Doses maiores

30 de agosto de 2019

Anistia: outro aniversário de uma lei muito podre

“Deveríamos ter forçado um pedido de desculpas dos militares”, diz José Genoino em matéria da Folha, publicada em 28/08/2019. Esta data marcava os 40 anos de aprovação da Lei da Anistia.

Porém, complementa o ex-dirigente petista, “foi melhor para o país não ter revisado a Lei da Anistia”. Palavras saídas da boca de alguém que foi preso e torturado pelos carrascos da ditadura.

Muito provavelmente, seja por estes e outros equívocos que o país esteja sob um governo dominado, não por aqueles que nunca pediram desculpas, mas por quem exige parabéns e aplausos pelos crimes que cometeram.

Não só admitem como se orgulham da tortura, assassinato e “desaparecimentos” de centenas de pessoas.

Mas pra encurtar a conversa, que tal lembrar a pílula A podre lei da Anistia, de novembro de 2011? Ela trazia o rock “Anistia”, dos Garotos Podres. A música lançada em 1988, denunciava o perdão que os militares concederam a si mesmos. Eis a letra:

Anistia?

Não queremos anistia
Aos torturadores
Não queremos que os assassinos
Fiquem impunes

Amordaçaram e torturaram
Toda uma nação
Nos deixaram órfãos
De uma mãe pátria

Como poderíamos
Perdoá-los
Se os cadáveres
Ainda estão fedendo

E as suas mãos
Ainda estão sujas de sangue
Sangue de uma geração
Sangue de toda uma nação

Para ouvir, clique aqui.

A pílula que trazia esta letra remetia a outra, de abril de 2011. Seu título era Bolsonaro, muito atual.

29 de agosto de 2019

Entre Bolsonaro e a governabilidade do apocalipse

“No conteúdo, a postura está correta, mas precisa melhorar na forma”. A frase é de José Roriz Coelho, vice-presidente da Fiesp, sobre o governo Bolsonaro. Está na coluna de Joana Cunha, publicada na Folha, em 27/08/2019.

E as queimadas? A colunista apurou que dirigentes da poderosa entidade patronal paulista consideram o desempenho de Bolsonaro na crise ambiental “bem-sucedido”. Afinal, disseram, “Emmanuel Macron ficou isolado na tentativa de atrapalhar o acordo UE-Mercosul”.

Enquanto isso, a coluna de Nelson de Sá, publicada em 28/08/2019, reproduz trecho de editorial do Wall Street Journal: “Para salvar Amazônia, é preciso vender estatais”. Afinal, diz o texto, “abrir a economia fará mais para proteger a floresta do que fizeram os governos socialistas antes de Mr. Bolsonaro”.

“Governos socialistas”. Não, não é Olavo de Carvalho delirando. É um dos jornais mais influentes do mundo.

Aqui, a grande imprensa andou mais crítica. Mas nada que a aprovação definitiva da Reforma da Previdência não resolva. Além disso, há sempre a possibilidade de “parlamentarizar” esse governo bisonho.

Ou seja, quando se trata de um governo de direita, mesmo que extremista, a paciência dos poderosos é quase infinita.

O que está muito longe de serem infinitas são as chances de sobrevivência para a enorme maioria da humanidade. Do aquecimento global ao caos social, o abismo se aproxima rapidamente.

Em resposta, a esquerda gosta de gritar: “Socialismo ou barbárie!”. Mas muitos de nós insistem em buscar uma solução intermediária inexistente. Uma espécie de “governabilidade” em meio ao apocalipse.

Diferente de nós, a direita leva essa escolha muito a sério. Como mostra o Wall Street Journal, socialismo, jamais.

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28 de agosto de 2019

O ônibus 693 e o Uber aéreo

Em junho passado, o The Intercept-Brasil trouxe uma matéria inusitada sobre grupos de WhatsApp. Trata-se de uma reportagem de Felipe Fagundes.

Em tom bem-humorado, o repórter descreve como foi apresentado ao “conceito de grupo do WhatsApp do ônibus”:

Isso mesmo que você acabou de ler. Acho que todo mundo faz parte de um grupo da família, dos amigos e do trabalho, mas fiquei bastante intrigado com esse novo tipo. Sim, era exatamente isso: um grupo com todas as pessoas que pegam o 693, em todos os horários, incluindo alguns motoristas e cobradores.

Acontece que o tal ônibus circula com intervalos enormes e incertos por seu itinerário carioca. Para enfrentar essa situação, o grupo funciona do seguinte modo:

1) os usuários perguntam onde o ônibus está e quem está nele responde – mandam localização e dá até para se programar antes de sair de casa, 2) os passageiros informam se o ônibus está cheio, se tem lugar pra sentar, quem é o motorista, 3) pessoas atrasadas podem implorar para o motorista ir mais devagar para dar tempo dela embarcar...

A reportagem acaba sendo um oásis no árido terreno das trocas de mensagens virtuais. Principalmente, em tempos de Vaza-Jato e circulação generalizada de insultos pela rede.

Por outro lado, deveríamos perguntar que porcaria de transporte público é esse, que obriga a população a fazer essa ginástica toda para ser utilizado?

Bom, são os tempos neoliberais, que impõem a adoção de soluções paroquiais para problemas metropolitanos. Cada um por si, ou, no máximo, por seu pequeno grupo de zap.

Enquanto isso, alguns pouco bacanas já contam com o “ubercóptero”.

27 de agosto de 2019

Privacidade hackeada, democracia comprada

Está disponível no Netflix o documentário “Privacidade hackeada”, sobre a empresa Cambridge Analytica, que ficou famosa por trabalhar para as campanhas de Donald Trump e do Brexit, pela saída do Reino Unido da União Europeia.

A especialidade da empresa era lucrar utilizando os dados que muitos milhões de pessoas deixam nas redes virtuais. Mas não haveria Cambridge sem o Facebook, que era, na prática, sua única fonte de informações.

Depois de muitas denúncias envolvendo a apropriação desautorizada de informações pessoais, a Cambridge fechou. Já o Facebook...

Mas o documentário mostra um episódio que não envolve diretamente a manipulação cibernética.

Em 2013, uma eleição em Trindade e Tobago opunha os dois principais partidos do país. O eleitorado de um era majoritariamente negro, o do outro, quase todo de ascendência indiana.

A Cambridge propôs ao partido “indiano” uma campanha com o slogan “Do So", algo como “Não vou”, em referência ao ato de votar. Era um chamado à abstenção eleitoral, mas voltado para o eleitorado jovem.

A campanha realmente foi um sucesso entre os jovens. Mas só alcançou seu objetivo junto à juventude negra. Acontece que o comportamento dos jovens é muito mais controlado nas famílias indianas do que nas negras.

Enquanto os jovens negros mantiveram sua postura de abstenção, muitos de seus pares indianos, pressionados pelos pais, compareceram às urnas em número suficiente para dar a vitória ao cliente da Cambridge.

É mais um caso em que o poder econômico promove despolitização e alienação para vencer.

“Privacidade hackeada” poderia ser só o título do mais recente capítulo da velha e conhecida série “Democracia comprada”.

26 de agosto de 2019

Aquecimento global: a fuga dos bilionários

O mundo tem apresentado temperaturas cada vez mais altas ao longo do tempo, sendo que a atual década tem batido todos os recordes das décadas anteriores. O aquecimento global é uma realidade inquestionável. Os 6 anos mais quentes do Antropoceno aconteceram entre 2014 e 2019.

Assim começa o artigo de José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE.

Alves avalia que essa situação, “no longo prazo, pode ser o apocalipse para todos os seres vivos do Planeta, incluindo a espécie que é culpada e vítima deste processo: a humanidade”.

Se depender do governo brasileiro e seus parceiros prioritários pelo mundo, a previsão certamente deve se confirmar.

Enquanto isso, reportagem publicada pelo site PijamaSurf, informa que muitos “bilionários estão se preparando para uma iminente catástrofe, provavelmente associada à mudança climática e à superpopulação”. Para se proteger, estão construindo bunkers de luxo.  

O executivo de uma das empresas responsáveis por esse tipo de construção, diz que a demanda aumentou 700%. Sua clientela? O 1% de bilionários do mundo. Um deles é Bill Gates, destaca a matéria.

As instalações contam com grande conforto, incluindo piscinas e jardins subterrâneos. Algumas podem fornecer mais de um ano de comida por morador e resistir a terremotos.

Há também os bunkers comunitários. Trata-se de “fortalezas nas quais é possível compartilhar a vida com humanos similares, bilionários e atemorizados pelo fim do mundo”.

Portanto, não é verdade que a humanidade seja igualmente culpada e vítima do “apocalipse” que nos ameaça. As vítimas estão no lado da grande maioria explorada. Os culpados são os exploradores, que preparam sua fuga covarde.

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23 de agosto de 2019

O que queimam as queimadas?

Em 08/08/2019, latifundiários do sudoeste do Pará anunciaram o “Dia do Fogo”. Dias depois, queimadas começaram a arrasar a floresta amazônica.

Em 25/08/2025, o presidente brasileiro recebe um ultimato: se não cessar o "desmatamento destrutivo" em uma semana, os Estados Unidos iniciarão uma intervenção militar para destruir a infraestrutura estratégica brasileira.

Esse último é um cenário fictício, claro. Está num artigo publicado pelo professor de Relações Internacionais de Harvard, Stephen M. Walt. Mais detalhes estão na reportagem publicada pelo portal da BBC-Brasil.

O objetivo de Walt é discutir a seguinte questão:

Os países têm direito - ou até obrigação - de intervir numa nação estrangeira para impedi-la de causar dano irreversível e potencialmente catastrófico ao meio ambiente?

Ele mesmo admite que se isso fosse possível, o Brasil nem seria candidato a sofrer a primeira intervenção. Estados Unidos e China, por exemplo, emitem muito mais gases poluentes que nós.

Além disso, diz Walt, não somos uma grande potência. Não seria necessário poder militar “para destruir a infraestrutura estratégica brasileira”. Bastariam sanções econômicas.

No mundo real, o presidente francês já deu alguns avisos. Como a França não é conhecida por seu grande poderio bélico, mais provável que Macron proponha retaliações econômicas contra nós.

Trump ainda não se pronunciou. Até porque queimar florestas não preocupa quem não acredita em aquecimento global.

E nada disso deve estar aborrecendo muito Bolsonaro. É mais uma crise a alimentar seu modo de governar.

O grande empresariado é que deveria estar preocupado com a possível perda de mercado internacional. Talvez sim, talvez não. Afinal, não são eles que sofrerão com mais desemprego e pobreza.

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22 de agosto de 2019

Desigualdade brasileira: sem vagas no hotel de luxo

Em reportagem publicada em19/08/2019, a Folha revela: “Super-ricos no Brasil lideram concentração de renda global”.

A matéria cita o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris. Segundo o levantamento, o Brasil só perde em concentração de renda para o Qatar.

Como o país árabe é governado por uma dinastia desde meados do século 19, o Brasil seria, portanto, o mais desigual entre os países “democráticos”.

E, aí, um problema antigo se torna gigantesco na cabeça de milhões de brasileiros: Pra que serve a democracia, então?

Entre os muitos dados importantes divulgados, a matéria informa, por exemplo, que no início dos anos 2000, os miseráveis eram 28% da população. Hoje, são 11,2% do total. Porém, desde 2001:

...enquanto a metade mais pobre do Brasil obteve um aumento de 71,5% em sua renda, e os 10% mais ricos, de 60%, a classe média (os 40% "do meio") viu seus rendimentos crescerem menos: 44%.

A reportagem ouviu Fernando Burgos, professor da escola de administração da FGV-SP. Ele considera que esses setores “do meio” passaram por uma "porta giratória" da desigualdade brasileira:

É como se eles tivessem entrado por essa porta, visto o saguão do hotel e sentido o ar condicionado. Só que a porta continuou girando e eles acabaram saindo novamente.

Do saguão refrigerado de volta ao calor escaldante das ruas, grande parte dessa massa de frustrados respondeu àquela pergunta sobre a utilidade da democracia a seu modo: “Abaixo as liberdades, os direitos, a democracia!”.

Resposta extremamente equivocada, mas será assim sempre que apostarmos na boa vontade dos hóspedes permanentes daquele hotel de luxo.

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21 de agosto de 2019

Esperando, e preparando, as próximas traições

Traições pertencem ao campo da moral. A não ser quando acabam em violência. Mas, aí, tornam-se detalhes de algo muito mais grave.

Traições na política são banais. A não ser que envolvam a luta de classes. Nesse caso, podem ter consequências maiores e generalizadas. Ainda assim, continuam a ser só um pouco mais que detalhes.

Quando Lula assumiu o primeiro governo, anunciou como sua primeira grande medida uma reforma da previdência. “Traição”, gritaram vários setores da esquerda.

Afinal, desde o governo Collor, sabíamos que esse tipo de proposta sempre envolveu a eliminação de direitos para a maioria pobre e trabalhadora.

Mas a campanha eleitoral petista não permitia maiores ilusões. A promessa de “respeitar os contratos” ou de não arriscar um “cavalo-de-pau econômico” sinalizavam perfeitamente o que pretendia o futuro governo.

Portanto, na esquerda, só se sentiram atraiçoados os mais desavisados. Menos que traição, tratava-se de expectativas frustradas para além do esperado.

Mas o mesmo pode-se dizer dos dirigentes petistas quando, anos depois, viriam a se queixar da deslealdade de seus aliados ao sofrerem um golpe articulado pelo próprio vice-presidente.

O que representam Dilma deposta, Lula trancafiado e Bolsonaro eleito? Traição? Somente para os mais desavisados. É luta de classes, mesmo.

Mas parece que boa parte dos petistas não aprendeu lição alguma. Seu horizonte continua sendo a volta ao poder pelas vias conciliatórias de sempre. E buscando o apoio de muitos dos que os apunhalaram pelas costas.

Quanto a estes, só lhes restará repetir os famosos versos de Chico Buarque. Olhos nos olhos, dirão mansamente a quem já se cansaram de chifrar: “Te perdoo por te trair”.

20 de agosto de 2019

Um não radical à unidade em torno da rendição

O filósofo e músico Vladimir Safatle tem se mostrado uma das poucas vozes lúcidas e radicais da esquerda.

Em artigo publicado no portal El País, em 31/07/2019, após condenar o “silêncio tumular” da oposição diante da aprovação da Reforma da Previdência, ele afirma que esse tipo de acontecimento mostra que:

Há certas situações nas quais é necessário dividir para crescer. A oposição brasileira até agora sonhou com uma união em cima do nada. Ela não definiu as rupturas que quer tomar para si, o horizonte de suas novas lutas. Tentará ela ser, mais uma vez, o “good cop” do capitalismo brasileiro ou estará enfim disposta a vocalizar rupturas até agora não tentadas? Será ela o arauto do retorno a uma democracia que nunca existiu entre nós ou assumirá enfim o desafio de romper e criar o que até agora não existiu? Pregará ela o evangelho da “integração para todos” e do respeito a uma emancipação de indivíduos proprietários ou estará disposta a ser a força de desintegração que nos levará para fora do universo de propriedades? Essas divisões podem criar novas alianças. Por isto, elas podem nos fazer crescer.

Ou seja, à ruptura extremista e fanática promovida pelas classes dominantes nacionais devemos moderar nossas posições? Vamos abandonar de vez nossa crítica implacável ao capitalismo, seu sistema de dominação assassino e sua vocação econômica destrutiva?

Como reagiremos ao turbilhão de sujeira a que foi arrastada a esquerda pelos setores dirigentes petistas? Participando de seus projetos políticos, que incluem grande parte do lixo político nacional?

A resposta a tudo isso é um não radical, mas potencialmente criativo.

Leia também: Como faz falta uma boa guilhotina

19 de agosto de 2019

Quando a disputa China x Estados Unidos pode ser mero detalhe

Problemas sérios rondam a economia mundial. Mas não se trata apenas da possível guerra comercial entre China e Estados Unidos. O maior alerta surgiu no interior da economia americana.

Houve no mercado de juros estadunidense um estranho fenômeno envolvendo títulos do tesouro daquele país. Papéis com resgate em 10 anos passaram a pagar menos juros que aqueles com vencimento em 2 anos.

O susto deve-se ao fato de que esse tipo de “inversão de rendimentos” antecedeu todas as recessões mundiais do período pós-guerra. Todas.

Além disso, nunca se praticaram tantas taxas de juros negativas nas economias centrais. Ou seja, nesses lugares os capitalistas vêm pagando para manter seus recursos nos bancos.

Eles preferem perder parte de seu dinheiro investindo em papéis considerados confiáveis a perder todo ele apostando em títulos que pagam juros elevados, mas que podem transformar suas fortunas em pó, da noite para o dia.

São movimentações típicas de quem sente cheiro de quebradeira no ar. E o fedor vem de onde? Do desperdício promovido pelo grande capital com os enormes recursos financeiros que os bancos centrais colocaram a sua disposição desde a crise de 2008.

A maior parte dessa montanha de dinheiro transformou-se em uma dívida que chega hoje a US$ 325 trilhões. Ou mais de três vezes o valor da produção econômica mundial. Enquanto isso, pouco foi feito para criar empregos e renda suficientes para reaquecer a economia global.

A disputa entre chineses e americanos é muito perigosa. Mas é só parte de um cenário cada vez mais parecido com um apocalipse econômico.

Para mais detalhes, clique aqui e aqui.

Leia também: Novo surto da crise mundial no horizonte

13 de agosto de 2019

A coalizão PSDB/PCC

Recentemente, foi divulgado o vazamento de uma troca de mensagens eletrônicas em que supostos integrantes do PCC manifestam sua preferência por governos do PT.

É mais um capítulo da tenebrosa guerra de desinformação que tomou conta do país.

Afinal, o PCC cresceu e se fortaleceu em São Paulo, sob governos tucanos. Dizem até que o baixo índice de homicídios nas ruas paulistas ocorre graças às lideranças presidiárias e não à ação da Secretaria de Segurança. Portanto, as duas siglas que parecem formar uma coalizão bastante sólida e antiga são PCC e PSDB.

Em 09/08/2019, o Portal Ponte publicou entrevista com Camila Nunes Dias. Socióloga, ela é uma das principais pesquisadoras sobre PCC no Brasil.

Em um trecho, Camila explica porque a facção paulista continua forte, apesar das muitas e espetaculosas operações para desestruturá-la:

Nessas décadas, a cada operação ouvimos “agora desestruturou, quebrou as pernas do PCC”. Vemos que desestrutura parcialmente algumas delas, mas os grupos vêm demonstrando uma capacidade muito grande de se recompor. Infelizmente, como só se investe na repressão, tudo aquilo que fortalece o recrutamento continua funcionando muito bem. É mais uma questão de reorganização do crime. Pessoas para ocuparem o lugar não faltam, não faltam motivações para isso. Não temos uma política que dê a jovens, especialmente em situação de vulnerabilidade, outras oportunidades e possibilidades na vida, como inserção no mercado de trabalho, por exemplo. A cada vez que se faz uma operação, é só mais um gelo sendo enxugado.

Não faltam motivações para a vida criminosa, diz a entrevistada. Muitas delas, provocadas por políticas governamentais tão ou mais violentas e delinquentes.

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12 de agosto de 2019

Edir Macedo dobra sua aposta no caos social

“Igreja Universal expande ações sociais e ocupa espaços ignorados pelo poder público”. Este é o título de reportagem de Laura Mattos, publicada na Folha em 10/08/2019.

A matéria destaca um programa para atender caminhoneiros, criado após o movimento de paralisação do setor, ocorrido em 2018. São os “Guardiões da Estrada”. Corte de cabelo, medição da pressão arterial e manicure são alguns dos serviços oferecidos aos motoristas.

Mas o texto também revela que a Universal conta com “257 mil voluntários no país, oferecendo cursos e orientação jurídica ou psicológica, por exemplo”.

Ainda segundo a reportagem, a igreja vem expandindo:

...sua atuação em meio à crise econômica e, em situações de vulnerabilidade social, ocupa espaços negligenciados pelo poder público.

Os outros programas criados em 2018 foram o EVG Night, voltado a prostitutas e travestis, o Grupo Saúde, para familiares de pacientes de hospitais públicos, e o Universal nas Forças Policiais, que atende profissionais da Polícia Militar, Civil, Federal, Rodoviária, Corpo de Bombeiros, agentes penitenciais e Forças Armadas.

Ao todo, segundo a igreja, são 15 projetos, que, em 2018, ano em que a Universal apoiou a candidatura à Presidência de Jair Bolsonaro, atenderam perto de 11 milhões de pessoas no Brasil. No exterior, afirma ter atuado em 92 países, dez a mais do que em 2017, e beneficiado 3 milhões, com a participação de quase 63 mil voluntários.

A Universal apoiou os governos petistas para depois ajudar a derrubá-los. Agora, vê no atual governo o melhor garantidor do caos social que aumenta sua influência popular. Alguém errou feio nisso tudo. E não foi nem Edir Macedo nem Bolsonaro.

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9 de agosto de 2019

A lenda dos cinco macacos e um cacho de banana

Em uma jaula, cinco macacos tentam pegar um cacho de banana pendurado no teto. Para isso, precisam subir numa escada. Porém, cada vez que um dos macacos tenta subir, um jato d’água atinge todos os outros. Logo, sempre que um deles tenta alcançar o cacho, os outros macacos batem nele para evitar o banho. Em certo momento, um dos macacos é substituído. O recém-chegado tenta subir a escada e também é atacado pelos outros. Aos poucos, todos são substituídos. Ficam na jaula apenas macacos que batem uns nos outros sem saber o motivo, já que nenhum deles havia levado o banho d’água.

Esse experimento comportamental é muito conhecido nos meios educacionais e cursos em geral. Já serviu a vários objetivos: treinamentos corporativos, defesa do livre mercado, práticas de autoajuda em geral e até denúncia da alienação capitalista.

Mas o mais interessante é que ele nunca ocorreu. Até onde se sabe, apareceu pela primeira vez no livro “Competindo pelo Futuro”, de Gary Hamel e C. K. Prahalad, de 1994. E teria como base uma experiência realizada pelo psicólogo Gordon R. Stephenson, em 1966, que tem pouco a ver com a versão descrita. Envolveu apenas duas macacas, um utensílio de cozinha, nenhuma escada e jato de ar no lugar do jato d’água...

Apesar disso, a divulgação do experimento continua. Mas, agora, turbinada pela circulação nas redes digitais, ganhou um novo objetivo: o combate às fake news. Ou seja, sempre verifique as fontes.

Mas enquanto for mais interessante adotar a lenda no lugar dos fatos, aqueles cinco macacos continuarão passando fome.

Observação: as fontes do relato acima estão aqui.

8 de agosto de 2019

Vendem nosso ar, roubam nosso sono

Em “O Capital”, Marx chama a força natural proporcionada pela água e pelo ar de “serviço gratuito”. O trecho pressupõe o entendimento de que havia recursos naturais não mercantilizados. Há tempos, já não é assim.

Segundo reportagem de Silvia Scaramuzza, publicada pelo portal “Business Insider Italia”, em 01/08/2019:  

Em Nova York, cada metro quadrado é precioso. Em uma cidade onde falta espaço, só resta ir para cima. Para os construtores de arranha-céus de Nova York, a última fronteira a conquistar é o céu. Como? Comprando o ar inutilizado dos edifícios adjacentes à área onde se pretende construir, apossando-se dos chamados air rights [direitos do ar].

Mas há coisas piores, como mostra Ronaldo Lemos, em sua coluna na Folha de 05/08/2019. O artigo descreve, entre outros produtos tecnológicos, colchões “inteligentes” que:

...monitoram cada movimento, virada ou variação de temperatura do corpo. No momento em que a pessoa está adormecendo, ele aquece. Quando a pessoa adormece, ele diminui um pouco a temperatura, aprofundando assim o ciclo de sono profundo...

Tudo isso para “minerar dados” que permitirão a fabricação dos mais diversos produtos, capazes de gerar muitos lucros para alguns poucos. Dentre os quais, dificilmente, estará o dono do colchão.

Certamente, Marx imaginou que algo assim aconteceria. Afinal, ele foi um dos principais “profetas” da mercantilização de cada aspecto da vida humana pelo capitalismo.

Mas, pelo menos, no caso de Nova York, a operação é um pouco mais transparente que o ar poluído da cidade. Já quanto a nosso sono, trata-se de roubo, mesmo. E cometido, literalmente, na calada da noite.

É de tirar o fôlego. E o sono.

7 de agosto de 2019

Algoritmos e zeros sobrantes

Yuval Harari é autor do best-seller “Sapiens”, entre outros. Em recente entrevista publicada pelo portal Repubblica, ele faz as seguintes considerações:

Hoje todos aqueles que vivem no planeta falam apenas uma língua: esta língua é a matemática. Se você mora na China, na Austrália ou no Brasil, não faz diferença: a língua que domina as instituições, a economia e a política é a matemática e é precisamente ela a linguagem cuja difusão o imperialismo europeu favoreceu em todo o globo.

Da linguagem universal da matemática nasceu a revolução dos algoritmos, talvez comparável à da identificação do primeiro trigo domesticado, que permitiu ao homem, de simples caçador e coletor, tornar-se agricultor.

Pois bem, dizem que foi Alcuarismi, um matemático árabe do século 9, que criou o conceito de algoritmo. Perguntado sobre o valor de um ser humano, ele teria respondido:

Se tem ética, então seu valor é igual a 1. Se ademais é inteligente, lhe agregamos um zero e seu valor será de 10. Se também é rico, adicionaremos outro zero e seu valor será de 100. Se sobretudo é ademais uma bela pessoa, agregaremos outro zero e seu valor será de 1.000. Porém, se perde o 1, que corresponde à ética, perderá todo o seu valor, pois somente lhe sobraram os zeros.

Ora, se ética diz respeito a valores morais, que tipo de moral orienta aqueles que controlam os atuais monopólios produtores de algoritmos?

A julgar pelas distorções preconceituosas de seus algoritmos, sua fome de lucros e impactos negativos no emprego, a moral “universal” que defendem procura reduzir todos nós a não mais que zeros sobrantes.

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Inteligência Artificial e burrice ambiental
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6 de agosto de 2019

O banqueiro cínico. Ou descarado, mesmo

Há quem entenda o conceito de cinismo com o significado de dissimulação maldosa. Uma espécie de hipocrisia. Mas a origem do termo que remonta à Grécia Antiga é praticamente o oposto disso.

Cinismo tem raiz na palavra grega para cão. Segundo os adeptos dessa concepção de mundo, deveríamos viver como nossos amigos caninos, sem ligar para convenções sociais.

Deveríamos ser autênticos, manifestando livremente nossas ideias e desejos. Desprezando comodidades, riqueza, prestígio. Vivendo, enfim, uma vida sem falsidades.

Vamos a um exemplo prático. O presidente do Itaú, Candido Bracher, concedeu entrevista a Josette Goulart, que a publicou na Folha em 30/07/2019.

O título do depoimento destacou o fato de que Bracher não vê como prejudiciais para a aprovação das “reformas” as “declarações polêmicas” de Bolsonaro. Mas é o trecho abaixo que deveria inspirar uma manchete em letras garrafais:

Destacou ainda que o nível elevado de desemprego, hoje na casa de 12%, permite crescimento sem impacto sobre a inflação. “Quando tem fator de produção sobrando tanto, significa que podemos crescer sem pressões inflacionários”, afirmou.

“Isso deixa a situação macroeconômica do Brasil tão boa quanto nunca vi na minha carreira”, disse. Bracher tem experiência no setor financeiro, onde atua há quase 40 anos. “Tudo isso que me faz ser otimista no curto e médio prazo”.

Seria este um bom exemplo de cinismo? Sem dúvida. Principalmente, se o entendermos em seu sentido mais ordinário, como sinônimo de descaramento, desfaçatez, desprezo pelas normas da vida em sociedade.

No caso em questão, mais do que descaramento, talvez se trate de mau-caratismo, mesmo. Aliás, bastante condizente com os terríveis tempos em que vivemos.

5 de agosto de 2019

Derrotar a Reforma da Previdência continua sendo prioridade

“O jogo não acabou”, afirma Eduardo Fagnani em relação à Reforma da Previdência em tramitação no Congresso Nacional. Professor do Instituto de Economia da Unicamp, ele fez esse alerta em recente artigo publicado no portal Plataforma Política Social.

Fagnani lembra que ainda restam três turnos de votação no Congresso. Portanto, temos algum tempo para mobilizações contra a sua aprovação. Mas outro alerta importante trazido pelo texto é a desconstitucionalização de muitos direitos previdenciários, promovida pela proposta. Segundo o artigo:

O texto aprovado é mera compilação de “medidas transitórias” que terão validade até que a verdadeira reforma seja feita por dezenas de leis complementares, cuja aprovação é mais fácil porque não requerem quórum qualificado de 308 votos (Câmara) e 49 votos (Senado) em dois turnos de votação em cada casa. Não é improvável o cenário no qual as regras previdenciárias poderão ser alteradas por leis ordinárias, medidas provisórias e atos administrativos do Ministério da Fazenda.

Dentre os direitos que ficariam sujeitos a maiorias simples e decretos, estão os Benefícios de Prestação Continuada, aqueles envolvendo pessoas com deficiência e os relacionados a atividades perigosas ou insalubres. Auxílio acidente-de-trabalho, auxílio-doença e outros resultantes de incapacidade temporária para o trabalho também estão ameaçados.

Além disso, a Reforma Tributária pretendida pelo governo quer reduzir impostos e contribuições de modo a secar as fontes de custeio da seguridade social. Levar a previdência pública à inanição e torná-la um serviço moribundo para moribundos.

Ou seja, diz o autor, a “reforma da Previdência poderá converter-se em processo continuado”. Portanto, nossa resposta só pode ser um processo igualmente permanente, mas crescente, de resistência a ela.

2 de agosto de 2019

Um novo dilúvio universal à vista

Interessante o artigo “Uma história social da mudança climática”, de Gerardo Honty, recentemente publicado pelo portal Rebelión.

O texto começa dizendo que nos “últimos 400.000 anos, houve quatro períodos glaciais, separados por períodos de 10.000 anos interglaciais”.

Um desses períodos é o Holoceno, no qual vivíamos há até pouco tempo. Nele, “as matas cresceram, a vida prosperou e os homens e mulheres tiveram alimento e um clima acolhedor para se expandir”.

Mas essa bonança também sofreu interrupções. Por exemplo:

Há uns 8.000 anos, o derretimento das geleiras que estavam no lago – que postumamente batizamos de Lago Agassiz – provocou seu derramamento completo nos oceanos, provocando o Dilúvio Universal. O relato de Noé, na Bíblia, de Nuh, no Alcorão, a Epopeia do rei Gilgamesh, de Uruk, a barca de Svayambhuva Manu, na Índia, o mito de Gun Yu, na China, o Mba’e-Megua Guasu guarani e muitas outras tradições no mundo narram a história do ano em que o mar subiu um metro.

Além desta, muitas outras mudanças climáticas são descritas pelo artigo. A diferença é que as atuais, diz Honty, se originam da atividade humana. Antes, a humanidade apenas sofria com as alterações no clima, mas não tinha influência sobre elas. Chegamos ao Antropoceno.

Outra diferença seria o elevado grau de consciência que teríamos desenvolvido sobre nossa responsabilidade quanto aos desequilíbrios climáticos.

O problema é que alguns líderes mundiais e setores empresariais importantes negam essa responsabilidade. Duvidam do aquecimento global e suas consequências cada vez mais trágicas.

Preparam um novo dilúvio universal. E, caso ele ocorra, voltaria a ser encarado como um castigo divino. Bem merecido, aliás.

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