Doses maiores

23 de dezembro de 2021

Papai Noel, porco capitalista

As festas de Natal no Brasil costumam ser tristes. Ou, pelo menos, melancólicas. Se alguém duvida, é só lembrar do cancioneiro popular. Não aquele importado do norte gelado, mas o nascido nos sertões, cidades e litorais marcados pela desigualdade social que frustra os sonhos natalinos de muita gente. Principalmente das crianças.
 
Pra começar, citemos alguns versos do baiano Assis Valente:

Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem


Outros do paulista Adoniran:

Eu me lembro muito bem
Foi numa véspera de Natal
Cheguei em casa
Encontrei minha nega zangada, a criançada chorando
Mesa vazia, não tinha nada

Mas, talvez, devêssemos passar da melancolia à raiva. Como nessas estrofes cometidas pelos Garotos Podres em "homenagem" ao velhinho do Polo Norte:

Papai Noel velho batuta
Rejeita os miseráveis
Eu quero matá-lo
Aquele porco capitalista

Presenteia os ricos
Cospe nos pobres
Presenteia os ricos
Cospe nos pobres

Papai Noel velho batuta
Rejeita os miseráveis
Eu quero matá-lo
Aquele porco capitalista

Presenteia os ricos
Cospe nos pobres
Presenteia os ricos
Cospe nos pobres
Pobres
Pobres

Mas nós vamos sequestrá-lo
E vamos mata-lo
Por que?

Aqui não existe natal
Aqui não existe natal
Aqui não existe natal
Aqui não existe natal
Por que?

Papai Noel velho batuta
Rejeita os miseráveis
Eu quero matá-lo
Aquele porco capitalista

Presenteia os ricos
Cospe nos pobres
Presenteia os ricos
Cospe nos pobres

Apesar disso tudo, que as festas sejam as menos cruéis possíveis. E que no ano que vem por aí, nos livremos de muitos outros velhos batutas!

Leia também:
A família Marx festeja o Natal
Papai Noel não é de esquerda, mas existe!

22 de dezembro de 2021

Menos teorias conspiratórias, mais Marx

No final de sua tese de doutorado, posteriormente transformada no livro “Menos Marx, mais Mises”, Camila Rocha conclui:

A intenção foi apontar para a relevância da atuação de uma militância organizada em diversos grupos políticos e entidades civis durante este processo, o qual culminou na formação de um amálgama ideológico inédito no Brasil: o ultraliberalismo-conservador. Além disso, também procurei chamar a atenção para as continuidades e descontinuidades dos esforços promovidos por tal militância tendo em vista suas conexões com redes formadas por atores que iniciaram suas atividades políticas em décadas anteriores, apoiada no modo como os próprios personagens analisados aqui foram conferindo sentido às suas ações ao longo do tempo a partir de conjunturas políticas específicas, orientando e reorientando suas atividades na sociedade civil e na esfera pública.

À parte o elogiável esforço para entender a “nova direita” brasileira, o excelente trabalho da pesquisadora também pode ajudar a esquerda a rever seus caminhos e escolhas.

O estudo ajuda a nos livrar de teorias da conspiração que atribuem à direita uma óbvia necessidade de nos combater. Que haja manobras conspiratórias, não restam dúvidas. Mas o trabalho de Camila também evidencia que tais conluios estão mergulhados e sofrem contradições resultantes da mesma luta de classes que os explorados e a esquerda travam contra os exploradores e o conjunto da classe dominante. Incluindo seus quadros teóricos, ideológicos e agitadores profissionais.

Trata-se de fazer a disputa de hegemonia na sociedade atravessada pelos dilemas da pobreza, violência, injustiça e alienação e não apenas nas campanhas eleitorais e nos gabinetes e palácios. Ou seja, precisamos de mais Marx. Muito mais.

Leia também: Estrela-do-mar ou hidra de sete cabeças

21 de dezembro de 2021

Estrela-do-mar ou hidra de sete cabeças

Os primeiros think-tanks pró-mercado brasileiros atuavam de forma centralizada, mas a maioria das organizações criadas a partir de 2006 passou a operar de modo mais horizontal e descentralizado.

Em seu livro “Menos Marx, mais Mises”, Camila Rocha explica que esse tipo de funcionamento, “não é sinônimo de falta de profissionalização”. Esses militantes passaram a atuar a partir dos contra-públicos digitais e se profissionalizaram através de cursos de formação política e treinamento oferecidos por organizações norte-americanas, como Atlas Network, Cato, entre outras.

Além disso, diz ela, também passaram a adotar formas de intervenção na esfera pública completamente diferentes das adotadas pelas gerações anteriores, como atos e protestos de rua voltados para a conquista de corações e mentes de pessoas comuns, sedimentando sua atuação para além da internete e da influência sobre formadores de opinião.

Uma das metáforas utilizadas pela direita ultraliberal para explicar esse tipo de atuação era a da estrela-do-mar. Afinal, a estrela-do-mar pode perder um de seus “braços” e não apenas reconstituir outro no lugar, como o “braço” mutilado pode gerar outra estrela-do-mar.

Mas, talvez, a hidra de sete cabeças seja uma metáfora mais adequada. A criatura mitológica tinha o poder de fazer nascer uma nova cabeça no lugar daquela que foi decepada. Mas se matar um monstro assim já é complicado quando se está armardo com uma espada, imagine para quem abriu mão de quase todas as suas armas.

E foi isso o que a esquerda acabou fazendo durante os anos em que esteve no poder. Abandonou, principalmente, o trabalho de base, a independência de classe e a mobilização popular.

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também: A direita ultraliberal vai para as ruas

20 de dezembro de 2021

A direita ultraliberal vai para as ruas

"Vem cá, você acha legal pagar três reais no ônibus? Não! E se eu fizesse aqui uma van e cobrasse um real de vocês? Legal! Só que o Estado não deixa porque é regulado aqui no Rio, sabe o que a gente tem que fazer? Privatizar tudo e criar livre mercado no setor! Êeee!”. Assim a gente trouxe o liberalismo pro dia-a-dia do sujeito.

As palavras acima são de Bernardo Santoro, dirigente do Instituto Liberal do Rio de Janeiro. Aparecem no livro “Menos Marx, mais Mises”, de Camila Machado. Mostram como a extrema-direita neoliberal passou a ir às ruas disposta a disputar a hegemonia junto às grandes massas.

Segundo a autora, desde 2011, esses setores organizavam demonstrações públicas como o “Dia da Liberdade de Impostos”. Também foram oportunistas participando das “Marchas da Maconha” para defender o fim da presença do Estado em qualquer esfera da vida pública.

Estiveram presentes em manifestações contra a corrupção convocadas por entidades como CNBB e OAB. Sempre divulgando suas bandeiras privatizantes.

Nesse período, diz Camila, houve uma adesão quase completa da aliança lulista ao sistema político tradicional, diluindo e escondendo diferenciações ideológicas e programáticas reais no cenário político.

Começava a se desenhar a possibilidade de a direita ultraliberal aparecer como elemento antissistema, mesmo estando a serviço do grande capital.

Durante os protestos de 2013, surgiu o Movimento Brasil Livre. Mas ainda não era o momento para a direita capitalizar os protestos. Tanto é que no final daquele ano, a página do movimento no Facebook foi abandonada por falta de seguidores.

O momento oportuno só aconteceria em 2014.

Continua na próxima pílula.

Leia também: Ultraliberalismo: sem vergonha de aderir ao fascismo

18 de dezembro de 2021

Ultraliberalismo: sem vergonha de aderir ao fascismo

“A partir da redemocratização se dizer de direita passou a ser algo desconfortável”, afirma Camila Machado em seu livro “Menos Marx, mais Mises”.

A vergonha em se afirmar de direita, porém, diz Camila:

...não dizia respeito apenas aos políticos, mas também se estendeu a seus ideólogos, simpatizantes e eleitores. Foi apenas em meio auge do lulismo, entre 2006 e 2010, a partir da atuação de membros de contra-públicos digitais, formados especialmente a partir da rede social Orkut, que aos poucos tal vergonha começou a se dissipar.

Segundo a autora, dois fatores contribuíram para que isso ocorresse. Primeiro, o impacto do escândalo que ficou conhecido como “mensalão”. O segundo, a existência de comunidades digitais nas quais era possível discutir questões polêmicas sob anonimato e se manifestar de modo agressivo contra o governo mais popular do país até então.

Os ultraliberais, assim como os frequentadores das comunidades virtuais de Olavo de Carvalho, não encontravam representatividade em públicos dominantes, uma vez que nestes públicos a defesa do livre-mercado era realizada em grande medida por neoliberais alinhados em maior ou menor grau ao PSDB. E os tucanos eram considerados pelos frequentadores das comunidades ultraliberais do Orkut como sendo de esquerda.

Muitos desses ultraliberais defendiam as propostas do economista austríaco Ludwig Von Mises, adepto da privatização generalizada da vida social, incluindo Banco Central, monopólio da moeda, agências reguladoras e, claro, todos os serviços públicos. Em relação a questões como o direito ao aborto e à união homoafetiva eram favoráveis. Mas em nome do combate ao PT, deixaram de lado essas bandeiras e se juntaram aos fascistas. Sem vergonha nenhuma.

Continua.

Leia também: A direita que considera Geisel socialista

17 de dezembro de 2021

A direita que considera Geisel socialista

“Nós tivemos no governo militar uma orientação muito boa do Castelo Branco, mas o Geisel era socialista”. Esta pérola foi dita por Adolpho Lindenberg, um dos fundadores do movimento Tradição, Família e Propriedade. Está no livro “Menos Marx, mais Mises”, de Camila Rocha.

A frase deixa bem clara a disposição de alguns setores da direita brasileira de ir fundo em seu liberalismo selvagem. Só não haviam encontrado a oportunidade certa durante a ditadura, nem no período imediato posterior a ela.

A fundação do Instituto Liberal de São Paulo foi um marco. Mas, em 1992, o economista Paulo Rabello de Castro e o empresário Thomaz Magalhães fundaram no Rio de Janeiro o Instituto Atlântico. Um de seus principais focos, diz a autora:

...era atingir as classes populares. Para tanto, passaram a ser divulgadas pela organização as ideias de capitalismo popular e privatização popular, ou seja, como os trabalhadores comuns poderiam se beneficiar materialmente do estabelecimento de uma ordem política e econômica orientada para o desenvolvimento do livre-mercado. Desse modo, poucos anos após a fundação da organização, foi estabelecido um convênio estável com a Força Sindical, uma das maiores centrais sindicais do país, por meio do qual foram distribuídas aos trabalhadores, ao longo da década de 1990, mais de um milhão de cartilhas ilustradas pelo cartunista Ziraldo, as quais versavam sobre temas diversos dentro do enfoque do capitalismo popular. Um dos temas principais veiculados pelas cartilhas era a privatização da previdência.

A disputa de hegemonia chegava a um nível mais inteligente e perigoso. O descuido da esquerda nesse campo trouxe as trágicas consequências que estamos vivendo hoje.

Continua.

Leia também: O Komitern neoliberal

16 de dezembro de 2021

O Komitern neoliberal

A expressão “think-tank” teve origem nas salas secretas nas quais eram discutidas estratégias bélicas durante a Segunda Guerra. Por volta da década de 1960, nos Estados Unidos, passou a denominar organizações civis privadas mantidas com doações de pessoas físicas ou jurídicas, que reuniam especialistas e técnicos, normalmente recrutados junto à academia.

Nas últimas décadas, os think-tanks voltados para a defesa do neoliberalismo ganharam grande poder. Principalmente, graças ao patrocínio do grande capital. Os mais importantes dentre eles são o Institute for Humane Studies (IHS) e a Atlas Network, cujo nome inspirou-se no romance de Ayn Rand, “A revolta de Atlas”, que defendia o ideário neoliberal.

Atualmente, é possível dizer que praticamente todos os think-tanks pró-mercado mais importantes ao redor do globo fazem parte da rede constituída pela Atlas. São mais de 400 afiliados distribuídos em mais de 80 países e regiões, incluindo Canadá, Estados Unidos, Europa, Ásia Central, Oriente Médio, África, sul da Ásia, Extremo Oriente, Austrália, Nova Zelândia e América Latina.

As informações acima estão no livro “Menos Marx, mais Mises”, de Camila Rocha. Nele, a autora observa que seria “tentador pensar a rede de organizações articuladas pela Atlas e pelo IHS como uma espécie de Komintern neoliberal, exceto pelo fato de que estas afirmam enfaticamente não receberem qualquer tipo de financiamento estatal”.

Em 1987, surgiu o primeiro integrante com algum peso desse “Komintern” (Internacional Comunista) no Brasil. Era o Instituto Liberal de São Paulo. Mas somente no início do século 21, essa rede começaria a mostrar suas garras por aqui.

Mais na próxima pílula.

Leia também: Ideólogos de segunda classe na defesa do neoliberalismo

15 de dezembro de 2021

Ideólogos de segunda classe na defesa do neoliberalismo

Em seu excelente livro “Menos Marx, mais Mises”, Camila Rocha busca identificar a “gênese” da nova direita brasileira. Para tanto, destaca o papel dos chamados contra-públicos formados pela direita, em favor do neoliberalismo.

Um dos primeiros a defender esse tipo de atuação foi o economista austríaco Friedrich Hayek. No final dos anos 1940, as ideias desse guru do neoliberalismo eram desprezadas ou hostilizadas pelo consenso em torno das políticas keynesianas. Em resposta, ele recomendava que a divulgação de suas propostas fosse feita através de estruturas não partidárias, como forma de preservar sua “pureza”. Além disso, ele entendia que era preciso:

...influenciar indivíduos que denominava como “ideólogos de segunda -classe”: jornalistas, acadêmicos, escritores e professores. Dessa forma, seria possível difundir o ideário neoliberal junto à opinião pública e criar, com o tempo, um consenso “neoliberal” no seio da sociedade, de forma análoga com o que, em sua percepção, teria ocorrido com ideias de matriz socialista ou socialdemocrata.

A tática preconizada por Hayek começou a dar frutos em 1955, com a criação do Institute of Economic Affairs (IEA), na Inglaterra. Uma das primeiras organizações que viriam a ser chamadas de “think-tanks”.

O IEA, diz Camila, acabou por desempenhar um papel fundamental na política britânica, não apenas no plano das ideias, mas também no da política profissional. Nos anos posteriores, forneceria quadros e assessores técnicos para o governo de Margareth Thatcher.

Em 1973, surgia o Heritage Foundation nos Estados Unidos. E até 2000, o número de think-tanks estadunidenses mais do que quadruplicou, crescendo de menos de 70 para mais de 300.

Era o neoliberalismo partindo para a ofensiva.

Continua.

Leia também: O nascimento da nova direita brasileira

14 de dezembro de 2021

O nascimento da nova direita brasileira

“‘Menos Marx, mais Mises’: uma gênese da nova direita brasileira” é o título da tese de doutorado de Camila Rocha, defendida em 2018 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Lançado recentemente em formato de livro, o estudo tem como argumento central a ideia de que a:

...formação de uma nova direita no Brasil se originou a partir da organização na internet de grupos de discussão e militância durante o auge do lulismo, entre 2006 e 2010.

Um dos principais conceitos utilizado pela autora é o de contra-público, originalmente pensado para denominar grupos que partilham um status subordinado na estrutura social, criando e fazendo circular discursos de oposição à ordem dominante. Por exemplo, os coletivos que integram o movimento feminista.

Ocorre que também existem contra-públicos conservadores, como o dos fundamentalistas-cristãos nos Estados Unidos. Assim, os membros dos contra-públicos:

...a despeito de serem subalternos ou não, partilhariam identidades, interesses e discursos tão conflitivos com o horizonte cultural dominante que correriam o risco de enfrentarem reações hostis caso fossem expressos sem reservas em públicos dominantes, cujos discursos e modos de vida seriam tidos irrefletidamente como corretos, normais e universais.

O que o estudo de Camila constatou foi o surgimento e crescimento de contra-públicos não-subalternos graças, principalmente, à popularização da internete dos últimos anos. Ou seja, trata-se do aumento da influência de grupos de direita e extrema-direita potencializado pela ampliação do acesso às redes virtuais.

Mas, muito antes disso,
nos anos 1940, um dos primeiros a defender o surgimento desse tipo de iniciativa foi o guru do neoliberalismo, o economista austríaco Friedrich Von Hayek.

Continua.

Leia também: Uma etnografia dos delírios do fascismo nacional

13 de dezembro de 2021

Ilusões Perdidas ou a imprensa como armazém de palavras

“Ilusões Perdidas”, de Xavier Giannoli, é um belo filme. Baseado na obra-prima homônima de Honoré de Balzac, a abordagem do diretor privilegiou o comércio de informações a que parte da imprensa francesa das primeiras décadas do século 19 se dedicou. Mas, certamente, o objetivo é fazer referência aos tempos atuais, empesteados pelas chamadas “fake news".

Alguns trechos do romance original mostram essa situação, quando um dos personagens afirma: ”a polêmica, meu caro, é o pedestal das celebridades”. Ou quando alguém diz que todo jornal é “um armazém onde se vendem ao público palavras da cor que ele quiser”. Um jornal, reforça ele:

...não é mais feito para esclarecer, mas para adular as opiniões. Assim, todos os jornais serão, mais cedo ou mais tarde, covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos; matarão as ideias, os sistemas, os homens, e florescerão exatamente por isso. Terão o benefício de todos os seres da razão: o mal será feito sem que ninguém seja culpado por ele.

A trama de Balzac se passa durante a restauração da nobreza na França. Mas o verdadeiro poder já era o das finanças. O valor de troca iniciava seu longo império sobre o valor de uso, inclusive nos meios de comunicação.

Agora, como antes, não interessa saber o quanto de verdade há numa informação. Apenas o quão rápida e amplamente ela circula. Ontem, eram os jornais vendidos nas esquinas. Hoje, são cliques e likes.

Ilusão, mesmo, é a crença de que as manipulações cometidas por séculos pela imprensa empresarial não acabassem por jogar a tal esfera pública de volta ao pântano da desinformação em larga escala.

Leia também: A economia política da “pós verdade” (3)

10 de dezembro de 2021

A aposta radical de Toussaint Louverture

No encerramento de seu livro "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture, Sudhir Hazareesingh lembra que somente em abril de 1998, o grande líder negro integrou o panteão dos heróis da França. O autor adverte, porém, que nenhuma das inscrições nos monumentos destinados a ele:

...explicava por que Toussaint foi capturado; nem que foi preso traiçoeiramente pelo exército francês; nem que os homens que o prenderam foram mandados por Bonaparte para restaurar a escravidão no Caribe. Esses subterfúgios e contradições refletiam a incapacidade, por parte da tradição republicana francesa, de ir além de seus relatos egocêntricos sobre a escravatura e sua abolição e de lidar com a atitude hesitante da revolução de 1789 sobre igualdade racial. Os monumentos oficiais em memória de Toussaint mostravam a relutância da França em afastar-se demais da “doce utopia colonial” sobre a história de seu império — ou seja, a de que a escravidão foi produto do “ancien régime”, e que foi extirpada da comunidade nacional pela revolução; de que esse desfecho resultou da intervenção francesa esclarecida, e não da ação revolucionária dos próprios escravizados negros.

Por isso, Hazareesingh prefere destacar um grafite pintado em 2016, nos muros de Belfast, Irlanda do Norte. A pintura em homenagem a Frederick Douglass mostra Toussaint em companhia de figuras lendárias da emancipação negra, como Martin Luther King, Nelson Mandela, Rosa Parks, Paul Robeson, Muhammad Ali, Bob Marley, Steve Biko e Angela Davis.

Louverture fez uma aposta radical na luta pela igualdade racial sob inspiração da mais emblemática das repúblicas burguesas. Pagou com a própria vida porque capitalismo e democracia racial são incompatíveis.

Leia também: Facetas e atitudes contraditórias de Toussaint Louverture

9 de dezembro de 2021

Facetas e atitudes contraditórias de Toussaint Louverture

Antes de encerrar esta série sobre o "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture, seria importante destacar algumas esquisitices do biografado.

Seu autor, Sudhir Hazareesingh, relata, por exemplo, a enorme capacidade de trabalho de Louverture:

...um dia típico de trabalho durava normalmente dezesseis horas, e seu “infatigável zelo” era tamanho que todos em seu “entourage” (...) viviam “assoberbados de trabalho e cansaço”. Ele despachava uma média de duzentas cartas diárias, e era capaz de viajar até 200 km por dia, e, a pleno galope, ninguém o igualava em resistência.

Católico fervoroso, jamais deitava-se com uma de suas amantes sem antes perguntar-lhes se tinham feito a comunhão. A nova Constituição atribuía a ele controle rigoroso sobre a nomeação dos padres. Era a aplicação muito peculiar adotada por Louverture da separação entre Estado e Igreja, defendida pela Revolução Francesa.

Dentre os poderes constitucionais a ele atribuídos estava o de regular o comportamento privado dos cidadãos de Saint-Domingue. Nenhum membro das forças armadas poderia, por exemplo, casar sem sua autorização expressa. Além disso, uniões matrimoniais entre trabalhadores vinculados a propriedades rurais diferentes tinham que ser aprovadas pessoalmente por ele. Por fim, para se separarem, os casais deveriam apresentar um relato completo da situação para Toussaint arbitrar uma possível conciliação.

Os escravizados libertos das plantações passaram a receber remuneração, mas qualquer manifestação de negligência no trabalho era punida com o chicote. Algo que manteve perigosamente vivas as piores memórias da escravidão.

São algumas das facetas e atitudes contraditórias de um dos gigantes da História. Não estão entre as causas diretas de sua ruína, mas certamente contribuíram para ela.

Leia também: Toussaint Louverture traído e encarcerado

8 de dezembro de 2021

Toussaint Louverture traído e encarcerado

Em junho de 1801, as forças de Toussaint controlavam uma faixa significativa de territórios de Saint-Domingue. Mas ele não tinha homens em número suficiente para desferir um golpe decisivo contra as tropas francesas.

Além disso, como diz Sudhir Hazareesingh no livro "O maior revolucionário das Américas", Toussaint nunca demonstrou real intenção de separar Saint-Domingue do império francês.

Fingindo disposição para resolver o impasse, os franceses o convidaram para um encontro de negociação. Mas era uma armadilha. Toussaint foi preso e levado para a França, onde morreria na prisão, em abril de 1803.

Jean-Jacques Dessalines, segundo em comando das tropas de Toussaint, assumiu a liderança da resistência. Em 1º de janeiro de 1804, proclamou a independência, fundando o estado do Haiti.

Mas Dessalines eliminou todos os principais aliados de Toussaint. E criou um regime que rejeitava a ideia de seu antigo comandante de construir uma república multirracial. Somente os negros governariam.

Dessalines proclamou-se imperador em outubro de 1804, mas foi assassinado dois anos depois. Sua morte foi seguida por lutas fratricidas entre seus sucessores.

Em 1915, o presidente estadunidense Woodrow Wilson ordenou a invasão do país, dando início a uma ocupação brutal que durou quase duas décadas. Ao Haiti nunca foi perdoado o fato de ter surgido de uma revolução vitoriosa protagonizada por escravizados.

A figura de Toussaint Louverture foi repudiada por seus próprios ex-subordinados, mas jamais desapareceu da memória popular.

Fidel Castro revelou em 1954 que sua inspiração para “transformar Cuba de alto a baixo” era a insurreição dos escravos do Haiti. Como ele, muitos outros foram inspirados pelo grande revolucionário negro.

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também: Toussaint derrota os poderosos exércitos de Napoleão

7 de dezembro de 2021

Toussaint derrota os poderosos exércitos de Napoleão

Continuamos a destacar algumas passagens do livro "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture escrita por Sudhir Hazareesingh.

Em outubro de 1801, Napoleão Bonaparte voltou-se totalmente contra as medidas tomadas por Louverture abolindo a escravidão em Saint-Domingue, futuro Haiti. “Sou a favor dos brancos, porque sou branco", declarou ele.

Toussaint preparou seu exército para receber as tropas francesas adotando uma tática de terra arrasada:

É imperativo que a terra que foi banhada por nosso suor não forneça alimento de espécie alguma ao inimigo. Rasguem as estradas com tiros e joguem as carcaças de cavalos mortos nas fontes; destruam e queimem tudo, para que os que vieram nos escravizar de novo tenham sempre diante dos olhos a imagem do inferno que merecem.

Centenas de brancos que tinham recebido alegremente a invasão francesa foram massacrados e seu sepultamento, proibido: os cadáveres em decomposição serviriam para espalhar o terror entre as forças francesas.

Toussaint combinava guerra convencional com combate de guerrilha. Constantemente em movimento e dormindo numa tábua poucas horas por noite, ele obrigava os franceses a longas e cansativas marchas para procurá-lo, sem sucesso.

Privando os invasores de descanso e suprimentos, preparava emboscadas letais para as tropas inimigas. Toussaint sabia exatamente quando e onde lançar esses ataques, graças a sua rede de informantes.

Um oficial francês afirmou que “bastava uma ordem de Louverture para seus homens reaparecerem e cobrirem todo o território diante de nós”. Além disso, ele se jogava diretamente na linha de frente.

Estava preparado o terreno para a independência do Haiti. Toussaint não viveria para vê-la. E, talvez, nem a desejasse.

Leia também: A república negra de Toussaint apavorava os colonizadores

6 de dezembro de 2021

A república negra de Toussaint apavora os colonizadores

Em 1801, Toussaint Louverture governava a colônia de Saint-Domingue, futuro Haiti, como representante da república francesa. A Constituição que criou para a colônia libertava os escravos, mas preservava o sistema de exploração, mantendo os libertos vinculados às propriedades dos colonizadores.

Segundo o livro "O maior revolucionário das Américas", de Sudhir Hazareesingh, a política agrária de Louverture não era um fim em si mesmo. A prioridade era defender as conquistas de Saint-Domingue contra intervenções externas.

Para Louverture, isso só seria possível com a revitalização da economia de “plantation”, gerando receitas a partir da exportação de produtos como açúcar e café de modo a serem usadas para “o bem comum”.

De fato, o efeito das medidas foi imediato, chegando a decuplicar a produção em determinadas propriedades. Os maiores beneficiados eram os empresários britânicos e americanos, além dos colonos europeus. Mas esses mesmos grupos desprezavam a doutrina de direitos humanos da Revolução Francesa e achavam inconcebível que diferentes etnias pudessem viver juntas em harmonia e igualdade.

Ao mesmo tempo, a ordem que Toussaint criara era vista como uma perigosa república negra pelas potências imperiais. Eles viam a Constituição de Saint-Domingue como uma “tocha” a ser usada para “atear fogo em seus próprios assentamentos” e fariam o que estivesse a seu alcance para “apagar as chamas revolucionárias", o mais rápido possível.

Entre as potências imperiais descontentes estava a própria França. A república nascida em 1789 resistiu a abolir a escravidão nas colônias até 1794. Após o golpe de 18 Brumário de 1799, Napoleão havia restaurado o trabalho escravo. Toussaint passara a ser um inimigo a ser derrotado.

Leia também: Toussaint liberta os escravos de Saint-Domingue

3 de dezembro de 2021

Toussaint liberta todos os escravos de Saint-Domingue

No final do século 18, a ilha de Hispaniola dividia-se entre os domínios espanhol e francês. Santo Domingo, de um lado, Saint-Domingue, do outro. Este último viria a se tornar o Haiti.

Segundo o livro "O maior revolucionário das Américas", de Sudhir Hazareesingh, a unificação sob o domínio francês havia sido determinada por um tratado assinado em 1795. Mas somente ocorreu em janeiro de 1801, quando Toussaint Louverture colocou a ilha sob controle francês.

Imediatamente, 15 mil trabalhadores foram emancipados da escravidão no território ocupado. Além disso, foram nomeados negros e mestiços para cargos no exército e na administração pública.

Em fevereiro de 1801, uma proclamação de Toussaint especificou que todos os libertos de Santo Domingo receberiam um quarto da safra como salário, exatamente como na parte francesa da ilha.

E não só isso. Em julho, Toussaint convidou a população para celebrar a aprovação de uma nova Constituição para o território unificado. O novo texto legal dizia que “escravos não podem existir neste território e a servidão está para sempre abolida. Aqui, todos os homens nascem, vivem e morrem livres e franceses”.

Nada disso agradou a Napoleão Bonaparte. Ele alegava que Toussaint havia concedido a si mesmo poderes ditatoriais, o que era verdade. Mas o próprio Bonaparte havia feito isso, em 1799. Com o golpe de estado de 18 Brumário, não apenas se tornou ditador como restaurou a escravidão nas colônias francesas.

Começava a contagem regressiva para a invasão da ilha por tropas vindas da França, prontas a afogar em sangue o atrevimento de Louverture. Mas o grande derrotado acabaria sendo o próprio Napoleão.

Leia também: Toussaint Louverture: Ogum no comando

2 de dezembro de 2021

Toussaint Louverture: Ogum no comando

Napoleão Bonaparte costuma ser considerado um dos maiores gênios militares da história. Uma de suas poucas derrotas foi para os russos. Mais precisamente, para o implacável inverno eslavo.

Mas outra grande derrota, pouco comentada, foi para as tropas negras de Saint-Domingue, futuro Haiti, em 1801. Nesse caso, não houve qualquer influência do fator climático, mas do gênio militar de Toussaint Louverture.

Louverture notabilizou-se pelo planejamento preciso de cada operação militar. Liderava pelo exemplo, estimulando os soldados pela prontidão com que se expunha a perigos mortais. Além disso, combinava métodos de guerra de guerrilha e formas convencionais de combate, explorando as habilidades de seus guerreiros.

Ao mesmo tempo, seus objetivos não se limitavam a conquistas territoriais, mas estavam lastreados num conjunto mais amplo de princípios de igualdade, autonomia política, humanidade e libertação da ocupação estrangeira.

Modelo de sobriedade, dormia apenas quatro horas por noite, não consumia bebidas alcoólicas, e sua capacidade de resistência física era maior do que a do mais duro dos soldados.

A autoridade de Toussaint repousava, também, na capacidade de apelar para as crenças de seus homens. Católico fervoroso, ele costumava usar na cabeça um lenço vermelho, visto pelos soldados como símbolo de Ogum, o espírito vodu da guerra, que levava seus seguidores ao combate e os mantinha a salvo.

Sua hiperatividade, somada à aparente invulnerabilidade física no campo de batalha, confirmava a crença dos soldados de que mantinha estreito contato com espíritos vodus e que estes lhe conferiam poderes sobrenaturais.

Nas próximas pílulas, voltaremos com mais informações do livro "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture de Sudhir Hazareesingh.

Leia também: Louverture: a liberdade negra se conquista com fuzis

1 de dezembro de 2021

Louverture: a liberdade negra se conquista com fuzis

Seguem mais algumas passagens do livro "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture escrita por Sudhir Hazareesingh.

Segundo o autor, a insurreição de escravizados de 1791 na colônia de San Domingue (futuro Haiti) foi o primeiro exemplo do tipo de coalizão de forças defendida pelo biografado. Eram escravizados e negros forros, africanos e crioulos, escravizados domésticos e fugitivos, capatazes e trabalhadores das “plantations”, guerreiros e clérigos...

Desde seu ingresso na insurreição de 1791 até sua morte, seu objetivo fixo era a emancipação dos escravizados de Saint-Domingue. Inspiravam-no as qualidades extraordinárias daqueles homens e mulheres: sua criatividade intelectual, coragem, humanidade e, acima de tudo, espírito de liberdade. Ao mesmo tempo, buscava afastá-los do confronto direto com os colonos brancos visando a construção de uma comunidade política de iguais, na qual negros, brancos e mestiços pudessem coexistir em paz.

Toussaint apresentava um conceito inovador de ordem cívica, no qual a cidadania era baseada não apenas em princípios abstratos, como igualdade e fraternidade, mas também na participação ativa em defesa da comunidade.

Ele nunca se empenhou muito em instituir uma forma de “poder negro”. Sua abordagem consistia em deixar líderes de origem africana surgirem naturalmente, ao mesmo tempo que promovia a igualdade civil e impedia que mentalidades racistas prevalecessem.

O objetivo de Toussaint era apenas construir uma república, tal como defendiam os revolucionários franceses. Mas diante da resistência racista dos colonizadores, Louverture foi obrigado a transformar um exército de maltrapilhos numa máquina de guerra formidável. Não à toa, em suas inspeções militares, ele costumava pegar um fuzil, brandi-lo no ar e gritar: “Isto é a nossa liberdade”.

Leia também: Louverture: mestre de uma escola insurreição

30 de novembro de 2021

Louverture: mestre de uma escola de insurreição

Em 1791, teve início uma revolta de escravizados em San Domingue, colônia francesa que se tornaria o Haiti. Toussaint Louverture era um de seus líderes.

Três anos antes, ocorrera a Revolução Francesa. Mas o levante da plebe de Paris manteve intacta a máquina colonial. Em maio de 1791, por exemplo, a Assembleia Constituinte tornou a escravidão constitucional.

Quanto a Saint-Domingue, era consenso entre os revolucionários parisienses que a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 não poderia ser aplicada, sob pena de destruir a “imperiosa necessidade” de preservar a divisão entre as três raças da colônia.

A Revolução Francesa tinha tomado claramente o partido dos proprietários de escravos. Enquanto isso, na colônia caribenha, reformistas mestiços buscavam uma aliança com os brancos para fortalecer a escravidão.

O fato é que, às vésperas do levante parisiense, havia em Saint-Domingue 500 mil negros cativos. E pessoas não brancas eram donas de mais ou menos um quarto dos escravizados.

Tudo isso fortaleceu em Toussaint a convicção de que os direitos da população negra de Saint-Domingue só seriam garantidos se ela própria tomasse a iniciativa política.

Condições sociais e políticas para isso não faltavam. Soldados e marujos recém-chegados da Metrópole repetiam com entusiasmo as últimas máximas sobre liberdade e igualdade dos clubes revolucionários franceses e as repassavam a escravizados nas docas. Em suas memórias, um colono branco descreveu, assustado, as cidades costeiras de Saint-Domingue daquela época como uma “escola fumegante de insurreição”.

As informações acima estão no livro "O maior revolucionário das Américas" de Sudhir Hazareesingh. Nas próximas pílulas, veremos como Louverture tornou-se mestre daquela escola fumegante de insurreição.

Leia também: O maior revolucionário das Américas

29 de novembro de 2021

O maior revolucionário das Américas

"O maior revolucionário das Américas" é um livro do historiador britânico Sudhir Hazareesingh, recém lançado no Brasil. Trata-se de uma biografia de Toussaint Louverture, líder da revolução que levaria à independência do Haiti.

Afirmar que o grande revolucionário negro seria o maior de toda a história americana pode parecer exagero. Mas a leitura da obra não apenas confirma a correção de seu título, como pode facilmente colocar Louverture entre os maiores revolucionários de todos os tempos e lugares.

Afinal, Louverture liderou a única revolução vitoriosa de escravizados de que se tem registro. Além disso, poucos anos após a incendiária Revolução Francesa, foi muito mais radical que os jacobinos, ao abolir a escravidão na então colônia francesa contra a vontade dos governantes parisienses. Medida sem a qual, dizia ele, a defesa de fraternidade, liberdade e igualdade não passava de hipocrisia.

Louverture trilhou caminhos tortuosos e contraditórios. Ex-escravizado, chegou a ter escravos. Aliou-se aos monarquistas espanhóis contra os republicanos franceses. Voltou a aliar-se aos franceses, enquanto negociava secretamente com os britânicos. Determinou que os negros recém-libertos pela revolução continuassem trabalhando para seus antigos senhores.

Jurando lealdade à França, aprovou uma constituição que, na prática, era uma declaração de independência nacional. Era mestre em negociações diplomáticas tanto quanto nos campos de batalha. Tornou-se ditador para enfrentar a ditadura instaurada por Napoleão. E este último, considerado um gênio militar, viu suas poderosas tropas sucumbirem diante do exército maltrapilho de Louverture.

Todas essas idas e vindas serviam a um grande propósito: o fim definitivo da escravidão e a construção de uma igualdade republicana radical.

Mais nas próximas pílulas.

Leia também: Escravidão: os rugidos que fazem os senhores tremerem

29 de outubro de 2021

Contra o neoliberalismo, outra razão do mundo

Nas páginas finais do livro "A nova razão do mundo", Pierre Dardot e Christian Laval reafirmam que:

...não se sai de uma racionalidade ou um dispositivo por uma simples mudança de política, assim como não se inventa outra maneira de governar os homens mudando de governo.

Desse modo, para resistir ao neoliberalismo como “racionalidade dominante” seria necessário “promover desde já formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa de si”.

Para isso, propõem o conceito de “contraconduta”, pelo qual seria possível tanto “escapar da conduta dos outros como definir para si mesmo a maneira de se conduzir com relação aos outros”.

Infelizmente, não fica muito claro como esse conceito se expressaria concretamente nas lutas cotidianas dos explorados e oprimidos. Mas os autores concluem afirmando:

Marx já dizia com força: “A história não faz nada”. Existem apenas homens que agem em condições dadas e, por sua ação, tentam abrir um futuro para eles. Cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. O governo dos homens pode alinhar-se a outros horizontes, além daqueles da maximização do desempenho, da produção ilimitada, do controle generalizado. Ele pode sustentar-se num governo de si mesmo que leva a outras relações com os outros, além daquelas da concorrência entre “atores autoempreendedores”. As práticas de “comunização” do saber, de assistência mútua, de trabalho cooperativo podem indicar os traços de outra razão do mundo.

Dessa forma, é possível deduzir da leitura da obra de Laval e Dardot a firme recusa em aceitar a separação entre capitalismo e neoliberalismo. Este último sendo apenas a forma mais acabada e cruel do primeiro.

Leia também: O desastrado neoliberalismo de esquerda

28 de outubro de 2021

O desastrado neoliberalismo de esquerda

O longo sucesso do neoliberalismo foi assegurado não apenas pela adesão das grandes formações políticas de direita a um novo projeto político de concorrência mundial, mas também pela porosidade da “esquerda moderna” aos grandes temas neoliberais.

A advertência acima é de Pierre Dardot e Christian Laval, no livro "A nova razão do mundo".

Segundo eles, a luta contra as desigualdades, que era central no projeto social-democrata, foi substituída pela “luta contra a pobreza”, segundo uma ideologia de “equidade” e “responsabilidade individual”.

Os autores citam o manifesto "A terceira via", assinado por Tony Blair e Gerhard Schröder, duas lideranças da social-democracia europeia. Publicado em 1999, o texto afirma, por exemplo, que a "livre competição entre os agentes de produção e a livre troca são essenciais para estimular a produtividade e o crescimento".

Outras pérolas do documento:

Na verdade, exageramos as fraquezas do mercado e subestimamos suas qualidades.

É necessário promover uma mentalidade de vencedor e um novo espírito de empreendimento em todos níveis da sociedade.

Queremos uma sociedade que honre seus empresários, como faz com os artistas e os jogadores de futebol, e volte a valorizar a criatividade em todos os domínios da vida.

O equívoco aqui é a ilusão de que a racionalidade neoliberal pode ser colocada a serviço do bem coletivo. Mas um e outro nunca foram compatíveis.

Ideias semelhantes se espalharam pelo mundo. Inclusive no Brasil, onde social-democratas modernosos as adotaram entusiasmadamente. Já os socialistas de gabinete que vieram depois tentaram restringi-las ao nível econômico.

Com isso, as causas estruturais da imensa injustiça social do País permaneceram intocadas. A extrema-direita agradece os serviços prestados.

Leia também: Neoliberalismo: a democracia como mal desnecessário

27 de outubro de 2021

Neoliberalismo: a democracia como mal desnecessário

Em seu livro "A nova razão do mundo", Pierre Dardot e Christian Laval descrevem os traços que caracterizariam a razão neoliberal.

Para começar, diferente do liberalismo clássico, que se apresentava como produto natural do livre intercâmbio econômico, o neoliberalismo se assume explicitamente como projeto a ser construído. Daí, o caráter extremamente ofensivo da imposição de suas políticas.  

Os neoliberais também defendem que a essência da ordem de mercado reside na concorrência, não na troca. E resguardar o princípio da concorrência a qualquer custo seria missão do Estado.

Mas o próprio Estado deve se submeter ao império da concorrência, sendo obrigado a ver a si mesmo como uma empresa, tanto em seu funcionamento interno como em sua relação com os outros Estados. E, na condição de empreendedor, deve conduzir os indivíduos a comportarem-se como empreendedores.

Essa racionalidade estatal apaga a separação entre esfera privada e esfera pública, sujeitando a ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade. Como consequência, toda a reflexão sobre a administração pública adquire um caráter técnico. Governar passa a ser uma atividade para especialistas. A atividade política que pressupõe debate e conflitos torna-se um mal desnecessário. A democracia, um incômodo.

Por fim, promove-se um combate aos direitos até então ligados à cidadania. “Nada de direitos se não houver contrapartidas”. No lugar do cidadão da sociedade liberal, o empreendedor, sujeito ao qual a sociedade não deve nada.

Todos esses traços do neoliberalismo, dizem os autores, enterraram de vez qualquer ilusão quanto à “democracia liberal”. Ainda assim, forças de esquerda se renderam a essa lógica. É o que veremos a seguir.

Leia também: O neoliberalismo como subjetivação capitalista

26 de outubro de 2021

O neoliberalismo como subjetivação capitalista

O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modernidade”.

A citação acima é do livro "A nova razão do mundo", de Pierre Dardot e Christian Laval. Nele, os autores buscam definir o neoliberalismo não apenas como uma doutrina econômica, mas como uma racionalidade abrangente, com consequências para a própria subjetividade social.
 
Por isso, dizem eles:

Continuar a acreditar que o neoliberalismo não passa de uma “ideologia”, uma “crença”, um “estado de espírito” que os fatos objetivos, devidamente observados, bastariam para dissolver, como o sol dissipa a névoa matinal, é travar o combate errado e condenar-se à impotência. O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais. Ele estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade “contábil” pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos.

Segundo os autores, trata-se da forma “mais bem-acabada da subjetivação capitalista”. Ou seja, o neoliberalismo não pode ser derrotado apenas no nível econômico ou com políticas de governo. Para derrotá-lo não basta ser apenas antineoliberal. É preciso ser anticapitalista.

Leia também: O neoliberalismo como modelo social cruel

25 de outubro de 2021

O neoliberalismo como modelo social cruel

Seguimos comentando o livro "A nova razão do mundo", de Pierre Dardot e Christian Laval. Esses autores entendem que o neoliberalismo não é mera reedição do liberalismo clássico de um Adam Smith, por exemplo.

O neoliberalismo teria mais a ver com formulações como a de Herbert Spencer, filósofo do século 19, que fez uma leitura distorcida da teoria darwiniana para fazer um paralelo entre a evolução econômica e a evolução das espécies.

Nessa formulação, o princípio da competição se sobrepunha ao da reprodução, dando origem, assim, ao que foi chamado de “darwinismo social”. Um equívoco, já que Darwin sustentava que a civilização se caracterizava sobretudo pela prevalência de “instintos sociais” capazes de neutralizar os aspectos eliminatórios da seleção natural e acreditava que o sentimento de simpatia estava destinado a estender-se indefinidamente.

O mesmo pode se dizer de pensadores clássicos do liberalismo, como Smith e Ricardo, para os quais o aumento geral da produtividade média que decorre da especialização, beneficiaria a todos na troca comercial. Não se tratando, portanto, de uma dinâmica que eliminaria o pior dos sujeitos econômicos, mas uma lógica de complementaridade que melhoraria a eficácia e o bem-estar até do pior dos produtores.

Ou seja, não se trata de um processo de eliminação seletiva, que condena, por exemplo, a ajuda aos mais necessitados, seguindo uma lei implacável da vida, cujo mecanismo de progresso funcionaria por eliminação dos mais fracos.

No entanto, é o modelo econômico cruel de Spencer que inspira o neoliberalismo. Algo que ficou ainda mais claro à medida que essa doutrina tornou-se política estatal mundo afora, desde o final do século passado.

Leia também: O neoliberalismo como modo de governar

22 de outubro de 2021

O neoliberalismo como modo de governar

Em seu livro "A nova razão do mundo", Pierre Dardot e Christian Laval buscam definir o neoliberalismo como um modo geral de governo, que vai muito além da “esfera econômica” no sentido habitual do termo.

Essa abordagem os autores foram buscar na obra de Michel Foucault. Para eles, o filósofo francês:

Compreendeu, contra o economicismo, que não se podem isolar as lutas dos trabalhadores das lutas das mulheres, dos estudantes, dos artistas e dos doentes, e pressentiu que a reformulação dos modos de governo dos indivíduos nos diversos setores da sociedade e as respostas dadas às lutas sociais e culturais estavam encontrando, com o neoliberalismo, uma possível coerência teórica e prática. Interessando-se de perto pela história do governo liberal, ele mostra que aquilo que chamamos desde o século XVIII de “economia” está no fundamento de um conjunto de dispositivos de controle da população e de orientação das condutas (a “biopolítica”) que vão encontrar no neoliberalismo uma sistematização inédita.

Tal análise, dizem eles, vai ao encontro de uma das intuições mais profundas de Marx, que compreendeu muito bem que um sistema econômico de produção é também um sistema antropológico de produção.

Desse modo, compreendem a crise atual não mais como consequência de um “excesso de finanças”, um efeito da “ditadura dos mercados” ou uma “colonização” dos Estados pelo capital. Trata-se de uma crise global do neoliberalismo como modo de governar as sociedades.

Seria uma crise geral da “governamentalidade neoliberal”, isto é, de um modo de governo das economias e das sociedades baseado na generalização do mercado e da concorrência. 

Voltaremos ao tema nas próximas pílulas.

21 de outubro de 2021

Round 6: assista, mas não se divirta

"Round 6" ou "Squid Game" é o nome da mais nova sensação entre as séries televisivas exibida pela Netflix.

A atração sul-coreana é sobre um grupo de pessoas que disputam um jogo para tentar ganhar um grande prêmio em dinheiro.

A punição pelo mal desempenho em cada fase é a eliminação. Literalmente. Os perdedores são executados a tiros.

É diversão de primeira. Mas também pretende ser uma crítica às contradições da sociedade contemporânea.

A começar pelo fato de que os participantes aceitam permanecer nesse jogo mortal devido a problemas com dívidas impagáveis.

Seria uma referência ao capitalismo como escravidão pelo endividamento. Não apenas de pessoas, mas de países inteiros, reféns das exigências sádicas feitas por instituições como o FMI. No jogo, como na vida real, mortes são apenas danos colaterais.

A facilidade com que uma selvagem competição se instala seria outro sintoma do atual estágio de patologia social, acentuado pela lógica neoliberal.

Um dos jogadores perdeu o emprego durante uma greve ferozmente reprimida nos anos 90. Desde então, viu-se condenado a buscar uma vida melhor de forma individualista e apostando em jogos de azar. 

Outros participantes, vítimas da pressão pelo sucesso a qualquer custo, transformaram alguns erros em fracassos paralisantes.

A própria transformação de jogos infantis em episódios sangrentos mostram a derrota da dimensão lúdica mais essencial para a crueldade imposta pela concorrência capitalista.

Alguns jogadores até tentam criar formas de resistência coletiva e solidária, mas a regra é cada um por si ou a formação de grupos nos moldes das gangues criminosas.

Enfim, vale assistir. Só fica estranho se você se divertir.

20 de outubro de 2021

Abya Yala, socialismo comunitário global

Abya Yala era a denominação dada pelo povo kuna, originário do norte da Colômbia, para o seu território. No idioma original, o termo significa “terra madura... terra viva... terra que floresce”. 

Hoje, o nome Abya Yala abarca todo o continente e foi escolhido pelos povos originários como parte do processo de superação do isolamento político a que foram submetidos pela colonização. É uma expressão afirmativa para superar a caracterização eurocêntrica de “índios”, que ignora a identidade de centenas de povos originários.

Na Cúpula dos Povos de Abya Yala, realizada na Guatemala, em 2007, este movimento continental foi definido como:

...um espaço permanente de enlace e intercâmbio, onde convergem experiências e propostas para que juntos enfrentemos as políticas de globalização neoliberal e possamos lutar pela libertação definitiva de nossos povos irmãos, da Mãe Terra, do território, da água e de todo o patrimônio natural para viver bem.

A filosofia por trás de Abya Yala é a do socialismo comunitário, decorrente do conceito de bem-viver. Seu diferencial consiste em não centrar-se exclusivamente nos seres humanos, mas também envolver as montanhas, rios, árvores, ar, água, pedras e animais. Trata-se de uma relação respeitosa com tudo o que existe, porque tudo está conectado e todos os seres da comunidade de vida podem ser beneficiados. Não só no nível local, mas global também.

É assim que Moema Viezzer e Marcelo Grondin justificam a escolha do título de seu livro. Pretendem mostrar que o genocídio indígena não atingiu apenas pessoas e povos, mas uma concepção de mundo muito superior à barbárie capitalista, promovida para privilégio de uma minoria selvagem.

19 de outubro de 2021

Os heróis oficiais estadunidenses eram carrascos terríveis

George Washington, antes mesmo de chegar ao poder defendia que, para aplicar as políticas dos Estados Unidos, seria melhor comprar suas terras dos índios ao invés de tentar arrancá-los de seu território.

Já presidente, em uma carta sobre os indígenas, ele explicou:

Conforme comprovado por nossa experiência, é comparável a retirar feras da floresta: retornarão tão logo a perseguição termine e, talvez, ataquem os que já ficaram. Já, a ampliação gradual de nossos assentamentos, certamente fará os selvagens se retirarem à semelhança dos lobos, já que ambos são animais de caça, embora de formatos diferentes.

Quando foi eleito presidente, em 1828, Andrew Jackson já tinha comandado ataques a acampamentos indígenas pacíficos, chamando-os de “cães selvagens” e gabando-se de ter arrancado o couro cabeludo daqueles que matava.

Também tinha supervisionado a mutilação de aproximadamente 800 cadáveres de índios Creek – corpos de homens, mulheres e crianças que ele e seus soldados haviam massacrado. Seus narizes foram cortados para tê-los como um arquivo de mortos, além de mandar cortar a pele de seus corpos em longas tiras para secá-las ao sol e convertê-las em rédeas para os animais.

Mesmo após deixar a presidência, Jackson recomendava que as tropas americanas procurassem especifica e sistematicamente matar as mulheres e as crianças que ainda se ocultavam nas montanhas para completar sua extinção. Do contrário, dizia ele, seria o mesmo que perseguir lobos em seu habitat, sem ter eliminado seu covil.

São estes os grandes heróis da história oficial estadunidense revelados pelo livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

18 de outubro de 2021

Destino Manifesto: a doutrina genocida estadunidense

Para os imigrantes protestantes e de outras denominações religiosas, estava fora de questão pensar que os habitantes da região pudessem ser seres humanos como os brancos, com direito à terra, moradia, alimentação, vida social e espiritualidade próprias.

É assim que Moema Viezzer e Marcelo Grondin introduzem a história da colonização europeia do norte do continente americano em seu livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários do atual continente americano".

Em menos de 100 anos, dizem eles, todo o litoral atlântico já era uma região habitada por imigrantes europeus que roubavam os territórios dos nativos para colonização, sob o poder e a autoridade da Coroa britânica.

Depois que se emanciparam do domínio britânico, os estadunidenses acreditavam ser o momento de seguir seu “Destino Manifesto”. Essa doutrina representava a convicção de que a população branca dos Estados Unidos era o povo “eleito por Deus para civilizar a América... e possuir todo o continente”, conforme lhes tinha sido concedido pela “Divina Providência”. Expandir os Estados Unidos significava “realizar a vontade divina”.

Eram três as estratégias para assegurar o expansionismo e transformar o país numa grande potência:

– compra ou anexação diplomática de territórios;
– guerras contra outros países para anexar-lhes seus territórios;
– guerras contra os povos indígenas para apropriar-se de seus territórios.

Resultado, mais imigrantes europeus e menos habitantes nativos, dizimados por epidemias trazidas pelos europeus, guerras e remoções forçadas de seus territórios.

De George Washington a Joe Biden, passando pelos drones assassinos de Obama e pelo racismo escancarado de Trump, é inegável que o Destino Manifesto continua a ser a principal doutrina dos Estados Unidos.

15 de outubro de 2021

Estados Unidos, escola de genocídio

Mais informações do livro "Abya Yala!", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

Antes da chegada dos europeus, o território dos Estados Unidos era habitado por aproximadamente 18 milhões de nativos. No século 21, essa população reduziu-se a aproximadamente 2,5 milhões de habitantes, ou seja, 13% do total original.

Tamanha redução foi produto de um processo violento de colonização, tal como aconteceu ao sul do continente. Mas se houve muitas semelhanças com os processos latinos, também houve algumas grandes diferenças.

Na América do Norte, os próprios imigrantes financiavam o transporte e os equipamentos para seus familiares e empregados; outros tinham o patrocínio de companhias particulares. Uma situação bem diferente da de Colombo e Cabral, que tinham embarcado rumo às colônias com o patrocínio das Coroas de Espanha e Portugal, respectivamente.

Nos atuais países da América Latina, o genocídio durou aproximadamente um século. A degradação ocasionada pelo trabalho escravizado foi notória, mas não houve uma política de limpeza étnica decretada por governos. Não se impedia a mestiçagem de brancos com indígenas, o que deu margem a uma significativa população mestiça.

Nos Estados Unidos, o genocídio durou três séculos. Começou com ações de particulares, sobretudo de protestantes, que deixavam a Grã-Bretanha por motivos religiosos e políticos. Não aceitavam a miscigenação com as populações indígenas, que consideravam decadentes. No século 18, instalou-se uma política nacional de limpeza étnica para dar lugar aos brancos.

Os Estados Unidos se tornaram, nesse assunto, uma escola para o genocídio praticado posteriormente pelos ingleses contra os bôeres na África, em 1903, e para o holocausto dos judeus, promovido por Hitler.

14 de outubro de 2021

O fanatismo religioso mata a alma indígena

Em 1950, um pastor protestante afirmava que os indígenas eram:

...um bando de desavergonhados, especialmente as mulheres. A visão de sua nudez provoca o despertar dos desejos da carne entre os homens. A primeira parte do nosso trabalho consiste, naturalmente, em levá-las a usar roupas apropriadas. Esperamos que, dentro de um ou dois anos, nenhuma mulher exponha mais seus seios pela tribo... Devemos concentrar nosso trabalho sobre as mulheres, pois elas são a causa de todo o pecado.

Essas citação está no livro "Abya Yala!: Geocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin. Os autores observam que, em geral, pode-se afirmar que as práticas etnocidas promovidas por missionários e pastores não eram intencionais. Dificilmente os missionários aceitariam matar fisicamente os indígenas. Entretanto, contribuíram para matar sua cultura, que é sua “alma”.

A proposta dos indígenas no convívio com outros povos sempre foi simples: eles querem continuar sendo índios, sem serem obrigatoriamente “assimilados” pela cultura branca.

No início da colônia, os índios enfrentavam os fuzis portugueses com flechas, ficando em grande desvantagem. Hoje, a sociedade branca tem armas muito mais poderosas para difundir e impor sua cultura, particularmente os meios de comunicação de massa.
 
Por outro lado, o Conselho Indigenista Missionário, da Igreja Católica, e o Departamento de Assuntos Indígenas da Associação de Missões Transculturais Brasileiras, das igrejas evangélicas, defendem contatos religiosos com os indígenas, não mais para convertê-los, mas para garantir sua reprodução como povos e facilitar o difícil diálogo com a cultura dominante.

O problema é que a cultura dominante jamais quis esse diálogo.

13 de outubro de 2021

Hatuey preferiu o inferno ao céu dos espanhóis

No início do século 16, o cacique Hatuey, nascido na ilha Hispaniola (onde ficam República Dominicana e Haiti), foi expulso de suas terras por resistir aos espanhóis. Com mais de 300 índios taínos, atravessou em canoas, por mar, até Cuba, para ajudar a organizar a luta de seus irmãos.

Em um de seus famosos discursos, ele explicou a dominação colonial do seguinte modo:

Eu vou lhes dizer porque fazem tudo isto. É porque têm um grande senhor a quem querem e amam. E este é o que lhes vou mostrar (indicando o ouro que estava na cesta): este é o senhor que os espanhóis adoram. É por ele que lutam e matam; por ele que nos perseguem; por causa dele morrem nossos pais e irmãos e por sua causa nos privam de nossos bens e nos buscam e nos maltratam. Como vocês já ouviram antes, eles querem vir para cá e não pretendem outra coisa senão buscar este senhor; para buscá-lo e arrancá-lo vão nos perseguir e cansar como já fizeram em nossa terra.

Hatuey foi capturado em fevereiro de 1512. Condenado a morrer numa fogueira, um padre ofereceu-lhe a conversão à fé cristã para poder ir para o céu. Hatuey perguntou: “Os espanhóis também vão ao céu?" Diante da resposta afirmativa, respondeu: "Então, não quero ir para um lugar onde possa encontrar gente tão horrível e tão cruel”.

Essa é outra das histórias de luta heroica e grande sabedoria dos povos originários que Moema Viezzer e Marcelo Grondin contam no livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários".

Leia também: Enriquillo, líder da primeira guerrilha indígena

8 de outubro de 2021

Enriquillo, líder da primeira guerrilha indígena

A história de Enriquillo merece destaque no livro "Abya Yala!", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin. Nascido na ilha de Hispaniola (onde ficam atualmente República Dominicana e Haiti), seu nome original era Guarocuya, sendo descendente de família nobres dos taínos, povo nativo da região.
 
Por influência do frei Bartolomé de las Casas, a partir dos 13 anos foi educado num convento de franciscanos, onde recebeu o nome de Enrique, transformado em Enriquillo. Foi alfabetizado em espanhol e, ainda jovem, confiado a Dom Francisco Pérez de Valenzuela, recebendo uma educação de nobre espanhol.
 
Com a morte de Valenzuela, os herdeiros começaram a tratá-lo como mera propriedade. Tentou defender seus direitos nos tribunais, mas acabou tendo que fugir juntamente com sua esposa e outros taínos para a serra de Bahoruco. Ali começou sua rebelião, acompanhado de 50 homens que ele mesmo armou, mais aproximadamente 300 taínos que lhe eram próximos; milhares de indígenas da ilha se somaram a ele.
 
Foi a primeira guerrilha organizada pela libertação dos indígenas no Novo Mundo. Sendo conhecedores da região, durante 13 anos, os taínos comandados por Enriquillo conseguiram incomodar a administração espanhola e derrotar todas as expedições que tentaram subjugá-los através do uso de armas ou de meios persuasivos mentirosos. Até que, finalmente, os taínos fizeram aliança com os escravos negros, também exaustos pela crueldade com a qual eram tratados.
 
Finalmente, um tratado concedeu aos indígenas o direito à propriedade e à liberdade. Infelizmente, Enriquillo morreria alguns anos depois, vítima de tuberculose, e a população taína já tinha diminuído drasticamente, devido aos maus-tratos, às doenças e matanças.

Leia também: Genocídio indígena no século 20