Doses maiores

28 de fevereiro de 2018

O Alto Xingu e as utopias possíveis

O Alto Xingu é uma área do nordeste do Mato Grosso que integra o Parque Indígena do Xingu. Segundo o livro “1499: O Brasil antes de Cabral”, de Reinaldo José Lopes, “três dos grandes troncos linguísticos da América do Sul estão representados lado a lado nesse complexo”.

Segundo a autor, seria como se um país equivalente a metade da Suíça:

...abrigasse ao mesmo tempo falantes do inglês e do português (línguas indo-europeias), do hebraico e do siríaco (idiomas semitas), do zulu e do suaíli (línguas africanas da família nígero-congolesa) — e com um bolsão de falantes de basco, só de lambuja.

E nem por isso, diz ele, ninguém ali se odeia ou sai matando uns aos outros, como acontece em muitas regiões multiétnicas pelo mundo.

No passado, a região foi ainda mais complexa. Entre os séculos 13 e 16, havia vilas dez vezes maiores que as aldeias atuais, ocupando uma área de uns 50 hectares. Em seu auge, o lugar teria chegado a mais de 50 mil habitantes. Mais ou menos, a população de Lisboa no começo do século 16.

Em 1723, o bandeirante paulista Pires de Campos escreveu que os xinguanos eram:

...muito asseados e perfeitos em tudo que até as suas estradas fazem muito direitas e largas, e as conservam tão limpas e consertadas que se lhe não achará nem uma folha.

Seriam cidades esses lugares? Sim, diz Lopes:

...desde que se imagine um tipo de urbanismo “espalhado”, em que existe uma transição gradual e suave entre áreas densamente habitadas, áreas rurais e regiões florestadas.

Ótima dica para quem procura referências para utopias possíveis.

27 de fevereiro de 2018

Viva Marx, o demônio bicentenário!

Em 5 de maio próximo, completa-se o bicentenário de nascimento de Karl Marx.

Em 1838, Engels e Edgar Bauer escreveram um poema que descrevia o então jovem de 20 anos desse modo: “O velho camarada de Trier, em fúria vociferando / Seu punho maligno ele brande, e grita interminavelmente / Como se dez mil demônios o agarrassem pelos cabelos...”

Marx casou com Jenny von Westphalen após longos sete anos de namoro. A demora devia-se à oposição de ambas as famílias. A dela, aristocrata, poderosa e extremamente reacionária, não gostava das ideias perigosas do pretendente.

Quanto à família de Marx, seu pai temia que o “espírito demoníaco” do filho fosse incompatível com uma vida doméstica feliz. Uma previsão baseada na incapacidade do filho em conviver com as injustiças que via a sua volta sem lhes dar combate. Essa disposição realmente viria a lhe custar os meios de sobrevivência e tornar raros os momentos de paz, sempre perseguido pelas polícias políticas da época.

Mas essa inquietação combativa de Marx também era partilhada por Jenny, uma mulher cujo brilho humano e intelectual ainda está por ser reconhecido. Nem nos piores momentos, incluindo a perda de filhos e temporadas sem ter o que comer, ela teve qualquer dúvida ou arrependimento quanto a manter-se ao lado daquele que escolhera como seu companheiro.

Alguma pílulas trouxeram esses momentos da vida de Marx e sua família.  Mas a maioria delas trata, principalmente, da tradição revolucionária por ele inaugurada. Ao nos aproximarmos de seu centenário, é sempre bom lembrar: Marx foi antes de tudo, um revolucionário. Um demônio a atormentar os exploradores e poderosos.

26 de fevereiro de 2018

Nossa privacidade no lixo

”O Lixo” de Luis Fernando Veríssimo, do livro "O analista de Bagé":

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora...

No trecho acima, faça algumas adaptações e troque a palavra “lixo” por “Facebook” ou outra rede virtual semelhante. Talvez, fique claro como nosso direito à privacidade virou… lixo.

Não deixe de ler a íntegra da crônica, clicando aqui.

Leia também: As cercas da internete

23 de fevereiro de 2018

Vêm aí as eleições zapeadas

 Zapear significa mudar rápida e repetidamente de canal de televisão ou estação de rádio para encontrar algo interessante. Não fosse por essa definição anterior, zapear hoje poderia ser enviar um zap pelo WhatsApp.

Em 16/02/2018, no Globo, Pedro Dória, informou que em maio do ano passado o WhatsApp tinha 120 milhões de usuários no Brasil. E que, em janeiro, éramos quase 147 milhões de eleitores. Deste total, o articulista imagina que pelo menos 70% utilizem o aplicativo.

O problema, diz Dória, é que o WhatsApp é:

...o meio de comunicação digital mais difícil de monitorar. Temos como analisar a disseminação de dados pelo Facebook, pelo Twitter, pela web. O WhatsApp, dedicado a conversas privadas, não raro em grupos, é fechado.

Em 19/02/2018, Mauricio Moura deu entrevista ao El País. Executivo da Ideia Big Data, consultoria com experiência em campanhas nos EUA e no Brasil, ele acha que o “WhatsApp vai ser mais decisivo na campanha brasileira do que o Facebook”.

Segundo Moura, vai “ter muita fake news” e a melhor coisa para combatê-las é o contato direto:

Em todos os lugares em que a mensagem contra as fake news foi cara a cara, o grau de convencimento é monstruosamente maior do que mandar um WhatsApp.

Até uns 25 anos atrás, o “cara a cara” ainda era uma especialidade da esquerda. Hoje, boa parte de nós se limita a zapear mensagens para nós mesmos. Nossas interações presenciais restritas a contatos superficiais, determinados pelo calendário eleitoral.

Enquanto isso, muitos eleitores pulam de zap em zap até cair no colo dos conservadores.

22 de fevereiro de 2018

A “terra preta” do índio e a terra vermelha do agronegócio

Mais informações interessantes do livro “1499: O Brasil antes de Cabral”, de Reinaldo José Lopes.

Desta vez, sobre a chamada “terra preta de índio”. São “camadas muito escuras de solo, às vezes com mais de 1 metro de profundidade, com quantidades relativamente elevadas de matéria orgânica”, explica Lopes.

É um tipo de solo muito mais fértil do que quase todos os demais da Amazônia. Alguns de seus nutrientes possuem níveis várias vezes superiores aos dos solos vizinhos. E é capaz de “segurar” com eficiência esses nutrientes por séculos e até milênios.

A terra preta está presente em quase toda a calha principal do rio Amazonas, na ilha de Marajó, em Rondônia, no Acre, no Alto Xingu e nas regiões amazônicas de Guianas, Peru, Colômbia.

São 12,6 mil quilômetros quadrados (dez vezes a área do município de São Paulo).

A terra preta é evidência importante de que “partes consideráveis da mata amazônica “— incluindo aquelas que nunca foram tocadas por uma motosserra do século XXI — são ‘culturais’ ou, se preferirmos, antropogênicas”. Muito provavelmente, produto do “lixo dos assentamentos” indígenas acumulado desde alguns séculos Antes de Cristo.

Teria, portanto, uma origem não intencional, cujo potencial de uso para lavoura foi percebido pelas populações amazônicas, muito antes do início da invasão europeia.

“Experimentos piloto sugerem que essa ‘tecnologia arqueológica’ poderia ser ressuscitada e ajudar a agricultura familiar a se tornar mais produtiva e sustentável”, afirma Lopes.

Mas para isso, podemos concluir, precisaríamos abandonar as atuais monoculturas destrutivas controladas pelos gigantes do agronegócio. Um tipo de exploração baseada na terra vermelha, tingida pelo sangue de indígenas e trabalhadores rurais.

Leia também: A conquista pelo estupro

21 de fevereiro de 2018

A inteligência artificial dominada pela estupidez racista

Saiu no Globo, em 20/02/2018:

Um vídeo contendo dicas sobre como a população negra das comunidades do Rio deve agir durante a intervenção na segurança pública do Rio viralizou na internet neste fim de semana. (…) Nas imagens, Edu Carvalho Spartakus Santiago e AD Junior ensinam, por exemplo, como se portar numa blitz ou numa abordagem feita por policiais ou agentes das Forças Armadas.



No mesmo dia, outra matéria falava sobre problemas em programas de reconhecimento facial. Um estudo da Universidade Stanford e do Instituto de Tecnologia de Massachussetts:



...com três programas disponíveis no mercado mostra que a raça e o gênero influenciam os resultados. Em testes com homens brancos, o erro nunca foi superior a 0,8%, mas com mulheres negras, as taxas de erro foram de 20% num software e de mais de 34% nos outros dois.


Uma das companhias avaliadas alega que o sistema tem precisão acima de 97%, mas a base de dados utilizada para alimentá-lo era composta 77% por homens e 83%, brancos.

Ou seja, para os algoritmos racistas quase tudo o que não seja branco e masculino não passa de um borrão. Assim como também é um borrão a população negra e pobre segundo os padrões de nossa “inteligência policial”. Um alvo amorfo, mas sempre suspeito e, muitas vezes, sujeito ao cumprimento de penas definidas e executadas de modo sumário.

Por fim, para mostrar quais valores estão em jogo em nossa sociedade, saibam que a Cargil está desenvolvendo um programa de reconhecimento facial para vacas. A ideia é identificar os animais e acompanhar seus padrões de alimentação, bem como comportamento geral.

Leia também:
Inteligência artificial, com spoiler

20 de fevereiro de 2018

A moda anticapitalista não é anticapitalista

“E se você organizasse um protesto e todos comparecessem?” é o título de um capítulo do livro “Capitalist Realism: Is There No Alternative?”. Ainda sem tradução do inglês, o livro do teórico e escritor britânico Mark Fisher procura mostrar como o que ele chama de realismo capitalista cria uma espécie de:

...atmosfera generalizada, condicionando não só a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação, e atuando como uma espécie de barreira invisível que restringe o pensamento e a ação.

Há poucas coisas tão disseminadas no capitalismo como o anticapitalismo, provoca o autor. Um exemplo seria a animação “Wall-E”, da Disney/Pixar, de 2008:

O filme mostra um planeta Terra tão despojado que os seres humanos já não são capazes de habitá-lo. O filme não deixa a menor dúvida. O capitalismo e as corporações de consumo (...) são responsáveis por essa depredação. Os seres humanos exilados no espaço sideral são infantis e obesos, interagindo por meio de telas flutuantes, deslocando-se em cadeiras motorizadas e tomando uma bebida indeterminada em grandes copos (...). A sátira parece ser dirigida aos próprios espectadores do filme, o que levou alguns observadores de direita a condenar a Disney/Pixar por atacar seu próprio público. Mas esse tipo de ironia mais alimenta que desafia o realismo capitalista. Um filme como Wall-E exemplifica o que Robert Pfaller chamou de "interpassividade": o filme exerce o anticapitalismo em nosso nome, permitindo que continuemos a consumir impunemente.

Ou seja, se fosse convocada uma manifestação anticapitalista à qual todos comparecessem, muito provavelmente ela não representaria uma verdadeira ameaça ao capitalismo.

19 de fevereiro de 2018

A história como tragédia, farsa e fake

Segundo Hegel, a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa.

Marx utilizou a frase em “O 18 Brumário” tendo como alvo Luís Bonaparte, cuja mediocridade era ainda mais acentuada pela pretensão de ser sucessor de seu tio Napoleão.

Mas em sentido mais geral, Marx utilizou a frase de Hegel para se referir a momentos históricos em que os:

...homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.

Na verdade, são estes momentos que se repetem, não a história. Um exemplo é a recente decretação da intervenção federal no Rio de Janeiro. Não falta quem queira vê-la como reencarnação do golpe de 64.

De um lado, aqueles que esperam uma reedição da ditadura militar para trancafiar e torturar lideranças das “classes perigosas”. Fingem desconhecer, porém, que isto já acontece há muito tempo, e ganhou considerável reforço com intervenções federais semelhantes, decretadas ainda durante os governos petistas.

De outro lado, há quem espere que a reencarnação de 64 acorde uma grande reação popular capaz de reverter a onda conservadora e abrir caminho para um retorno eleitoral da esquerda oficial.

Estes só não parecem lembrar que se a reação popular não veio em 64, quando o golpe foi pura tragédia, dificilmente viria agora, quando se apresenta em trajes pós-carnavalescos.

Acrescente-se a tudo isso a avalanche de versões tragicômicas que tomou as redes virtuais sobre o evento e teremos a mais nova variação da frase de Hegel. A história que já se repetiu como farsa, quase imediatamente, torna-se fake.

16 de fevereiro de 2018

Seja consciente, não consuma açúcar escravo

Publicado em 1944 por Eric Williams, “Capitalismo e escravidão” foi o primeiro livro a demonstrar a profunda vinculação entre o nascimento do capitalismo industrial na Europa e a escravização negra nas Américas.

Em um trecho da obra, o autor descreve uma campanha envolvendo o que hoje chamaríamos de “consumo consciente”.

Por um cálculo matemático feito na época, se uma família média inglesa deixasse de consumir açúcar por 21 meses, um negro seria poupado de escravização ou morte.

Para muitos abolicionistas britânicos, o consumidor de açúcar era "o principal motor, a grande causa de toda a horrível injustiça" envolvida na escravidão.

A solução? Substituir o açúcar das Índias Ocidentais pelo que vinha das Índias Orientais. Ou seja, substituir o consumo do produto americano pelo indiano.

Havia até um folheto intitulado "Queixa do escravo negro aos amigos da humanidade". Nele, um negro implorava:

Massa, você que é amigo da liberdade, tenha pena do pobre negro. Eu imploro, compre o açúcar do Oriente, não compre açúcar escravo.

Segundo os promotores da campanha, agindo desse modo, os consumidores estariam minando o sistema escravista da maneira mais segura, fácil e eficaz.

Mas só faltava uma coisa: abolir a escravidão na Índia. E o máximo que a dominação britânica conseguiu, naquele momento, foi propor uma legislação para "melhorar" a escravidão naqueles territórios.

O que realmente estava por trás do apoio abolicionista à produção das Índias Orientais não era apenas a desumanidade da escravidão, mas a crescente falta de rentabilidade do monopólio açucareiro nas Américas.

Se o consumo consciente não abalou o capitalismo quando envolvia o comércio legalizado de escravos, muito menos agora.

15 de fevereiro de 2018

A febre amarela e as barragens do capital

O marxista húngaro George Lukács dava grande importância à ideia de “afastamento das barreiras naturais”. O conceito foi criado por Marx para descrever um traço essencial da espécie humana.

O surgimento da agricultura e da criação de animais, por exemplo, permitiu que nos livrássemos da obrigação de nos deslocar atrás de bichos e plantas para nos alimentar. Desse modo, afastamos a barreira natural que nos condenava ao nomadismo.

O bicho humano é biologicamente incapaz de voar. Demorou, mas essa limitação natural também foi afastada.

O problema é que forçar os limites naturais também pode nos aproximar de situações perigosas para nossa sobrevivência. É o que mostram os inúmeros desastres ecológicos na história da humanidade.

Mas as coisas começaram a ficar perigosas mesmo quando a Revolução Industrial levou esse processo a um ritmo, alcance e intensidade inéditos. Desde então, passamos a destruir barreiras naturais pelo planeta todo na insana busca por lucros.

Um exemplo é o elevado nível de desmatamento para exploração de madeira e desenvolvimento da agropecuária destruidora. As consequências não são apenas climáticas.

Tudo indica que a destruição de matas e florestas vem tirando diversas patologias de seu isolamento original. Este pode ser o caso do atual surto de febre amarela no País.

Mas são fortes as suspeitas de que a terrível destruição causada pelo acidente da Samarco ocorrido em 2015 também esteja contribuindo.

Além da negligência criminosa dos governos, trata-se de uma opção civilizacional em favor de poderosos interesses econômicos.

Ou seja, se afastar as barreiras naturais faz parte de nossa condição humana, destruir as barragens do capital tornou-se fundamental para a nossa sobrevivência.

8 de fevereiro de 2018

Os terríveis erros de Stálin no combate ao nazismo

A ascensão dos nazistas alemães ao poder completaram 85 anos em 30 de janeiro. Em 2 de fevereiro, comemoraram-se os 75 anos da Batalha de Stalingrado, na qual a vitória soviética foi determinante para a derrota de Hitler na Segunda Guerra.

Um personagem decisivo nos dois episódios foi Josef Stálin. Mas não pelos melhores motivos.

Entre os principais fatores que levaram os nazistas ao poder em 1933, estava a política stalinista para a Alemanha no período. O comando soviético considerava que tanto os socialdemocratas alemães como os nazistas deveriam ser tratados como inimigos.

Essa orientação impediu qualquer unidade da esquerda alemã contra a ascensão de Hitler.

Mas os erros do stalinismo não pararam por aí. Em 1939, Stálin firmou um pacto de não agressão com Hitler. A ideia era poupar a União Soviética de ataques, ganhar tempo para preparar a resistência e deixar que o restante da Europa se virasse com os nazistas.

A proposta até faria algum sentido, não fosse por um fato importante. Stálin realmente confiou em Hitler. Ignorou, por exemplo, informações de seus comandantes militares relatando a concentração de tropas alemãs junto às fronteiras soviéticas. Hitler atacou contando com um fator surpresa que jamais deveria ter existido.

A Batalha de Stalingrado é considerada a mais sangrenta da História, com um milhão de mortos. Stálin costuma ser considerado o herói que liderou as forças que derrotaram Hitler. Mas, muito provavelmente, as perdas soviéticas teriam sido menores, se ele não subestimasse o nazismo.

A heroica resistência do povo soviético realmente foi decisiva para a derrota do nazismo. Não por causa de Stálin, mas apesar dele.

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7 de fevereiro de 2018

A conquista pelo estupro

Moema - Bernardelli
As mitocôndrias são elementos essenciais de grande parte de nossas células. E na grande maioria dos animais, apenas o DNA mitocondrial materno (mtDNA) é passado de geração para geração. Algo que jamais acontece com o DNA mitocondrial paterno.

Isso significa que o mtDNA de toda uma determinada população é derivado de uma única ancestral comum. O equivalente genético para determinar linhagens paternas é o cromossomo Y, exclusivamente masculino.

Essa pequena introdução serve apenas para destacar um trecho do livro “1499: O Brasil antes de Cabral”, de Reinaldo José Lopes. Segundo ele, as mais recentes pesquisas genéticas utilizando o mtDNA descobriram que “entre 20% e 30% dos brasileiros vivos hoje descendem de uma tataravó índia”. Mas:

Sabe quantos brasileiros, de qualquer cor de pele, carregam hoje um cromossomo Y indígena? Quase nenhum — com exceção dos que ainda se identificam como membros de uma tribo ameríndia, obviamente. Esse tipo de assimetria é típico de populações conquistadas em todos os tempos e em qualquer lugar do mundo, infelizmente. Os israelitas da Bíblia, os macedônios de Alexandre, o Grande, os mongóis de Genghis Khan e, óbvio, os portugueses de Martim Afonso de Souza sempre seguiram basicamente o mesmo figurino: numa operação de conquista, os homens dos grupos vencidos são mortos ou escravizados, e as mulheres viram concubinas. Nenhum outro modelo é capaz de explicar o tamanho da diferença entre o que enxergamos nas duas rotas paralelas, a do mtDNA e a do cromossomo Y.

Ou seja, por séculos, grande parte da invasão europeia das terras brasileiras foi baseada no estupro de mulheres indígenas. E não apenas delas, claro.

Leia também: Muito a aprender com os mestres indígenas

6 de fevereiro de 2018

Apetites de um consumo sem espírito

De volta ao artigo que Anthony Elliott publicou na Folha em 31/12/2017. Nele, o professor de sociologia da Universidade South Australia e da Universidade Keio, no Japão, discute um novo tipo de individualismo.

Mas um aspecto lateral abordado pelo texto é o que ele chamou de “consumo desigual”. Um exemplo:

...a ONU apontou num estudo da década de 1990 que prover educação básica para todos os cidadãos dos países em desenvolvimento custaria em torno de US$ 6 bilhões adicionais ao ano, enquanto os EUA sozinhos já gastavam espantosos US$ 8 bilhões por ano com cosméticos.

Mais “dados chocantes sobre gastos anuais (segundo o mesmo documento de 1998)”:

- US$ 11 bilhões com sorvete na Europa;

- US$ 17 bilhões com comida para animais de estimação na Europa e nos EUA;

- US$ 50 bilhões com cigarros na Europa;

- US$ 105 bilhões com bebidas alcoólicas na Europa;

- US$ 400 bilhões com narcóticos em todo o mundo.

Os números refletem não só uma obsessão cultural com consumo, prazer e hedonismo mas também apontam para uma ênfase individualista na satisfação dos desejos.

Em “O Capital”, Marx transcreve a seguinte frase de Nicholas Barbon, da obra “A Discourse on coining the new Money lighter”, de 1696:

O desejo implica a necessidade; é o apetite do espírito, que lhe é tão natural quanto a fome para o corpo (...) A maior parte [das coisas] retira seu valor do fato de satisfazerem as necessidades do espírito.

Caberia perguntar que espírito regeria apetites como os descritos por Elliott, não fosse o fato de que provavelmente já não lhes reste espírito algum.

5 de fevereiro de 2018

A grandeza e a tragédia da Revolução Russa

O livro “O Ano I da Revolução Russa”, de Victor Serge, ficou famoso por homenagear os acontecimentos de 1917 sem perder o olhar crítico. Mas o trecho que, talvez, melhor represente o que ele pensava da Revolução está numa carta publicada na revista estadunidense “New International”, em 1939:

É comum dizer que “o germe de todo o estalinismo estava no bolchevismo já em seu início". Não faço objeções. Mas o bolchevismo continha outros germes, uma grande quantidade de outros germes, e quem vivenciou o entusiasmo dos primeiros anos da primeira revolução socialista bem sucedida não pode esquecê-la. É sensato julgar o homem vivo pelos germes que a autópsia revela em seu cadáver, e que podem estar dentro dele desde o seu nascimento?

O soviético Vassili Grossman terminou de escrever “Vida e Destino” em 1960. Considerada uma espécie de “Guerra e Paz” da Segunda Guerra, a obra relata tanto os horrores nazistas, como os crimes stalinistas. Por isso, o livro ficou proibido até depois de sua morte, em 1964. O trecho abaixo ajuda a entender porque:

Havia sido arrancado o couro do corpo vivo da revolução, e um novo tempo queria se vestir com ele, enquanto a carne viva e ensanguentada, as entranhas fumegantes da revolução proletária iam para o lixo, o novo tempo não precisava delas. Precisava da pele da revolução, essa casca era arrancada das pessoas vivas. Os que se cobriam com a pele da revolução falavam suas palavras e repetiam seus gestos, mas possuíam outro cérebro, outros pulmões, fígado, olhos.

A inspirar os dois trechos, o mesmo evento histórico. Imenso e trágico.

Leia também: 1917: uma revolução não tão sangrenta

2 de fevereiro de 2018

O lulismo algemado à institucionalidade

O petista André Singer foi o primeiro porta-voz de Lula na Presidência da República. Cientista político, ele costuma afirmar: “não esperem guinadas radicais do lulismo”. Ele é essencialmente conciliador, afirma.

Tem toda razão. O radicalismo do lulismo resume-se à cara nordestina de Lula, sua origem popular e seu português, idem. Isto e mais a fé que desperta nos mais pobres são o bastante para enojar nossa elite nojenta.

Há 15 anos, em janeiro de 2003, Lula foi ao Fórum Social Mundial. Muitos dos que estavam lá esperavam uma guinada à esquerda por parte do presidente recém empossado.

Ela nunca veio. Como não veio nas crises posteriores. Nem no Mensalão, nem no impeachment de Dilma. Não virá agora, com Lula sentenciado e ameaçado de prisão.

Dificilmente Lula será preso tão cedo. Seria criar uma espécie de “Mandela” em plena campanha eleitoral. Mas se, ou quando, isso ocorrer, o lulismo permanecerá xingando a institucionalidade enquanto continua a enfiar-se nela.

O rompimento institucional que alguns dirigentes petistas andam pregando não passa da tentativa de colocar muita gente nas ruas. Algo que tem muito pouco a ver com rompimentos institucionais.

Quisessem realmente radicalizar, poderiam sinalizar para a construção de uma greve geral. Uma paralisação nacional, quem sabe, talvez, desafiasse as instituições. Mas também não pode. Atrapalha as ambições eleitorais.

Prender Lula é um absurdo, claro. Mas o lulismo prefere ficar algemado à institucionalidade a negar sua fé nela. Até porque há poucas coisas tão institucionalizadas como as prisões.

Mas o problema mais grave surge quando grande parte da esquerda se dá conta de que também está algemada. Ao lulismo. 

Leia também: Para entender o apoio popular a Lula

1 de fevereiro de 2018

Muito a aprender com os mestres indígenas

Em “1499: O Brasil antes de Cabral”, Reinaldo José Lopes procura mostrar toda a riqueza cultural, complexidade social e sabedoria dos primeiros povos a chegar às Américas. 

Mas o livro não alimenta visões ingênuas sobre uma pretensa relação totalmente harmoniosa entre os indígenas e a natureza. É o que Lopes diz, por exemplo, neste trecho:

O mundo está cheio de exemplos de degradação ambiental praticada por grupos indígenas sem nenhuma “ajuda” de invasores ocidentais (que o digam os moas, aves gigantescas impiedosamente transformadas em churrasco até a extinção pelos maoris da Nova Zelândia).

Mas isso não parece valer para os povos indígenas daqueles tempos no atual Pará:

De alguma maneira, os xinguanos e os habitantes primevos de Marajó, de Altamira e de outros lugares encontraram maneiras de transformar o ambiente que ocuparam — e que exploraram de forma relativamente intensa e planejada, aliás — sem bagunçar tudo, diferentemente do que o Estado e a iniciativa privada da República Federativa do Brasil têm feito desde o último século.

Por isso, o autor, afirma achar “difícil que não tenhamos nada a aprender com eles”.

O livro concentra-se no passado distante, mas os povos indígenas continuam a nos dar lições. Um exemplo é o que mostra estudo sobre desmatamento na Amazônia divulgado em novembro de 2017.

Segundo o levantamento, 83% do desmatamento na Amazônia, entre 2001 e 2015, ocorreu fora dos territórios indígenas e áreas protegidas. Ou seja, preservar os territórios indígenas é essencial para eles e mais ainda para o planeta.

Por isso é preciso fortalecer a luta dos indígenas e tratá-los como aquilo que são: nossos mestres!