Doses maiores

31 de janeiro de 2023

Os homens-cobertor constroem o comunismo na prisão

Bobby Sands era a principal liderança da comunidade dos homens-cobertor, criada na prisão de Long Kesh, em Belfast, em 1978. Ele e seus companheiros protestavam espalhando suas fezes nas celas que ocupavam.

É o que relata o livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”, de Denis O'Hearn e Andrej Grubačić. Mas a resistência desses militantes do Exército Republicano Irlandês (IRA) também produziu momentos bonitos. 

A atividade noturna favorita dos detentos era o “livro da hora de dormir”, em que os melhores narradores contavam histórias depois que os guardas deixavam a ala. Do interior de suas celas, eles gritavam seus relatos, enquanto o restante ouvia e comentava.

Quando a história era boa, a narração podia se arrastar por muitas noites. Incluíam desde biografias de lideranças indígenas às aventuras de um desertor da marinha americana no Vietnã.

Dezenas de prisioneiros contrabandeavam centenas de histórias, poemas e desenhos todas as semanas. A produção cultural foi uma forma importante utilizada pelos homens-cobertores para se apropriar dos espaços prisionais e travar o confronto coletivo com as autoridades.

Sands compôs de cabeça o poema épico "O Crime de Castlereagh", com mais de cem versos. Além de recitá-los para seus companheiros, ele os escreveu em papéis de cigarro e conseguiu contrabandeá-los para serem publicados. 

Em 1980, Sands elegeu-se para o parlamento britânico, mesmo estando na prisão. Mas, logo depois, ele e mais nove companheiros morreriam em uma greve de fome. 

Uma linda história de resistência em meio a tanta imundície. Não à toa, Sands costumava dizer a seus companheiros que aquilo que haviam construído era o mais perto que chegariam de um verdadeiro comunismo.

Leia também: Os “homens-cobertor” e suas celas imundas

30 de janeiro de 2023

Os “homens-cobertor” e suas celas imundas

“Homens-cobertor”. Assim eram chamados alguns militantes do Exército Republicano Irlandês encarcerados na prisão de Long Kesh, em Belfast. Como ativistas políticos, eles se recusaram a vestir uniformes de prisioneiros comuns e adotaram cobertores como roupas.

Mas não ficou nisso. Eles jogavam sua urina por debaixo das portas. Os guardas a empurravam de volta com rodos, à noite, para molhar seus colchões. Despejavam fezes pela janela, os carcereiros as jogavam de volta. Para radicalizar, passaram a espalhar seus excrementos pelas paredes e tetos. 

Apesar dessa situação repugnante, a moral dos prisioneiros era elevada. Quanto mais despojados, mais debatiam, planejavam e formulavam respostas coletivas não só para enfrentar solidariamente as autoridades, mas para construir alternativas que se baseavam principalmente na comunicação oral. 

Aprender irlandês foi fundamental porque os presos podiam se comunicar sabendo que os guardas não os entenderiam. No final de 1977, apenas alguns deles eram fluentes em irlandês. Em 18 meses, quase quatrocentos dominavam o idioma. 

Isolados dos outros, os “professores” introduziam novas palavras gritando sua pronúncia e ortografia. Os prisioneiros escreviam nos pequenos espaços limpos de suas paredes, usando qualquer instrumento que pudessem arranjar, como um fecho de zíper. Eram práticas que só poderiam ter sucesso se todo o coletivo participasse.

Tudo isso aconteceu em 1978 e está no livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”, de Denis O'Hearn e Andrej Grubačić. Para os autores, esse nível de solidariedade foi causado pela própria repressão carcerária. Particularmente, pelo completo despojamento das comodidades da vida imposto aos prisioneiros.

A seguir, a intensa produção cultural promovida pelos homens-cobertor em suas celas imundas, mas cheias de dignidade humana.

27 de janeiro de 2023

O “protesto do cobertor” irlandês

Mais um exemplo de experiência exílica retirada do livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”, de Denis O'Hearn e Andrej Grubačić. Desta vez, na Irlanda do Norte.

Em 1976, detentos do Exército Republicano Irlandês (IRA) na prisão de Long Kesh, em Belfast, passaram a ser considerados prisioneiros comuns. Começava uma longa luta pelo direito a serem reconhecidos como presos políticos. 

De 1976 a 1978, os espaços prisionais de Long Kesh foram apropriados para fins coletivos: troca secreta de correspondência com o lado de fora e contrabando de pequenos confortos, como tabaco, cargas de canetas, papel para escrever, materiais de leitura e envelopes plásticos para proteger de fluidos corporais objetos escondidos dentro do corpo dos prisioneiros. Até rádios e câmeras miniaturizados eram contrabandeados.

Essas práticas elevaram a moral coletiva e aumentaram a solidariedade. As visitas tornaram-se ataques ao território inimigo e o contrabando, um grande risco assumido em nome da comunidade.

Os prisioneiros não apenas obtinham coisas materiais, como também alimentavam seu orgulho coletivo. Desse modo, alguns “luxos” foram redefinidos como bens coletivos e não como itens de consumo individuais.

Mas em 1978, um membro do IRA se envolveu numa briga com um carcereiro e foi isolado numa cela. Surgiram denúncias de que ele estava sofrendo tortura e os outros prisioneiros reagiram. Recusando-se a usar uniformes de presos comuns, os detentos passaram a vestir apenas cobertores, deixaram de fazer higiene pessoal e espalhavam fezes e urina pelas celas. Era uma forma de transformar o despojamento político que sofreram em uma ofensiva insuportável para seus carcereiros.

Na próxima pílula, mais sobre esse protesto muito ousado. E muito sujo.

Leia também: Espaço exílico e comunismo prisional

26 de janeiro de 2023

Espaço exílico e comunismo prisional

No livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”, Denis O'Hearn e Andrej Grubačić relatam “alguns resultados inesperados do isolamento nas prisões”. Referem-se, especificamente, aos detentos confinados em pavilhões de segurança máxima. 

Segundo eles, prisioneiros nessa situação viveriam experiências de “vida nua”, em que só o mínimo de subsistência é garantido pelas autoridades penitenciárias (comida, abrigo, entretenimento rudimentar). Essas mesmas circunstâncias também os isolam do consumismo capitalista e os afastam da influência da ideologia dominante. 

Essa forma de despossessão radical levaria os encarcerados a uma situação de exílio no interior mesmo do isolamento a que já estão condenados. Condição propícia para o desenvolvimento do que os autores chamam de “produção exílica”. Esta envolveria desde o acesso a coisas como tabaco e materiais de leitura e escrita a atividades solidárias como música, narração de histórias e autoaprendizagem. Tudo viabilizado clandestinamente e pela criação de “espaços” autônomos com o uso criativo da linguagem e do tempo.

Para superarem seu isolamento, os prisioneiros frequentemente usam seus idiomas originais como código (irlandês, curdo, basco) e “sistemas de remessas” furtivos, mas engenhosos, para unir espaços autônomos e criar um único território solidário para além do controle das autoridades.

Nesse caso, “acordos de lealdade” ocorreriam entre os membros da comunidade exílica, familiares e a sociedade civil fora da prisão. Por outro lado, uma vez que as condições melhoram, as práticas comunitárias podem diminuir. Além disso, as autoridades penitenciárias podem introduzir privilégios e penalidades de forma a dividir os detentos.

Processos desse tipo, afirmam os autores, o historiador Carlo Ginzburg chamou de “comunismo prisional”.

Nas próximas pílulas, veremos alguns exemplos desse fenômeno. 

Leia também: O arco-íris anticapitalista dos zapatistas

25 de janeiro de 2023

O arco-íris anticapitalista dos zapatistas

Em seu livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”, Denis O'Hearn e Andrej Grubačić lembram que para reduzir sua dependência do Estado, os zapatistas criaram fortes relações com o “mundo exterior”. As organizações internacionais, e não as comunidades de base, fornecem a maior parte dos fundos necessários para a sustentação das infraestruturas comunitárias autônomas. 

Essa barganha exílica exige que os zapatistas sirvam não apenas à sua base, mas também a seus apoiadores. Tal situação viria a se refletir na “Outra Campanha”, anunciada em junho de 2005. A partir dela as declarações zapatistas já não visavam apenas os pobres, mas também um “arco-íris” de “outros”, incluindo os movimentos feminista e LGBTQIA+. Era um novo “acordo de lealdade”, dizem nossos autores.

Mas já havia precedentes. É o caso da Lei Revolucionária das Mulheres do EZLN, “imposta” pelas mulheres zapatistas em 8 de março de 1993 e frequentemente descrita como a “revolução antes da revolução”.

O'Hearn e Grubačić também ressaltam o surgimento do termo “capitalismo”, até então ausente nos pronunciamentos do movimento. Segundo o EZLN, a Outra Campanha veio para “nomear o inimigo, o capital, e o aliado deste inimigo, a classe política (...). E então, como alguém disse uma vez, teremos apenas conquistado o direito de recomeçar, mas teremos que começar por onde sempre se deve começar, por baixo”.

Infelizmente, a persistência da resistência zapatista não representa garantia de uma vitória final. Trata-se de uma fissura no sistema capitalista mundial que dificilmente será tolerada por muito tempo. Por isso, é urgente a criação de novos espaços exílicos ou seu equivalente.

Na próxima pílula, espaços exílicos em prisões.

Leia também: A força exílica da autonomia zapatista

A força exílica da autonomia zapatista

Em 12 de janeiro de 1994 entrava em vigor o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) entre México, Canadá e Estados Unidos. No mesmo dia, um grupo de indígenas declarou guerra ao governo mexicano e ocupou alguns municípios do estado de Chiapas. 

Era a insurreição do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Suas reivindicações: trabalho, terra, moradia, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz. 

Este é mais um caso que Denis O'Hearn e Andrej Grubačić abordam em seu livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”.

O EZLN evita a violência, mas permanece uma força guerrilheira comprometida com a auto-organização territorial e a autogestão nas esferas da política, justiça, educação, saúde e economia. Sua autonomia caracteriza-se por práticas cooperativistas, organização descentralizada do território, assembleias democráticas e estruturas igualitárias de produção, distribuição e abastecimento. Ao contrário dos cossacos, sua barganha de lealdade se dá mais com a sociedade civil nacional e internacional do que com o Estado. 

Enquanto os militares mexicanos tentavam reprimir o levante, milhões de pessoas em todo o mundo exigiam a suspensão dos ataques aos zapatistas. O clima pós-Guerra Fria impossibilitou ao Estado usar força militar suficiente para aniquilar o movimento, como ocorria durante as décadas de 1970 e 1980. 

Para os autores, a persistência dos zapatistas como um espaço exílico só foi possível porque surgiu durante a crise e reestruturação da economia mundial, com uma nova hierarquia de poder hegemônico, novas lideranças econômicas e novas divisões globais e regionais do trabalho.

Certamente, um dos mais importantes fenômenos de resistência popular em muitas décadas. Voltaremos a ele, na próxima pílula.

Leia também: O espaço exílico dos cossacos do Don 

23 de janeiro de 2023

O espaço exílico dos cossacos do Don

Em seu livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”, Denis O'Hearn e Andrej Grubačić relatam alguns exemplos daquilo que chamam de “espaços exílicos”.

No final do século 16, cada vez mais camponeses procuravam abrigo na região do Don, na Rússia. Nela viviam cossacos cujo território estava aberto a receber refugiados de todo tipo: piratas, fugitivos e pequenos criminosos. Reunidos, formavam uma sociedade sem senhores e fora do alcance da lei.

A região do Don representava uma promessa de terra e liberdade. De cooperação, autossuficiência e mutualismo, em vez de servidão. Mas também era um lugar onde os cossacos resistiam a diversos povos que ameaçavam a integridade territorial russa. Formava uma “zona tampão” entre o império e potenciais invasores. Em troca de detê-los, o estado czarista concedia-lhes autonomia territorial. Um pacto de lealdade.

O problema é que os cossacos enfrentavam grande escassez de recursos essenciais. Dependiam do Império Russo para o suprimento de muitos deles. Aos poucos, o poder czarista se aproveitou disso. No final do século 19, a autonomia cossaca já não existia.  

A experiência de dissolução do exílio cossaco é um antídoto para o utopismo ingênuo, concluem os autores. Aponta para os perigos das sociedades de exílio, incluindo os riscos envolvidos nas políticas de barganha de lealdade. No entanto, mesmo aqui há vislumbres de esperança, afirmam eles. 

O surgimento de conselhos descentralizados no Don comprovam o que defendia Kropotkin. Para ele, o desejo humano de praticar a ajuda mútua está à espreita sob a superfície das instituições individualistas possessivas modernas ou pós-modernas. Sempre procurando oportunidades para surgir.

Na próxima pílula, a experiência exílica dos zapatistas. 

Leia também: Resgatar a alegria pública. Derrotar a tristeza capitalista

19 de janeiro de 2023

Resgatar a alegria pública. Derrotar a tristeza capitalista

“Propomos, como hipótese, a possibilidade de rachaduras estruturais no sistema-mundo capitalista, nos estados-nação e no sistema interestatal. Nelas, comunidades podem praticar a produção de espaços de fuga ou de ajuda mútua”. São os espaços exílicos, dizem Denis O'Hearn e Andrej Grubačić, em seu livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”.

Segundo eles, esses espaços não são imunes à intromissão e vigilância estatais, especialmente durante os períodos de maior atividade, como as eleições. Mas, muitas vezes, são locais de refúgio do estado e da sociedade “civilizada”. Representariam não apenas uma fuga do poder estatal, mas também uma tentativa de saída da totalidade das relações hierárquicas que formam a economia-mundo capitalista.

Pessoas “civilizadas” consideram os indígenas “preguiçosos”. Ficam indignados com as colheitas “fáceis” que permitem aos nativos despender esforços em rituais culturais em vez de “trabalhar”.

A isso, os autores respondem com uma citação do antropólogo Terence Turner, estudioso dos kayapó no Brasil. Segundo ele, para entender sociabilidades existentes nas franjas do capitalismo, “seria melhor começar com a definição ‘antropológica’ de Marx e Engels em ‘A ideologia Alemã’, na qual a produção é compreendida não apenas como produção dos meios de subsistência, mas de seres humanos e famílias, relações sociais de cooperação e novas necessidades também”.

Fora do capitalismo, dizem O'Hearn e Grubačić, uma vez alcançada a subsistência, o centro da economia é a produção de pessoas e comunidades, muitas vezes por meio da alegria coletiva. Já o desenvolvimento capitalista, costuma ser a tentativa “de substituir a alegria pública pela produção de mercadorias”.

Resgatar a alegria pública. Derrotar a tristeza da produção capitalista. Eis um bom programa revolucionário.

Continua...

Leia também: Espaços exílicos e o mutualismo de Kropotkin

18 de janeiro de 2023

Espaços exílicos e o mutualismo de Kropotkin

Em seu livro “Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo”, Denis O'Hearn e Andrej Grubačić adotam como uma de suas referências teóricas o conceito de mutualismo de Piotr Kropotkin, anarquista russo que viveu na virada do século 19 para o 20.

Em 1988, o evolucionista Stephen Jay Gould escreveu um texto sobre as ideias de Kropotkin em relação ao papel da competição entre as espécies, popularizada por Charles Darwin.

Kropotkin passou cinco anos na Sibéria, logo depois da publicação de “A Origem das Espécies “. Como admirador de Darwin, afirma Gould, ele esperava observar muita competição naquele ambiente, mas raramente a encontrou. Em vez disso, havia muitas evidências mostrando os benefícios da ajuda mútua ao lidar com uma aspereza exterior que ameaçava a todos igualmente e não podia ser superada por mecanismos análogos aos da guerra e da luta de boxe.

Gould cita um trecho da obra “Ajuda Mútua”, de 1902, em que Kropotkin diz:

Há muita guerra e extermínio ocorrendo entre as várias espécies; mas também há tanto, ou talvez até mais, apoio mútuo, ajuda mútua e defesa mútua. (...) A cooperação é tanto uma lei da natureza quanto a competição.

Com base nessa elaboração, O'Hearn e Grubačić argumentam que contra as formas de organização e regulação social que tendem a separar as pessoas, surgem periodicamente comunidades que se unem para se proteger contra as crueldades da natureza, mas, principalmente, contra proto-estados, depois estados, por fim, contra formas capitalistas de regulação e opressão.

Algumas dessas iniciativas os autores chamaram de espaços exílicos. Seriam exemplos disso os zapatistas e o MST. 

Voltaremos ao tema nas próximas pílulas. 

Leia também: Exílio: rumo a um futuro que ainda não existiu

17 de janeiro de 2023

Exílio: rumo a um futuro que ainda não existiu

“Vivendo nas Fronteiras do Capitalismo: Aventuras no Exílio e Ajuda Mútua” seria a tradução para o título do livro de Denis O'Hearn e Andrej Grubačić, pesquisadores da Universidade Oakland, da Califórnia. 

Publicado em 2016, mas sem tradução do inglês, a obra aborda o “exílio”, mas não no sentido em que costuma ser expresso. Segundo a definição dos autores, “vida exílica” seria “uma jornada de esperança rumo a um futuro que ainda não existiu”. Tais experiências envolveriam “pessoas que partiram ou foram banidas de lugares de descontentamento”.

Exemplos históricos bem conhecidos dessa fuga, dizem os autores, são cossacos russos e escravizados fugidos ou quilombolas. Exemplos contemporâneos incluem os zapatistas no México, ocupações de terras e até mesmo prisioneiros políticos. 

O livro examina algumas experiências exílicas, buscando aprender com elas tanto historicamente quanto na sociedade atual e o que elas podem nos dizer sobre futuros possíveis.

Uma das principais referências teóricas adotadas pelos autores é elaboração de Piotr Kropotkin, importante anarquista russo da virada do século 19 para o 20. Nascido príncipe, membro de uma família nobre, Kropotkin militou a vida toda pela igualdade e pelo mutualismo. 

Como lembram O'Hearn e Grubačić, o anarquista russo acreditava que por mais que os Estados e o Capital imponham sua lógica de individualismo possessivo; por mais que suas instituições trabalhem para separar os indivíduos da comunidade e uns dos outros, as pessoas vão sempre tentar recriar suas próprias instituições e práticas de ajuda mútua. Para Kropotkin, os maiores valores da espécie humana são a mutualidade, a sociabilidade, a solidariedade.

Na próxima pílula, mais sobre o livro e as concepções de Kropotkin.

Leia também:
A Comuna de Paris como cápsula do tempo
O neoliberalismo como modelo social cruel

16 de janeiro de 2023

Dando nome às serpentes

“É preciso dar nomes aos bois”, brincam alguns memes que circulam nas redes, referindo-se à necessidade de identificar o “gado” bolsonarista que atacou as sedes dos “Três Poderes” em 08/01/2023. É verdade. Mas se identificar e punir os golpistas é importante, também é fundamental fazer o mesmo com seus mandantes, seus financiadores.

E eles não são terroristas. Essa caracterização, não à toa rapidamente adotada pela grande imprensa, é perigosa. Costuma ser muito utilizada para acusar militantes de esquerda e dos movimentos sociais. O nome correto é “fascista”, designação que deixa muito menos dúvidas sobre de quem e do quê se trata.

Também não está claro que 93% “dos brasileiros condenam os ataques dos bolsonaristas”, como diz a pesquisa Datafolha divulgada em 11/01/2023. Afinal, segundo um levantamento da pesquisadora de Comunicação da PUC-Rio, Letícia Capone, “a narrativa de que os atos teriam sido praticados por infiltrados da esquerda alcançou 327 mil usuários no Facebook e Instagram”, logo após os episódios de Brasília.

Ao mesmo tempo, dados da consultoria Bites apontaram que, entre 9 e 12 de janeiro, 2,8 milhões de postagens no Twitter afirmavam que os bolsonaristas presos no DF estariam em “campos de concentração”.

Os dados acima aparecem em reportagem no jornal o Globo de 13/01/2023, permitindo à sua autora, a jornalista Luísa Marzullo, afirmar que após a tentativa golpista dos fascistas, o “bolsonarismo se reagrupa e domina narrativa nas redes”.

Tudo isso agravado pela notícia de que a rede de comunicação antifascista, tão importante durante a campanha eleitoral de Lula, foi desarticulada.

Mais importante que identificar bovinos é nomear e dar cabo das serpentes.

Leia também: O quebra-cabeça e as cabeças quebradas

13 de janeiro de 2023

O  abismo da estranheza

Vale da estranheza é uma hipótese surgida nos campos da estética, robótica e computação gráfica. Segundo ela, quando réplicas humanas se comportam de forma muito parecida, mas não idêntica, a seres humanos reais, provocam repulsa em observadores humanos. O "vale" em questão refere-se a um gráfico que mede a reação positiva de um ser humano diante da verossimilhança de um robô. A expressão foi criada pelo professor Japonês de robótica, Masahiro Mori.

A hipótese de Masahiro diz que, à medida que a aparência do robô vai ficando mais humana, a resposta emocional do observador humano em relação ao robô vai se tornando mais positiva e empática, até um dado ponto onde a resposta rapidamente se torna uma forte repulsa. Entretanto, à medida que a aparência volta a ser menos distinguível de um ser humano, a resposta emocional passa a ser positiva novamente.

São aquelas sensações que temos ao ver um personagem humano com pretensões realistas em um videogame e uma caricatura divertida de desenho animado. O primeiro dificilmente será mais simpático que a segunda. Essa área de resposta repulsiva gerada entre um caso e outro é o vale da estranheza.

A definição acima é da Wikipedia. A hipótese serve também para a produção de animações computadorizadas utilizadas em filmes, anúncios, avatares, videogames, etc.

Mas, talvez, seria o caso de utilizá-la para certos processos que acontecem no convívio social. Mais especificamente, naquelas relações que vão da familiaridade simpática ao estranhamento e, finalmente, caem na mais forte repulsa. E se isso valer para a atual polarização política, estamos perigosamente próximos de um abismo da estranheza.

Leia também: Uma etnografia dos delírios do fascismo nacional

12 de janeiro de 2023

Beatificação e feminicídio

“Saiba quem são os beatos brasileiros que podem virar santo em 2023”, diz o título de uma matéria do Globo, publicada no final de 2022.

A lista dos candidatos à santidade é composta por quatro mulheres e um único homem. Este último, bendito fruto entre elas, é D. Helder Câmara, cuja biografia é marcada pela fundação da CNBB, muitas obras sociais e por sua luta pela democracia em oposição à ditadura empresarial-militar de 1964.

A lista das mulheres começa com a mineira Isabel Cristina Mrad Campos, assassinada em 1982 por um homem que tentou estuprá-la, em Juiz de Fora. Ela tinha apenas 23 anos.

Já a cearense Benigna Cardoso da Silva, mais conhecida como Menina Benigna, morreu ainda mais jovem, aos 13 anos. Moradora do sertão do Cariri, foi assassinada a golpes de facão em 1941, depois de resistir a um rapaz de 17 anos que tentou violentá-la. 

Morte parecida teve a Irmã Lindalva. Em 1993, ela foi assassinada com 40 golpes de facão por um homem que a assediava sexualmente. Já Albertina Berkenbrock, foi morta em 1931, em Imaruí, Santa Catarina. Com apenas 12 anos, perdeu a vida após uma tentativa de estupro por um funcionário da fazenda do pai dela.

Não é preciso destacar o que há de comum entre essas mulheres recentemente beatificadas. Para realmente se tornarem santas, é preciso que sejam aprovadas em outros critérios, incluindo a realização de milagres. Mas se a condição de vítima de feminícidio fosse suficiente para alcançar a santidade, faltariam nichos para exibir as santas brasileiras nas igrejas católicas pelo mundo. 

Leia também: Machismo: do trabalhador braçal ao professor universitário

11 de janeiro de 2023

Por um Tribunal Popular da Pandemia

Eu não entendo que seja possíel retirar o país da crise social e institucional sem a reparação e a responsabilização pela crise da covid-19. Seria praticamente a mesma coisa que foi feita quando anistiamos e permitimos que agentes da ditadura continuassem sem a devida responsabilização. 

As palavras acima são de Paola Falceta, diretora da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas de Covid-19. Foram publicadas no portal Outras Palavras, em 13/12/2022.

Mais recentemente, o grupo Manifesto Coletivo lançou o abaixo-assinado “Anistia Nunca Mais”, no qual afirma:

O Brasil criou seus impasses por meio do esquecimento. Como se não falar, não julgar, não elaborar, pudesse nos garantir alguma forma de paz. Foi assim em vários momentos de sua história, criando uma verdadeira compulsão de repetição. As violências coloniais nunca foram objeto de elaboração devida. Da mesma forma, as violências da ditadura militar foram caladas através de uma anistia que, longe de ter sido resultado de algum “acordo nacional”, foi fruto de uma imposição dos próprios militares e da conveniência de seus aliados civis. Este é um país de silêncio.

O grupo defende uma mobilização popular urgente pela responsabilização do governo Bolsonaro pelos crimes cometidos durante a pandemia.

“Brasil Nunca Mais” era o nome do dossiê que revelou os crimes da ditadura empresarial-militar de 1964. Esse ato de coragem de um punhado de militantes contribuiu para a grande mobilização popular pelo fim da ditadura. Mas foi insuficiente para reverter a vergonhosa anistia que livrou o pescoço de seus carrascos. Não podemos permitir que isso se repita. É importante engrossar o abaixo-assinado. Mais importante, engrossar as mobilizações. “Sem Anistia!”

Leia também: Anistia: outro aniversário de uma lei muito podre

10 de janeiro de 2023

Se Deus é brasileiro, o diabo é patriota

Está em fase de finalização o filme “Deus ainda é brasileiro”, continuação de “Deus é brasileiro”, de 2003. Ambos de Cacá Diegues. 

Com Antônio Fagundes no papel principal fazendo dupla com o então estreante Wagner Moura, o primeiro filme foi sucesso de público. Lançado logo depois da posse do primeiro governo Lula, era possível ver na produção uma espécie de símbolo da época que se iniciava. “Cheia de esperanças por concretizar e sem abrir mão de alguma astúcia para desviar-se dos percalços que estão por vir”, dizia um texto de minha autoria, publicado na mesma época. 

Trata-se de “Deus é brasileiro e quer férias”, que aproveitava a trama da produção para arriscar uma avaliação sobre a forma como a religiosidade judaico-cristã estaria se manifestando na vida social contemporânea. Segundo o texto, diante de um mundo cada vez mais desencantado, privado de forças mágicas, as pessoas poderiam se sentir convocadas a assumir o fardo de conduzir seu próprio destino.

O problema é que o esvaziamento do sentido religioso também vinha ocorrendo em outras esferas de organização da vida social, como as da política, do trabalho e dos laços comunitários. E o conservadorismo passou a utilizar o fanatismo religioso para preencher esses vazios existenciais. Fenômeno que viria a se manifestar como forte onda ultraconservadora, cerca de uma década depois. E se Deus parecia brasileiro no começo do século, passados 20 anos, seu diabólico adversário se revelou patologicamente patriota. 

De qualquer maneira, talvez o texto ainda mereça uma leitura: clique aqui para acessar.

Leia também: Sou o Deus que transtorna, diz o Capital

9 de janeiro de 2023

O Lula empossado e o Lula possuído

Lula subiu a rampa acompanhado de uma mulher negra, liderança dos catadores de materiais recicláveis; do cacique Raoni; de um menino negro; um metalúrgico; um professor; uma cozinheira e um militante em defesa de pessoas com deficiências.

Todos encarnados em representatividade. Mas quem viu a cena do ponto de vista da sagrada tradição das lutas populares, enxergou muito mais gente subindo aquela rampa.  

Estavam presentes os espíritos de Palmares, Canudos, Contestado, Conjuração Baiana, Revolta Malê, Cabanagem, Sete Povos das Missões. Também compareceram Sepé Tiaraju, Zumbi, Marighella, Chico Mendes, Dorothy Stang, Marielle, Bruno, Dom e muitos outros que adotaram o ex-metalúrgico e eterno sertanejo como seu cavalo de santo. Aquele que recepciona a energia de resistência popular. Aquela que nunca se acaba, apenas se transforma.

É certo que também havia os espectros de capitães-do-mato, bandeirantes, cangaceiros, jagunços, carrascos, torturadores e fascistas. Pois a mediunidade de Lula encarna as contradições da luta de classes da história nacional. Atrai não apenas os bons espíritos, mas também arrasta consigo os piores.

Lula tomou posse ao mesmo tempo em que era possuído. Governo de frente ampla pode até ser de salvação nacional, mas tanto invoca como é presa de coisas ruins.

É verdade que, durante a posse, o ar estava leve e limpo como nas matas guardadas pelos orixás e encantados. Mas criaturas malignas continuam circulando pelo terreiro nacional. Foi o que se viu ontem, na Praça dos Três Poderes. Por algumas horas, imperou o poder trevoso do fascismo bolsonarista, enquanto as forças da ordem conjuravam a desordem.

É resistência, povo lutador! Mbaraeté! Empunhemos com firmeza o machado de Xangô!

Leia também: Lula, o cavalo do terreiro nacional