Doses maiores

31 de outubro de 2017

Policiais contra o fascismo

“Mortes violentas crescem e atingem maior número já registrado no país”, anunciam as manchetes dos últimos dias. Sete pessoas assassinadas por hora, dizem os dados sobre 2016, recém-divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Entre as muitas cifras terríveis, a disparada no número de vítimas da violência policial: 4.224 casos, registrando alta de 27% em relação a 2015.

“É uma guerra!”, dizem quase todos. Nada disso.

Em setembro passado, no Rio de Janeiro, foi divulgado um manifesto. Abaixo, alguns trechos dele:

Não estamos em guerra! Qualquer tentativa midiático-policial de construir tal discurso como política pública tem por objetivo legitimar as políticas racistas de massacre, promovidas pelo Estado contra a população negra, pobre e periférica de nosso país. Tal política belicista acaba também por vitimar policiais, que operam na base das corporações do sistema de segurança, recrutados nos mesmos estratos sociais daqueles que são construídos como os seus “inimigos”.

(...)

Policiais devem ser construídos como trabalhadores! O reconhecimento do direito de greve, de livre associação, de livre filiação partidária, bem como o fim das prisões administrativas, são marcos nesta luta contra a condição de subcidadania à qual muitos policiais estão submetidos. Acreditamos que este é o único caminho pelo qual policiais possam vir a se reconhecer na luta dos demais trabalhadores, sendo então reconhecidos por toda classe trabalhadora como irmãos na luta antifascismo.

O documento também defende a desmilitarização da segurança pública e o fim às politicas de proibição das drogas.

Trata-se do Manifesto do Movimento Policiais Antifascismo. Sim, eles existem. E diante do histórico conservadorismo da sociedade brasileira, merecem apoio irrestrito.

30 de outubro de 2017

Os exércitos verdes na Guerra Civil Russa

Mais informações do livro “História da Guerra Civil Russa 1917 – 1922”, de Jean-Jacques Marie.

É comum lembrar que a guerra civil russa opôs os exércitos vermelhos, revolucionários, aos brancos, contrarrevolucionários.

Mas havia também os exércitos verdes, formados por camponeses movidos por uma dupla rejeição. Contra o alistamento forçado e contra as requisições de suas colheitas para alimentar o exército e as cidades. Segundo Jean-Jacques:

Alguns desses exércitos, ainda que preocupados com sua autonomia, integraram por um período o Exército Vermelho antes de romper e se opor a ele: foi o que aconteceu, em especial, com as tropas dos ucranianos Makhno, Grigoriev, Zeliony e Grebionka. Desses Exércitos Verdes, somente o de Makhno, que se dizia anarquista, permaneceu na memória.

O sumiço dessas forças da história deve-se principalmente a Stálin, que depois de assumir o poder no Partido Bolchevique:

...apagou a existência dos Verdes em um relato da guerra civil manipulado e maniqueísta, sem nuances. Além disso, definiu Trotsky e a maioria dos comandantes do Exército Vermelho (...) como os melhores aliados dos Brancos, ao passo que, na verdade, eles os haviam combatido e vencido.

Uma vitória baseada no seguinte:

O destino da guerra civil será, afinal, decidido pela política: os camponeses distinguiam os bolcheviques, que lhes haviam dado terra, dos comunistas, que tomavam suas colheitas; eles se insurgiam regularmente contra estes e suas requisições de víveres, mas, no fim das contas, garantiram a derrota dos Brancos, vistos como a fachada dos proprietários de terras e dos generais czaristas. Os Verdes, por outro lado, só propunham revoltas locais e saques, até mesmo bebedeiras, sem nenhum projeto político nacional...

Leia também: A inteligência bolchevique na Guerra Civil Russa

27 de outubro de 2017

Socialismo seria igual a sovietes mais inteligência artificial?

Em “A Revolução Traída”, Trotsky lembra que Lênin definiu o socialismo como “o poder dos sovietes mais eletrificação”:

Esta definição em forma de epigrama, cuja estreiteza respondia a fins de propaganda, supunha em todo o caso, como ponto de partida mínimo, o nível capitalista da eletrificação.

Realmente, naquele momento, ao lado do petróleo, a eletricidade era o que havia de mais avançado. Apropriar-se de tais tecnologias era fundamental para Lênin. Mas desde que sob controle do poder democrático dos trabalhadores através de seus conselhos, os sovietes.

Agora, troquemos a grande novidade tecnológica daquela época pela maior inovação de nossos dias. Não se trata da robotização, que faz parte da vida produtiva há décadas, mas da robotização inteligente.

O principal insumo da inteligência artificial é o “big data”. Sem este imenso conjunto de informações não haveria como dotar as máquinas de comportamento inteligente.

Além disso, o gerenciamento adequado dessa imensidão de dados pode revelar informações detalhadas e valiosas sobre praticamente qualquer esfera da atual vida humana.

É o conjunto da sociedade que produz esses dados gratuitamente. Principalmente, por redes virtuais, consumo, uso de serviços, etc. Manipular o big data, porém, exige recursos que estão ao alcance de apenas alguns gigantes econômicos.

O proletariado russo só conseguiu dominar as fontes de energia elétrica após tomar o poder. E quanto a nós, podemos esperar pela tomada do poder para conquistar políticas que coloquem, por exemplo, o big data a serviço de nossas lutas e objetivos?

A resposta mais provável é não. Se não lutarmos por controles democráticos desse tipo de recurso desde já, a tomada do poder jamais virá.


26 de outubro de 2017

A inteligência bolchevique na Guerra Civil Russa

Novas informações do livro “História da Guerra Civil Russa 1917 – 1922”, de Jean-Jacques Marie:

Na primavera de 1921, quando os bolcheviques esmagam a insurreição camponesa de Tambov, não utilizaram apenas canhão e metralhadoras. Para tentar separar a massa dos camponeses – majoritariamente semianalfabetos – dos revoltosos, eles editam 326 mil exemplares de 10 panfletos, 109 mil exemplares de 11 brochuras, 2 mil de uma bandeirola, 15 mil exemplares de cada um dos 12 números do jornal “O Agricultor de Tambov” e 10 mil exemplares de cada um dos 16 números do jornal especial da direção política do exército.

Mas exército comandado por Trotsky ia além do nível da informação.

Um soldado dos contrarrevolucionários escreveu:

...os Vermelhos se mostraram mais inteligentes e mais perspicazes: impiedosos com os “contras” de todo tipo, eles compreendiam a necessidade de entrar em acordo, de tempos em tempos, com o cidadão comum, que constituía 90% da população do país que queriam conquistar.

(...)

Os Vermelhos eram movidos pela simples aritmética somada à consciência de classe: de seu lado do front, foram essencialmente a burguesia e a intelligentsia que sofreram todas suas medidas repressivas e requisições; ora, essas categorias eram quantitativamente insignificantes e não contavam com nenhuma simpatia das camadas populares.

(...)

O povo de baixo não se compadecia das vítimas do terror vermelho; o destino delas lhe era indiferente e, em sua memória, os carrascos foram os Brancos. Assim, a política interna dos bolcheviques entre os anos 1918 e 1920 era justificada e foi efetivamente sensata, eu diria até que foi moderada.

Enfim, muito mais que baseada na bala, foi uma vitória classista.

Leia também: A Revolução Russa aprende a ser cruel

25 de outubro de 2017

A ditadura do mito do socialismo ditador

Em tempos de comemoração do centenário da Revolução Russa, é importante combater a ideia de que, para os marxistas, socialismo seria sinônimo de ditadura. O mesmo que trocar emprego, saúde, educação, por partido único, censura, pouca liberdade, sindicatos controlados pelo Estado. Uma concepção que interessa aos conservadores difundir, mas que também é adotada por setores de esquerda.

É verdade que Marx, Engels e Lênin falavam em “ditadura do proletariado”. Mas nenhum deles usou este conceito com o significado de regime autoritário. Os três revolucionários utilizavam o conceito de ditadura referindo-se à dominação burguesa em geral. Não se referiam a formas de governo, mas a seu conteúdo de classe. Deste ponto de vista, o parlamentarismo inglês, o presidencialismo estadunidense ou uma ditadura latino-americana são equivalentes. Todas são formas de dominação burguesa.

Ou seja, ditadura do proletariado é sobre quem dever dominar. No caso, os trabalhadores. Não diz respeito às formas como os trabalhadores devem dominar. Em relação a isso, Marx e Engels sempre deram poucas indicações. Consideravam muito difícil antecipar como seria um futuro Estado dos trabalhadores.

Mas quando perguntados sobre o que entendiam por ditadura do proletariado, Marx e Engels respondiam: ”Olhem para a Comuna de Paris”.

E o que era a Comuna de Paris? Uma república democrática. Não uma república democrática burguesa, mas um regime democrático em que a classe dominante seria a classe trabalhadora. E foi esta ideia geral que Lênin também adotou em seu livro “O Estado e a Revolução”.

Então, como foi que chegamos à atual confusão? É o que procura abordar um texto que você pode ler, clicando aqui.

Leia também: O que fazer com “O que fazer?” de Lênin?

24 de outubro de 2017

A Revolução Russa aprende a ser cruel

Segundo Trotsky, a Revolução Russa não nasceu cruel, mas aprendeu a ser cruel. Principalmente, com a guerra civil que se seguiu.

Quando os sovietes tomaram o poder em São Petersburgo, registrou-se apenas uma morte. No dia seguinte, em Moscou, foram 300 revolucionários mortos. Era a primeira aula de brutalidade.

Abaixo, alguns episódios descritos no livro “História da Guerra Civil Russa 1917 – 1922”, de Jean-Jacques Marie.

No rastro da tomada do poder pelos sovietes na Rússia veio a revolução finlandesa em janeiro de 1918. Mas o levante foi massacrado.

Cerca de 80 mil Vermelhos são levados para os primeiros campos de concentração da guerra civil: 12 mil morrem de fome e tifo, sem contar os que são fuzilados.

(...)

Tribunais de exceção constituídos em meados de maio de 1918 julgam em alguns meses 67.788 Vermelhos: 90% são condenados à prisão, sem contar 555 condenados à morte, a metade é executada.

(...)

Os acontecimentos da Finlândia soam como um aviso para os bolcheviques: se forem vencidos, serão liquidados e massacrados como os operários socialdemocratas de esquerda finlandeses.

Em 12 de janeiro de 1918, em Kiev, Ucrânia, 5 mil operários bolcheviques se rebelam e proclamam o poder dos sovietes.

Em 22 de janeiro, tropas contrarrevolucionárias reagem. Fuzilam 1.500 operários.

No dia seguinte, o Exército Vermelho toma Kiev de assalto. Em represália ao assassinato dos 1.500 operários, 400 oficiais são fuzilados.

Finalmente, em 23 de fevereiro, os soldados vermelhos retomam o controle total da região. As forças contrarrevolucionárias fogem.

Lênin acreditava que a guerra civil estava terminada, mas era apenas o início de um aprendizado brutal.

Leia também: Soldados chineses na Guerra Civil Russa

Soldados chineses na Guerra Civil Russa

Do livro “História da Guerra Civil Russa 1917 – 1922”, de Jean-Jacques Marie:

Uma caricatura monarquista, muito divulgada na época da guerra civil, representa Trotsky, com o nariz bem adunco e a estrela de Davi no peito, com as pernas sobre o muro do Kremlin; abaixo dele, montanhas de crânios. Sete soldados do Exército Vermelho enfiam suas baionetas nesses crânios. Cinco deles são chineses, facilmente reconhecíveis pelos olhos puxados e pela trança. Os historiadores nacionalistas russos repetem um após o outro que a vitória dos bolcheviques na guerra civil se deu graças aos 300 mil estrangeiros dos batalhões e regimentos “internacionalistas”, compostos de chineses, húngaros, alemães – ex-prisioneiros de guerra –, ou coreanos, que haviam fugido de seu país, que sofria uma feroz ocupação japonesa. Em sua xenofobia, incluem frequentemente nesse grupo até mesmo regimentos de basquires e quirguizes, populações que faziam parte do Império Russo havia décadas. Eram tratados como indivíduos de segunda categoria, senão pior.

Mas esta terrível visão racista apoia-se em alguns elementos verdadeiros.

Em janeiro de 1918, em pleno campo de batalha, o general do Exército Vermelho, Iona Yakir, foi acordado ao amanhecer por gritos. Eram uns 450 chineses, que trabalhavam em uma indústria madeireira da região.

Três deles foram acusados de espionagem e fuzilados por tropas contrarrevolucionárias. Furiosos, resolveram se juntar aos “vermelhos”.

Eram “soldados formidáveis”, diz o livro:

O vizinho, o colega, o amigo ou o irmão tombam, e o soldado vermelho chinês, impassível e imóvel, arma seu fuzil e atira até o último cartucho. Os cossacos não fazem prisioneiros chineses; massacram todos, ou melhor, despedaçam-nos a golpes de sabre.

20 de outubro de 2017

Bolcheviques enfrentam soldados cossacos na cara e na coragem

Uma das forças mais importantes no cenário da Revolução de Outubro eram os cossacos. Este povo originário das estepes da Ucrânia e sul da Rússia eram famosos por sua coragem e bravura, mas também por sua independência. Seus chefes eram os “atamãs”

Durante o processo revolucionário, muitos cossacos ameaçavam se alinhar aos contrarrevolucionários, desconfiados da rebeldia bolchevique.

Sendo quase impossível vencê-los, era fundamental neutralizá-los. É o que mostra o episódio abaixo, retirado do livro “História da Guerra Civil Russa 1917 – 1922”, de Jean-Jacques Marie:

O bolchevique Dybenko, responsável pelo Soviete da Marinha do Báltico, acompanhado por um único marinheiro, desembarca na noite de 31 de outubro, às três da madrugada, no quartel dos cossacos do atamã Krasnov em Gatchina, a 30 quilômetros de Petrogrado. Convida os que estão acordados a ouvi-lo, apesar da grande hostilidade dos oficiais. Numa sala em que o contorno dos rostos é pouco a pouco apagado pela fumaça dos cigarros, ele resgata a história da revolução de fevereiro até outubro e denuncia a política do governo provisório. Alguns oficiais o interrompem várias vezes, gritando “Cossacos, não acreditem neles!”, “São traidores da Rússia!”, “Expulsem esses espiões alemães”, “Batam neles!”, mas ninguém ousa pegar as armas e abater os dois bolcheviques. À medida que Dybenko fala, outros cossacos acordam e vão encher a sala, pequena demais para todos. Eles ouvem atentamente, indiferentes às vociferações dos oficiais, e fazem perguntas. Dybenko responde durante cinco horas, até às 8 da manhã; os cossacos decidem permanecer neutros entre os bolcheviques e Kerensky. É uma vitória da palavra, ou seja, da política.

Ou uma vitória da coragem política.

Leia também: Revolução bolchevique: gradual e pela base

19 de outubro de 2017

Revolução bolchevique: gradual e pela base

No início de seu livro “Os bolcheviques no poder”, Alexander Rabinowitch, lembra que suas obras anteriores, “Prelúdio da revolução” e “Os bolcheviques chegam ao poder”:

...desafiaram as noções ocidentais predominantes sobre a Revolução de Outubro como um golpe militar cometido por um pequeno grupo de fanáticos revolucionários liderado brilhantemente por Lênin. Descobriram que, em 1917, o partido bolchevique em Petrogrado transformou-se em um partido político de massa e que, ao invés de ser um movimento monolítico marchando firme atrás de Lênin, tinha uma liderança dividida em alas de direita, esquerda, centro e moderada, cada uma das quais ajudando a moldar estratégias e táticas revolucionárias. Também revelaram que o sucesso do partido na luta pelo poder após a derrubada do tzar em fevereiro de 1917 devia-se, de forma muito importante, a sua flexibilidade organizacional, abertura e capacidade de resposta às aspirações populares, bem como a sua extensa rede de conexões junto a operários, soldados da guarnição de Petrogrado e marinheiros da Frota do Báltico. A Revolução de Outubro em Petrogrado foi menos uma operação militar do que um processo gradual enraizado na cultura política popular, baseado no desencanto generalizado com os resultados da Revolução de Fevereiro e, nesse contexto, na atração magnética exercida pelas promessas dos bolcheviques de paz, pão e terra para o campesinato e democracia de base exercida através de sovietes multipartidários.

Mas se é assim, pergunta Rabinowitch, como explicar a rápida transformação de todos estes elementos em seu contrário, em tão poucos anos? 

É esta questão que “Os bolcheviques no poder” pretende ajudar a responder. Voltaremos a ele.

Leia também: Mais momentos pouco épicos da Revolução de 17

18 de outubro de 2017

Os marxistas bem depois da época de Lênin

Últimos trechos do artigo de John Riddell sobre a Internacional Comunista dos tempos de Lênin.

Referindo-se aos atuais agrupamentos marxistas, ele afirma:

Normalmente, cada grupo é limitado a uma única vertente da tradição marxista. Eles tendem a se fragmentar ao longo do tempo. Aumentam em número, enquanto se envolvem em uma guerra de cada um contra todos. As ligações com a classe trabalhadora não são fortes. As divisões geralmente decorrem da sua dinâmica interna e não dos desafios da luta de classe. A democracia interna é muitas vezes menos desenvolvida do que no início do Internacional Comunista.

As diferenças programáticas entre tais agrupamentos não são claras. Cada corrente é definida principalmente por sua cultura e tradições políticas. Essa fidelidade dá a eles um perfil rígido, dificultando que aprendam com as mudanças nas lutas, corrijam seus rumos e unam-se a outras correntes.

Mostram pouca capacidade de resolver as diferenças através da experiência. As lideranças muitas vezes ficam distantes do controle das bases e tendem a ser perpetuar (...). A disciplina visa menos à unidade contra o inimigo da classe e mais a manutenção dos membros alinhados ao que deve ser dito e feito. O sucesso é definido não tanto pelas vitórias da classe como pela capacidade de crescimento do grupo, acúmulo de recursos e recrutamento dos melhores entre seus concorrentes marxistas.

Para superar esses problemas, diz Riddell, não adianta tratar a experiência da Internacional Comunista de Lênin “como uma cartilha”. Mas sua história “deveria servir para estimular nossa imaginação”.

Realmente, imaginação é importante. Mas é só uma das coisas que anda nos faltando, há muitos anos.

17 de outubro de 2017

O que fazer com “O que fazer?” de Lênin?

No final de “Outubro: história da Revolução Russa”, China Miéville refere-se ao romance “O que fazer?”, do escritor russo Nikolai Tchernyshevsky. “Este livro estranho, diz ele, “lança uma longa sombra”.

Foi do livro de Tchernyshevsky que Lênin emprestou o título para sua obra mais famosa sobre concepção de partido. Mas quando a Revolução de 1917 foi vitoriosa, “O que fazer?” já tinha 15 anos. E até seu autor o considerava ultrapassado.

É o que se nota, por exemplo, na coletânea "Doze Anos", publicada por Lênin em 1906. Num dos textos, ele procura responder aos críticos de seu famoso livro, afirmando: 

O erro principal dos que hoje polemizam com o “Que Fazer?” consiste em desligar por completo esta obra de uma situação histórica determinada, de um período histórico concreto do desenvolvimento de nosso partido que passou há muito tempo.

De fato, é difícil reconhecer no partido que liderou a tomada do poder pelos sovietes a concepção organizacional defendida por Lênin em “O que fazer”.

Um ótimo artigo escrito pelo marxista estadunidense Hal Draper procura explicar esse processo. Transformar o livro de Lênin em fórmula sagrada sobre organização partidária interessava tanto à contrarrevolução stalinista como a forças de direita.

Publicado por Draper em 1990, “O mito da ‘Concepção Leninista de Partido’ ou ‘O que fizeram com ‘O que fazer?’”, ainda não tem tradução para o português. Mas um resumo dele pode ser acessado aqui.

A argumentação de Draper pode ajudar a entender porque a “longa sombra” a que se referiu Miéville vem, na verdade, assombrando muitas gerações de socialistas.  

Leia também: O partido de Lênin era pouco “leninista”

16 de outubro de 2017

O capitalismo tem que morrer de “morte matada”

Da coluna de Pablo Ortellado, na Folha, em 10/10:

Num instigante estudo comparativo sobre o surgimento e o desenvolvimento dos impostos progressivos, Kenneth Scheve e David Stasavage (Taxing the rich: a history of fiscal fairness in the United States and Europe. Princeton: Princeton University Press, 2016) demonstraram, apoiados na história de vinte países, que a introdução de impostos progressivos e a consequente diminuição da desigualdade na Europa e nos Estados Unidos não se deveu ao chamado "efeito democrático" (pelo qual maiorias pobres com direito a voto imporiam um sacrifício aos mais ricos), nem a uma reação política à desigualdade crescente, mas a circunstâncias muito específicas do esforço de guerra, sobretudo durante as duas guerras mundiais.

Num contexto que era de turbulência e ameaças, as esquerdas conseguiram fazer prevalecer o argumento de que assim como os trabalhadores estavam se sacrificando, colocando a vida em risco nos campos de batalha, os empresários também deveriam se sacrificar, contribuindo para o esforço de guerra com impostos muito mais elevados sobre a sua renda e o seu patrimônio.

Ou seja, diminuição da desigualdade no capitalismo, só com muita matança de trabalhadores.

É mais ou menos o que afirmou Pedro Herculano de Souza em entrevista comentada na pílula Distribuição de riqueza, só com catástrofe.

Certa vez, o marxista estadunidense Fredric Jameson disse que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.

Mas isso só é verdade se o capitalismo morrer de “morte morrida”. Nossa única chance de salvação é que ele morra de “morte matada”.

Ou como disse Rosa Luxemburgo, ou é socialismo ou é barbárie!

5 de outubro de 2017

A Internacional Comunista na época de Lênin (2)

Voltando a John Riddell, historiador canadense socialista e editor de uma série de livros sobre a Internacional Comunista na época de Lênin. Mais um trecho do interessante artigo “Party democracy in Lenin’s Comintern – and now” (“Democracia partidária na Internacional Comunista de Lênin - e agora”), ainda sem tradução:

A Internacional Comunista e seus partidos procuraram funcionar de acordo com as normas do “centralismo democrático”. Este conceito foi entendido como democracia proletária na tomada de decisões e na escolha dos líderes, combinada com a unidade na realização de um curso de ação aprovado pela maioria. Os marxistas usam o mesmo conceito hoje. Mas no início da Internacional Comunista, o foco era diferente: sua principal preocupação era lidar com o burocratismo e o eleitoralismo.

As principais unidades integrantes dos partidos da Internacional Comunista fora da Rússia vieram do antigo movimento social-democrata. Esses partidos se livraram de suas alas reformistas, mas ainda preservaram muitas de suas estruturas e hábitos. Os partidos de onde vieram dedicaram sua energia principalmente às campanhas eleitorais e ao trabalho educacional associativo. Eram liderados por uma camada burocrática de funcionários enraizados acima de tudo na fração parlamentar, nos órgãos jornalísticos e nas lideranças sindicais. O centralismo democrático da Internacional Comunista procurou superar o burocratismo. Pretendia manter o trabalho parlamentar, jornalístico e sindical sob controle partidário; unificar liderança e base em um movimento homogêneo; e equipar o partido para intervir nas lutas de massa. 

Como se vê, as dificuldades relacionadas ao institucionalismo, inclusive sindical, e à burocratização de nossas organizações, vêm de longe. Só não podemos dizer o mesmo quanto a nossos jornais. Eles praticamente inexistem.

Leia também: A Internacional Comunista na época de Lênin

4 de outubro de 2017

Vamos (começar a) discutir “big data”?

Caio Almendra publicou no Facebook um ótimo texto sobre o “big data”, termo que se refere a um imenso conjunto de dados, cuja estruturação feita de forma adequada pode revelar informações detalhadas e valiosas sobre praticamente qualquer tema. Por exemplo, desde hábitos de consumo a preferências politicas de determinadas parcelas da população.

Aí vai um trecho:

O controle empresarial do big data, a commoditização, opera como o controle empresarial e commoditização operam em qualquer área: escolhem determinadas perguntas a serem feitas e ocultam outras. Como fazer o consumidor comprar como queremos é uma pergunta comum; como saber onde o consumo gera mais dano ambiental e como evitar esse dano, é a típica pergunta esquecida. Posso dar outro exemplo simples: o que o controle empresarial sobre a produção de medicamentos fez ao longo do século passado? Focou em doenças difíceis e caras de serem tratadas, abandonou as doenças que estatisticamente mais matam. Zilhares de remédios para um tipo específico de câncer, nenhum para a malária, doença que mais mata (e mata majoritariamente pobres de países periféricos e etnias oprimidas) no mundo. Agora que descobrimos o uso na medicina social do big data, o que o controle empresarial promete para nós? Uso do big data para salvar milhões de pessoas da malária, ou uso do big data para convencer as pessoas a comprarem mais e mais remédios inúteis ou questionáveis?

A resposta parece óbvia, mas recomenda-se a leitura da íntegra do texto, não só para conferir, como para aprender. Porque neste campo, como se já não bastasse tantos outros, a esquerda nem chega a engatinhar.