionista da África do Sul foi implantado em 1948. No mesmo ano, aconteceu a "nakba", que em árabe quer dizer "catástrofe". A palavra refere-se à expulsão de 750 mil palestinos de seus territórios para dar lugar ao Estado de Israel.

Assim, o que é possível concluir, com certeza, sobre os dois regimes é que ambos se irmanam nas implementação de políticas estatais genocidas.

Leia também: O sionismo inspirando o nazismo

19 de fevereiro de 2024

O sionismo inspirando o nazismo

O “Jüdische Rundschau” foi um jornal publicado em Berlim de 1902 até 1938, como órgão da Federação Sionista da Alemanha. É sobre ele o trecho abaixo, retirado do livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo:

Nos primeiros dias de abril de 1933, mais de oito anos antes de as autoridades do Reich terem tornado obrigatório o uso da estrela amarela pela população judaica, um artigo assinado pelo chefe de redação do “Jüdische Rundschau” apelara para que os judeus tomassem eles próprios esta iniciativa, mostrando a vontade de se excluírem da sociedade germânica. Para que progredisse o estabelecimento na Palestina era indispensável que os judeus da diáspora se sentissem renegados pelos países onde haviam nascido.

Segundo Bernardo, em meados de 1939, vários meses depois do início da mais aterrorizante onda de antissemitismo na Europa, Ben-Gurion, sionista e futuro primeiro-ministro do Estado de Israel, declarou numa sessão a portas fechadas da Agência Judaica da Palestina: “Se eu soubesse que todas as crianças judias europeias poderiam ser salvas graças a sua transferência para a Grã-Bretanha e só metade poderia ser salva através da ida delas para a Palestina, eu escolheria a última solução”.

Não à toa, o professor da universidade de Dresden, Victor Klemperer, denunciou o parentesco e os pontos em comum entre o sionismo e o nazismo. Alemão, de família judia, Klemperer foi muito perseguido pelo antissemitismo germânico. Mas ao se referir ao fundador do sionismo, ele não teve dúvidas em afirmar: “A doutrina da raça de Theodor Herzl é a fonte dos nazistas. São eles que copiam o sionismo, não o contrário”.

Leia também: O racismo sionista instrumentaliza o racismo antissemita

9 de fevereiro de 2024

O carnaval como celebração da resistência

Em 1988, a Mangueira desfilou com o enredo “Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão?”. Naquele ano completava-se o centenário da Abolição e a escola questionava se os negros estavam realmente livres da escravidão. O samba de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho dizia:

...a Lei Áurea tão sonhada / Há tanto tempo assinada / Não foi o fim da escravidão / Hoje dentro da realidade / Onde está a liberdade / Onde está que ninguém viu

(...)

Pergunte ao Criador / Quem pintou esta aquarela / Livre do açoite da senzala / Preso na miséria da favela

No mesmo ano, a Unidos de Vila Isabel, trouxe o samba “Kizomba, Festa da Raça”. A letra de Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila não deixou de lembrar a resistência negra, a rica herança africana, mas enfatizou seu caráter de festa e celebração:

Zumbi valeu / Hoje a Vila é Kizomba / É batuque, canto e dança / Jogo e Maracatu

(...)

Sarcedote ergue a taça / Convocando toda a massa / Nesse evento que congrassa / Gente de todas as raças / Numa mesma emoção

As duas escolas levantaram as arquibancadas e empolgaram a avenida. Na apuração, a votação foi apertada, com a Vila sendo campeã por apenas um ponto de diferença.

Mas o mais importante foi demonstrar em plena Sapucaí que não pode haver oposição entre festa e luta. Ou melhor, que não há resistência popular que permaneça sem que seja 
celebrada constantemente.


Bom carnaval e boas batalhas. As de confete e as outras!

Leia também: Salve a carnavalesca e milenar resistência popular!

8 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: lições sobre hegemonia pentecostal

O movimento social está dizendo que o mundo está acabando, que o fascismo está tomando conta, uma série de desgraças. Mas o pessoal da favela já é doutor em desgraça, ele não precisa ouvir mais essas. Já os pastores estão lá, dizendo para o desgraçado que ele é tudo pra Jesus. Se eu estou numa situação de abandono, eu me agarro.

As palavras acima são do dirigente da Central Única das Favelas (Cufa), Preto Zezé. Estão no livro de Bruno Paes Manso “A fé e o fuzil”. Organizações como a Cufa, lembra ele, são moldadas pelos valores da era pentecostal, ligados ao empreendedorismo.

Os evangélicos pentecostais ofereciam algo que outras estruturas de poder seculares, criadas para produzir controle e ordem, não conseguiam, afirma o autor. Isso ocorria, em primeiro lugar, pela força de suas mensagens. As pessoas as obedeciam porque acreditavam nas explicações, seguiam suas regras e mudavam de comportamento porque queriam ser recompensadas por isso.

Como a competição com os mais ricos era inglória, o crime surgia como opção para os revoltados e cínicos. Já a crença em um poder divino podia favorecer o amor-próprio e trazer satisfação pessoal. Os pentecostais também conseguiram criar uma poderosa estrutura de comunicação, diz o autor.

Quanto maior o alcance da mensagem, menos exótica ela se tornava, e conforme deixava de ser estranha ao senso comum, mais normalizada e mais adeptos conquistava. Templos surgiam com a mesma agilidade que botecos e biroscas, tornando-se presença inseparável do ambiente das favelas, conclui Manso.

Nesses poucos parágrafos, muitas lições sobre disputa de hegemonia, ainda que orientada por valores conservadores e neoliberais.

Leia também: Fé e fuzil: o sagrado e a luta de classes

7 de fevereiro de 2024

O Pravda enganando a perseguição czarista

No centenário da morte de Lênin, importante lembrar uma atividade que ele considerava fundamental para a construção de um partido revolucionário: o jornalismo militante.

Mas sob a ditadura czarista, publicar um diário proletário exigia muita astúcia. O relato abaixo está no artigo “Lenin’s Pravda”, de Tony Cliff, e refere-se ao período de 1912 a 1914:

O regulamento de imprensa da época exigia que os três primeiros exemplares de cada edição fossem enviados à censura. Os editores do Pravda tentavam ganhar o máximo de tempo possível entre o envio material e a muito provável chegada da polícia à gráfica. A lei não especificava limite de tempo máximo para o deslocamento entre a gráfica e a polícia. Assim, a tarefa diária de entregar os exemplares foi confiada a um trabalhador de 70 anos, cuja idade avançada era pretexto para a lentidão com que chegava ao seu destino. Depois de fazer sua entrega, o portador permanecia no escritório, fingindo descansar, mas observando tudo. Se depois de ler o Pravda, o inspetor passasse a examinar outro jornal, o emissário encerrava sua missão. Mas quando o censor telefonava para o distrito policial da jurisdição em que ficava a sede do jornal, o entregador saía rapidamente e chamava um táxi para avisar vigias que se postavam nos arredores da gráfica. Uma vez dado o alarme, todos começavam a trabalhar para retirar o máximo possível de exemplares. Quando a polícia chegava, a maior parte da edição já havia desaparecido, sobrando apenas uma quantidade mínima para que a manobra não fosse facilmente descoberta.

Não há movimento revolucionário, sem muita criatividade subversiva.

Leia também: Pravda: como fazer jornalismo revolucionário

6 de fevereiro de 2024

Fé e fuzil: o sagrado e a luta de classes

Com a chegada dos pentecostais à arena política no início do século, o debate passou a girar em torno dos costumes que, teoricamente, numa república democrática, deveriam ficar restritas ao universo privado, diz Bruno Paes Manso, em seu livro “A fé e o fuzil”.

Os temas morais ganharam destaque. As leituras da Bíblia e não os debates técnicos indicavam o caminho sobre políticas públicas e os rumos do país. Nesse sentido, o que aconteceria se os pentecostais se tornassem a maioria do eleitorado? Uma guerra santa? Não necessariamente.

Pentecostalismo não é sinônimo de alienação ou de fanatismo, afirma Manso. Marina Silva foi senadora, deputada federal e ministra de Estado. Apesar de ser missionária da Assembleia de Deus, sempre evitou levar suas crenças para o debate público. Manteve um diálogo ecumênico com indígenas, quilombolas e ribeirinhos em defesa de causas comuns. Nas três eleições presidenciais que disputou, entre 2010 e 2022, nunca usou a religião para ganhar votos, ressalta o autor.

Anthony Garotinho foi o primeiro candidato à Presidência a ser apoiado pelos evangélicos. Apesar da boa votação, não chegou ao segundo turno. Os governos Lula e Dilma receberam o apoio dos evangélicos nos partidos do centrão. A eleição de Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, para a prefeitura do Rio foi um primeiro sinal de alerta.

Depois, Bolsonaro recebeu sólido apoio das cúpulas evangélicas. Pouco importava que fosse um dos políticos mais infames da história brasileira. O “sagrado” sempre esteve em disputa nas lutas pelo poder. Ultimamente, inclinando-se fortemente à direita.

A luta de classes escreve reto por linhas tortas ou vice-versa.

Leia também: Fé e fuzil: o Jesus pacifista cancelado

5 de fevereiro de 2024

“O Corte”: eliminando a concorrência, literalmente

O filme “O Corte”, de 2005, poderia servir como uma espécie de metáfora dos tempos neoliberais.

Trata-se de uma obra do cineasta grego Costa-Gavras. Tem como protagonista Bruno Davert, que se vê demitido após 15 anos trabalhando como engenheiro de produção. Provavelmente, foi descartado graças às técnicas que ele mesmo ajudou a implantar visando eliminar custos com força de trabalho para seus patrões.

No início das férias forçadas, Davert acredita que logo encontrará seu lugar no mercado de trabalho. Mas após dois anos de desemprego, começa a entrar em depressão e a ter problemas com a família. Resolve reagir. Ao disputar pela enésima vez uma vaga em sua especialidade, elabora um plano mirabolante. Abre uma empresa de fachada para recrutamento de profissionais para o posto que ele pretende ocupar. Desse modo, atrai seus concorrentes e os submete a uma avaliação técnica. Em seguida, começa a matar aqueles que apresentavam qualificação suficiente para desbancá-lo na competição.

Apesar do caráter macabro dos métodos do protagonista, a produção é uma comédia irônica. Afinal, se o neoliberalismo ensina que a concorrência selvagem é um dado natural da sociedade, por que os indivíduos não deveriam lançar mão de todos os meios possíveis para alcançar seus objetivos?

Não cabe revelar o desfecho do filme, não porque isso teria um efeito estraga-prazer. Mas porque não há spoiler possível quando o final é óbvio. Desde bem antes de 2005, passando pela crise iniciada em 2008, já sabemos muito bem como tudo isso vai acabar se continuar prevalecendo a racionalidade capitalista em sua fase neoliberal.

Leia também: Contra o neoliberalismo, outra razão do mundo

2 de fevereiro de 2024

Pravda: como fazer jornalismo revolucionário

Continuamos a destacar algumas informações retiradas do artigo “Lenin’s Pravda”, de Tony Cliff, sobre o Pravda, jornal do partido bolchevique.

Para escapar às perseguições da ditadura czarista, o jornal nomeava editores nominais que iam para a prisão no lugar dos editores efetivos. Eram aproximadamente quarenta militantes, muitos deles quase analfabetos. Nos primeiros anos de existência do Pravda, eles passaram muitos meses na prisão.

Metade dos exemplares era vendida nas ruas e metade nas fábricas. Nas grandes empresas de São Petersburgo, cada departamento tinha um responsável que distribuía o jornal, arrecadava recursos e mantinha contato com os editores. A distribuição do Pravda fora da cidade acontecia por meio de seis mil assinaturas postais, mas distribuí-las era complicado. Os exemplares eram enviados a cinco ou seis agências de correio diferentes, que eram trocadas diariamente para despistar a polícia. Além disso, pacotes do Pravda eram entregues às províncias por diversas rotas complexas. Membros do partido ou simpatizantes que trabalhavam nas ferrovias jogavam os fardos ao longo da rota para serem recolhidos por outros integrantes.

Eram cerca de 40 mil durante a semana e 60 mil aos sábados. Números impressionantes, especialmente porque o partido era ilegal. No entanto, Lênin escreveu um artigo em abril de 1914, dizendo:

Precisamos distribuir três, quatro, cinco vezes mais exemplares. Publicar um suplemento sindical e ter representantes de todos os sindicatos e grupos no conselho editorial. Lançar suplementos regionais (Moscou, Urais, Caucasianos, Bálticos, Ucranianos)...

Mas uma de suas maiores preocupações era garantir a participação regular dos trabalhadores no trabalho editorial.

Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário, dizia Lênin. Sem jornalismo revolucionário também não.

Leia também: Jornalismo revolucionário: os oito nomes do Pravda

1 de fevereiro de 2024

Fé e fuzil: o Jesus pacifista cancelado

Em meio ao caos violento da vida urbana nacional, uma leitura belicosa da Bíblia justifica o tratamento truculento das contradições e problemas sociais. É o que mostra Bruno Paes Manso, em seu livro “A fé e o fuzil”.

Do Velho Testamento emergia a autoridade superior, infinita, onipresente, onisciente, que criou o universo e estabeleceu uma série de regras a serem obedecidas pelos descendentes de Abraão e do povo de Israel, afirma o autor.

A aliança divina entre o povo de Deus e seu criador garantia o triunfo dos que obedeciam e o castigo aos que desacreditavam. Deuteronômio 32,41-42 é particularmente explícito: “Embriagarei minhas flechas com sangue e minha espada devorará a carne, sangue dos mortos e cativos, das cabeças cabeludas do inimigo.”

O episódio bíblico da invasão de Jericó por Josué costuma ser muito citada. É nele que Deus autoriza o assassinato de velhos e crianças para poder governar por intermédio de reis e profetas comprometidos com suas leis.

O apóstolo Paulo instrui os crentes a permanecer em estado de alerta contra o inimigo que nos afasta de Jesus. O inimigo interno, dentro de nós, mas também o externo.

As passagens bíblicas também podem servir para justificar as execuções sumárias. Em Êxodo 22,1: “Se um ladrão for surpreendido arrombando um muro, e sendo ferido morrer, quem o feriu não será culpado do sangue”.

Não à toa, as bancadas da Bala e da Bíblia são aliadas permanentes no Congresso Nacional. Integraram os mesmos partidos do Centrão que apoiaram Bolsonaro.

O Jesus fraterno e pacifista da Teologia da Libertação foi silenciado e cancelado, conclui Manso.

Leia também: Fé e Fuzil: a Teologia da Libertação contra a ditadura