Doses maiores

30 de dezembro de 2014

Capitalismo: fim com terror ou terror sem fim?

“Capitalismo do pós-guerra está no fim, diz Streeck”. Este é o título da entrevista feita por Vanessa Jurgenfeld, publicada no Valor em 23/12. Wolfgang Streeck é sociólogo e professor do Instituto Max Planck, em Colônia, Alemanha.

Entre as opiniões interessantes e polêmicas do entrevistado, está a afirmação de que o capitalismo um dia chegará ao fim. Streeck garante ser impossível dizer quando isso pode acontecer ou o que pode vir a seguir. Mesmo assim, muitos neoliberais devem ter torcido o nariz para a afirmação.

Outro sociólogo alemão pode ajudar a entender o porquê disso tudo. Max Weber dizia que as “civilizações” representam sempre uma “concentração unilateral” das possibilidades humanas. Em relação à “civilização moderna ocidental”, esta concentração seria o “racionalismo da dominação do mundo”.

É possível que Weber estivesse se referindo a uma arrogância bem típica da classe dominante capitalista. São os que acham possível continuar dominando a natureza por tempo indeterminado sem maiores consequências. Vitoriosos, se acostumaram com a ideia de que somente os derrotados arcarão com os enormes custos de suas conquistas.

Talvez, os capitalistas nunca venham a enfrentar a ira das multidões que explora e humilha há séculos. Pode ser que continuem a lucrar à custa da miséria da grande maioria da população mundial por muito tempo ainda. Mas não é nada improvável que sejam vítimas de catástrofes naturais tanto quanto o restante da espécie.

De qualquer maneira, poderíamos citar mais um alemão. Adaptando uma famosa frase de Marx em “O 18 Brumário”, sob o capitalismo estamos entre um fim com terror e um terror sem fim. Ou não?

Leia também: Rosas não falam, mas recomenda-se ouvi-las

29 de dezembro de 2014

Dilma morde, Lula assopra

A crise econômica que se aproxima deve tornar o governo Dilma alvo fácil para a oposição. Por isso, ela está tentando amansar a direita montando um ministério ao gosto dos neoliberais e dos capitalistas em geral.

Enquanto isso, Lula defende a formação de uma frente de esquerda para pressionar Dilma a atender as exigências dos movimentos populares. Com isso, pretende blindar o governo pela esquerda, transformando as mobilizações em moderadas queixas vindas das ruas.

É a engenharia política lulista entrando em nova fase. Dilma morde, Lula assopra.

Apesar disso, a oposição de esquerda não pode simplesmente se negar a participar de uma frente que pretenda mobilizar a população. Seu grande desafio é se diferenciar em relação às linhas auxiliares do governo no interior dos movimentos. 

Para isso seria importante exigir que sejam adotadas algumas bandeiras radicais. Por exemplo, a instalação urgente de duas auditorias. Uma, da dívida pública, a outra, das concessões de rádio e TV. Reforma Agrária imediata e extinção da Polícia Militar também precisam ter prioridade máxima nas exigências junto ao governo.

Mas há outra condição inegociável para marchar ao lado dos setores governistas. É o imediato desmonte da legislação e do aparato de exceção que caiu sobre os movimentos populares e suas manifestações desde junho de 2013. Incluindo a libertação dos presos políticos e o fim dos processos contra manifestantes.

Por fim, não há como participar de uma frente sob a liderança do principal responsável por um arranjo político que jamais ameaçou qualquer interesse dos poderosos. Lula costuma usar seus dentes não para morder, mas para lançar dóceis sorrisos aos exploradores.

Leia também: Cinco séculos, ontem e anteontem

24 de dezembro de 2014

Nós em nossas bolhas na internete

Em novembro, Juliana Carpanez escreveu um artigo chamado “A nova bolha” para o blog http://tab.uol.com.br. O título refere-se a “bolhas personalizadas de conteúdo” formadas a partir do modo como cada um usa a internete.

Por exemplo, os 1,3 bilhão do Facebook podem receber 1.500 novas histórias por dia, mas o sistema filtra apenas 300 delas com base em nas escolhas feitas pelo usuário em suas pesquisas virtuais. É o isolamento dos internautas em ambientes cada vez mais restritos.

Recentemente, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência divulgou a Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM) 2015. Um dos dados relevantes mostra que a internete é o meio que mais cresceu na preferência dos entrevistados, apesar de ainda ficar atrás da TV e do rádio.

O Facebook está em primeiro lugar disparado, com 83% de preferência, bem à frente do Whatsapp, com 58%. Ou seja, a adesão às bolhas virtuais se multiplica a passos largos, já que o Whatsapp tende a ser ainda mais restrito a pequenos grupos.

É verdade que o levantamento apresenta outras variáveis importantes. Por exemplo, os entrevistados só confiam realmente em uma informação publicada na internete quando ela é confirmada pelos jornais e TV, nesta ordem.

De qualquer modo, da rede de computadores, passando pelas rotativas e chegando às ondas eletromagnéticas, está tudo monopolizado por alguns controladores gigantes.

Não se trata apenas da perigosa influência em disputas eleitorais ou de campanhas contra este ou aquele governo. Trata-se de um fenômeno que encolhe horizontes e embota a capacidade crítica das pessoas. No máximo, forma os eleitores que a grande maioria dos eleitos prefere.

Leia também: Na ausência da internete, pânico social

22 de dezembro de 2014

A cobertura universal que só serve à saúde do capital

Sempre que se fala em saúde e educação, uma aparente unanimidade surge. Todos são a favor de acesso universal, com qualidade. Não é bem assim. Em geral, têm grande peso na grande mídia, governos e parlamentos propostas que procuram transformar esses direitos em mercadoria.

É o que mostra, por exemplo, a matéria “Cobertura Universal de Saúde: a nova aposta do capital”, publicada por André Antunes e Maíra Mathias na última edição revista “Poli”, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz.

A reportagem denuncia a criação de uma Cobertura Universal de Saúde (CUS), defendida pela Fundação Rockefeller e pelo Banco Mundial, com a cumplicidade da Organização Mundial da Saúde.

O objetivo seria garantir “que todas as pessoas obtenham serviços de saúde de boa qualidade quando assim necessitarem, sem que sofram danos financeiros em seu pagamento”. Mas falar em pagamento significa ignorar que estes serviços já foram pagos pelos impostos. Principalmente, aqueles que recaem sobre o consumo e atingem fortemente os mais pobres.

A CUS não passa de um novo ataque neoliberal aos direitos das populações do mundo. A própria ideia de cobertura remete ao mercado segurador. Só seria atendido quem está “coberto” por um plano assistencial. E, mesmo assim, todos sabemos como funcionam os planos de saúde. Paga-se caro para um atendimento de qualidade muito duvidosa.

O verdadeiro objetivo da CUS é ampliar as fontes de especulação financeira. A proposta foi oficializada em 2005, mas entrou no cenário econômico com força depois da crise de 2008. A ideia é recuperar a saúde do grande capital às custas da saúde dos povos do mundo.

Não deixe de ler a
matéria,aqui

Leia também:
O SUS à venda nas eleições

18 de dezembro de 2014

Quando pentear o cabelo sangra

A menina Júlia, de oito anos de idade, certa vez foi surpreendida pela mãe diante do espelho do banheiro, penteando os próprios cabelos, extremamente crespos, com tanta força que fez com que o seu próprio couro cabeludo sangrasse.
 
O trecho acima refere-se a uma menina negra e pertence ao livro “A ralé brasileira”, organizado por Jessé Souza.

Outra passagem refere-se ao suposto “embranquecimento” de negros bem sucedidos:

Os negros que ascendem de posição de classe, quanto menos mulatos e mais negroides, mais vivem “o corpo em desgraça”, o drama existencial de serem em si um paradoxo, uma disfunção naquilo que nos parece a ordem natural das coisas. Esse é o drama que a noção de “embranquecimento” nos faz esquecer. O negro que enriquece não se torna um branco, mas rico como um branco. Seu corpo lhe deixa sob tensão; sua alma é branca, como diz o ditado popular, mas o corpo não.

Mulher sozinha aqui é como “toco de cachorro mijar”, diz uma moradora de favela, em outro trecho. Para essas mulheres, marido bom seria aquele que cede poucas vezes a seus próprios instintos violentos. Pode protegê-las de “altos riscos de violência, inclusive aqueles oferecidos por ele mesmo”.

Estes são apenas alguns exemplos da crueldade social que reina entre os mais pobres. Claro que racismo e machismo também se manifestam em outros setores da sociedade. Mas não com toda essa truculência crua.

São situações terríveis e humilhantes não apenas para suas vítimas. Mostram como funciona uma sociedade que afirma oferecer oportunidades para todos, quando apenas multiplica as chances de causar dor e injustiça.

Asterix e Cuba

Por volta do ano 50 antes de Cristo, o Império Romano dominava quase toda a Gália, atual França. Só uma pequena aldeia resistia. Liderados por Asterix e fortalecidos por sua poção mágica, os destemidos aldeões davam verdadeiras surras nos legionários romanos.

Estamos falando dos famosos quadrinhos de Albert Uderzo e René Goscinny, claro. Mas uma de suas aventuras ganhou um interesse especial nos últimos dias. Em “Obelix e Companhia”, César envia um personagem chamado Velhacus para a aldeia rebelde com a missão de derrotá-la por meios não militares.

Com bolsas cheias de dinheiro, Velhacus chega à aldeia e começa a comprar aos montes os menires que Obelix produz. Quando este já não dá conta da produção, contrata outras pessoas para ajudá-lo. O resultado é a concentração das atividades dos aldeões em torno da fabricação de menires.

A economia local se desorganiza totalmente. O peixeiro já não pesca para ajudar na produção de menires. O mesmo acontece com o ferreiro, o caçador, o agricultor, etc. Até as mulheres abandonam seus afazeres domésticos, causando crises familiares.

Quem quiser saber o final da aventura, deve ler o excelente álbum de Uderzo e Goscinny. O propósito desse relato aqui é lembrar que há muito tempo, nos Estados Unidos, há quem defenda um modo mais eficiente de acabar com o regime cubano do que o embargo econômico.

Bastaria estabelecer as mais amplas relações comerciais com a ilha. A presença abundante de produtos e serviços colocaria rapidamente por terra um sistema que há 50 anos resiste ao império mais poderoso da história. Contra tal ameaça, não haveria poção mágica que resolvesse.

Leia também:
Asterix ajuda a entender o capitalismo
Cuba: de volta aos bordéis?
Em Cuba, pior que a chegada do agronegócio, são as novelas brasileiras

“Nosso imperialismo” chega a Cuba


17 de dezembro de 2014

Cinco séculos, ontem e anteontem

Ontem, indígenas tentaram entrar na Câmara Federal. Protestavam contra a Proposta de Emenda Constitucional 215. A medida pretende deixar nas mãos de um congresso empesteado de ruralistas a decisão sobre a demarcação de suas terras. Foram violentamente reprimidos, obviamente. 

Anteontem, Kátia Abreu assumiu a presidência da Confederação Nacional da Agricultura. O próximo passo é deixar o cargo para tornar-se ministra da Agricultura. Presente, Dilma se mostrou entusiasmada. Disse que a “parceria” com a rainha dos ruralistas está apenas começando. A peste também se aproxima do Executivo, a convite de sua titular recém-reeleita.  

Há quase 20 anos, em 1995, Darcy Ribeiro lançava “O povo brasileiro”. Um dos trechos do livro contém mais atualidade que as notícias acima: 

Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. 

Desmontam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões. Tudo, nos séculos, transformouse incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super-homogêneos e solidários entre si, numa férrea união super-armada e a tudo predisposta para manter o povo gemendo e produzindo. Não o que querem e precisam, mas o que lhes mandam produzir, na forma que impõem, indiferentes a seu destino. 

Como mostram aqueles dois episódios recentes, os senhorios continuam “solidários entre si”, em “férrea união super-armada”. Os velhos e os novos. 

Leia também:
A coerência econômica do PT e as decepções com Dilma

16 de dezembro de 2014

A ONU não merece Portinari

O mural "Guerra e Paz", de Cândido Portinari, está voltando à sede da ONU, em Nova Iorque, onde foi instalado em 1957. A obra estava no Brasil passando por restauração.

Poucos episódios mostram o verdadeiro caráter das Nações Unidas como a história da obra do pintor brasileiro. As dependências da ONU são consideradas território internacional, mas ficam nos Estados Unidos. Portinari era comunista. Por isso, o governo estadunidense jamais permitiu seu ingresso no país. O genial artista morreu em 1962, sem ver sua obra exposta.

A ONU deveria representar os países do mundo, mas está enfiada no centro do imperialismo que explora a grande maioria deles. Seu objetivo principal é promover a paz e a integração entre os povos. Mas suas poucas decisões realmente efetivas envolvem as chamadas “tropas de paz”. Na verdade, destacamentos militares facilmente manipuláveis por interesses poderosos.

É o caso das tropas lideradas por brasileiros no Haiti. Presentes no país desde de 2004, são responsáveis por casos de corrupção, repressão a movimentos sociais e até por terem espalhado o vírus do cólera, doença que havia desparecido daquele país no século 19.

Tudo isso sem falar no Conselho de Segurança, em que uma minoria de estados pode vetar ou impor decisões aos restantes dos países. Nele, Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China valem muito mais do que os outros 188 membros da organização.

A obra de Portinari mostra os horrores da guerra para celebrar a paz. A ONU jamais impediu que os primeiros ocorressem nem conseguiu que fosse promovida a segunda. Seu compromisso é com os poderosos. Não merece exibir um Portinari.

Leia também:
O Ebola e a militarização do racismo
As mãos sujas do governo brasileiro no Haiti
O cólera e a cólera no Haiti

15 de dezembro de 2014

Estados Unidos: o berço do narcocapitalismo

Em 13/12, o caderno Prosa, do Globo, trouxe matéria sobre o livro “Zero zero zero”, de Roberto Saviano. Entre outros temas, o jornalista italiano falou sobre as conexões entre o tráfico e a economia legal. É o caso dos gigantes financeiros Citibank e o HSBC, cujo envolvimento com o comércio de drogas foi comprovado pela Justiça estadunidense.

Saviano também denuncia a existência de uma comunidade do tráfico na América Latina. Nela desempenhariam papel importante Colômbia, Peru e Brasil e seu centro seria o México. Mas a formação dessa multinacional das drogas só foi possível graças às intervenções do governo estadunidense, com sua cara e criminosa “Guerra às Drogas”.

Não à toa, a organização ligada ao tráfico mais violenta e poderosa do México é formada por desertores do exército daquele país, treinados por americanos, israelenses e franceses. Trata-se de “Los Zetas”, que podem estar, por exemplo, por trás do massacre de 43 estudantes mexicanos, em setembro passado.

Luiz Eduardo Soares fez um comentário sobre o livro na mesma edição. Ele lembra que quando explodiu a crise de 2008, só um setor da economia mundial contava com dinheiro de sobra. Era o tráfico de cocaína, que injetou US$ 352 bilhões nas instituições. “Cerca de um terço da liquidez mundial era dinheiro sujo de sangue”, diz Soares.

Tudo isso mostra que a repressão ao tráfico acaba sendo a maior fonte de criminalidade. A legalização das drogas diminuiria muito esse problema e seria um golpe no narcocapitalismo, que patrocina a violência contra pobres, de um lado, e vende armas aos governos que as utilizam contra esses mesmos pobres, de outro.

Leia também: Você é contra a legalização dos cachorros?

11 de dezembro de 2014

A miséria do amor dos pobres

A experiência erótica é vivida de forma semelhante por ricos, remediados e pobres ou pode variar conforme a situação de classe?

Um dos capítulos do livro “A ralé brasileira”, organizado por Jessé Souza, ensaia uma resposta. Trata-se de “A miséria do amor dos pobres”, que discute a sexualidade entre as “meninas da ralé”.

Essas garotas são abusadas sexualmente por pais, irmãos mais velhos, primos, colegas de escola. São deixadas à própria sorte por mães e avós acostumadas a receber o mesmo tratamento desde sua própria infância.

O estudo afirma que as mais pobres entre as mulheres pobres sentem mais radicalmente a separação entre erotismo e afeto. O ato sexual torna-se muito semelhante a uma necessidade fisiológica em que elas cumprem papel desprezível.

Claro que mulheres das classes média e alta também podem sofrer esse tipo de violência. Mas as consequências seriam bem mais graves para aquelas que, na luta pela sobrevivência, se veem privadas do mínimo de dignidade e autoconfiança.

Segundo o livro, mulheres e meninas que vivem em seu cotidiano dimensões tão variadas como estudo, lazer, esportes, profissão e estabilidade familiar têm maiores chances de enfrentar os traumas causados por agressões sexuais ou simples desilusões amorosas.

Não precisamos concordar com as conclusões presentes em “A ralé brasileira”. A obra vale principalmente por sua recusa em aceitar como universais sentimentos que são vivenciados de maneira completamente distinta, conforme o lugar social em que se manifestam.

Relações eróticas podem ser dolorosamente significativas para alguns ou insuportavelmente cruéis para outros. No caso das mulheres mais pobres, elas costumam deixar cicatrizes nem um pouco simbólicas.

Leia também:

A coerência econômica do PT e as decepções com Dilma

O segundo governo Dilma nem começou e já provoca decepções. Mas elas são injustas.

Logo após a indicação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, o ultraneoliberal tucano Gustavo Franco publicou um artigo comparando a nomeação à Carta aos Brasileiros, divulgada por Lula em 2002. Era a chamada Carta aos Banqueiros, que assegurava que os interesses do setor financeiro não seriam prejudicados.

Eleito, Lula foi coerente. Nomeou o banqueiro tucano Henrique Meirelles para o Banco Central. No período seguinte, surgiu uma combinação de fatores que permitiu um crescimento econômico que há muito tempo não se via no País. Dentre esses fatores, destacam-se uma enorme expansão da economia mundial e a explosão dos preços das commodities. Sorte de Lula.

O azar de Dilma foi iniciar seu governo em plena crise mundial. Demorou, mas a onda que vinha paralisando as economias centrais desde 2008 derrubou a demanda mundial por commodities e, junto com ela, o ritmo da economia brasileira. Dilma assumiu com um déficit externo de 30 bi. Encerrou seu segundo mandato com 80 bi negativos.

O fato é que do 1º ao 12º ano de mandatos petistas no governo federal, o País jamais deixou de ser tão dependente da economia mundial como sempre foi. Mudou apenas o fator principal dessa dependência: o agronegócio, que cria poucos empregos e produz injustiça social e destruição ambiental em doses tóxicas.

Portanto, não há nada de muito decepcionante nas escolhas econômicas de Dilma. Decepção, mesmo, é ver aquela que foi torturada nos porões da ditadura defender uma lei de anistia feita para perdoar seus carrascos.

Leia também: Um governo em disputa... na lama

10 de dezembro de 2014

Lennon, o Beatle radical

Há 34 anos, em 08/12, morria John Lennon. Com o passar do tempo, a grande mídia transformou o ex-Beatle em um cara pacífico e doidão. Um cabeludo simpático e sonhador. Alguém cujas lindas músicas são boas para cantar no Natal e no Ano Novo.

Mas o genial cantor e compositor foi um rebelde radical não apenas no terreno musical. Em 1969, engrossando os protestos contra Guerra do Vietnã, ele e Yoko Ono organizaram “luas-de-mel” de protesto. Logo após se casarem, foram para a cama e chamaram os jornalistas.

Vestidos com seus pijamas, o casal recebia a imprensa cercados de cartazes pela paz mundial. Deitados, divulgavam suas mensagens libertárias e compuseram a música que se tornaria um hino do movimento contra a Guerra do Vietnã: “Give peace a chance” (“Dê uma chance à paz”).

Mas Lennon e Yoko não ficaram apenas no discurso da paz e do amor. Já morando em Nova York, passaram a apoiar abertamente o Partido dos Panteras Negras em sua luta contra a violência racista da sociedade e do Estado norte-americanos.

Estas e outras posturas, como a defesa da descriminalização da maconha ou apenas cultivar cabelos longos, tornou o casal um dos alvos prioritários do governo Nixon. Foi dado início a um processo de expulsão dos dois dos Estados Unidos. Mas após dez anos de batalhas judiciais, o governo estadunidense foi derrotado.

Jamais ficou provado que o assassino de Lennon fosse mais que um fã enlouquecido. Mas, certamente, os poderosos dos Estados Unidos e do mundo comemoraram a desaparição do mais radical dos Beatles.

9 de dezembro de 2014

Inteligência artificial e imbecilização histórica

Em uma recente entrevista à BBC, o físico britânico Stephen Hawking afirmou que a “Inteligência Artificial” pode acabar com o mundo. Para ele, a evolução desse tipo de inteligência é muito mais rápida que a dos humanos, que, por isso, viriam a ser dominados por ela.

Ocorre que, a rigor, não existe inteligência que não seja artificial. A base sobre a qual as capacidades intelectuais humanas se desenvolvem é biológica. Mas a forma como elas evoluem, se organizam e são utilizadas é determinada por condições histórico-sociais.

Além disso, desde as “inteligências múltiplas” popularizadas por Howard Gardner sabemos que aquilo que chamamos de inteligência é apenas sua dimensão cognitiva. E esta somente predomina porque é a que mais interessa ao modo como o mundo atual está organizado.

Muitas das variadas possibilidades de nossa criatividade mental vêm sendo secundarizadas em favor de algumas poucas, ligadas às atividades mais práticas do cotidiano. Um processo que começou com a Revolução Industrial e não parou mais.

A chamada “economia criativa” limita-se a alguns setores estratégicos, cujo objetivo é pensar novas formas de alcançar o mesmo e velho objetivo: obter lucros. Para cada executivo da Google, por exemplo, há centenas de milhões de trabalhadores executando tarefas estúpidas e degradantes.

A Inteligência Artificial será tanto mais poderosa quanto mais nos deixarmos idiotizar por uma sociedade dominada pelo Capital. O próprio Hawking é prova disso. Na entrevista citada, ele disse temer os riscos causados pela internete. Teria pedido que as “companhias do setor” ajam para combater o terrorismo.

Hawking é um gênio da Física, mas em economia política pode fazer companhia a Homer Simpson.

Leia também: Em breve, até cocô poderá dar lucro

8 de dezembro de 2014

Prisões e escolas públicas. Aparências que mal escondem a essência

O Supremo Tribunal Federal está discutindo um pedido de indenização a um presidiário que sofreu tratamento desumano durante o cumprimento de sua pena. Mas o que mais surpreende não é o valor reclamado: R$ 2 mil.

As prisões brasileiras são um exemplo da oposição que Michel Foucault identificou entre os conteúdos “manifestos” e “latentes” das instituições sociais. O filósofo francês se inspirou na teoria dos sonhos de Freud para chegar a estes conceitos.

Para Freud os sonhos teriam uma aparência que esconde os reais desejos do sonhador. Para interpretá-los, seria preciso descobrir o que está latente por trás de seu conteúdo manifesto.

A função das prisões aceita socialmente é “reeducar os detentos”, “ressocializá-los”, “devolvê-los ao convívio social”. O objetivo latente delas é jogar aqueles que são acusados de crimes na cadeia para que sofram os piores castigos.

A escola pública é outro exemplo dessa lógica. Seu papel seria oferecer educação de qualidade para todos. O que o sistema de dominação realmente espera dela é apenas a seleção daqueles capazes de superar sua origem pobre.

O restante deve se contentar com uma instrução mínima para trabalhos desqualificados e mal pagos. Ou simplesmente deve ser mantido longe das ruas, onde poderia colocar em perigo a ordem pública.

O principal alvo desses mecanismos sociais são os mais pobres entre os pobres. Aqueles que Jessé Souza estudou em seu livro “A ralé brasileira” e no qual aparecem os conceitos acima.

Mas que o Supremo esteja discutindo uma indenização, ao invés da imediata melhoria das prisões e o fim do encarceramento da pobreza está longe de manter qualquer aparência.

Leia também:
A “má-fé institucional” nos serviços públicos

4 de dezembro de 2014

Uma Comissão Nacional da Verdade para as empreiteiras

A Comissão Nacional da Verdade defende a mudança do nome de várias obras públicas do país. Seriam aquelas batizadas em homenagem a envolvidos com torturas e desaparecimentos durante a ditadura de 1964.

Muito justo. Mas essas obras, em geral, celebram mortos. Enquanto isso, muitos carrascos da ditadura estão vivos e longe de responder à Justiça por seus crimes. Por outro lado, a Comissão poderia aproveitar o assunto e investigar também as empreiteiras que construíram as tais obras.

Muitas dessas empresas também continuam por aí, vivas até demais. É o caso de Odebrecht e Camargo Corrêa. Ambas estão atualmente sob investigação na chamada Operação Lava-Jato. Mas suas ações ilegais vêm de um momento bem mais longínquo no passado. E muito mais obscuro.

É o que afirma Pedro Henrique Pedreira Campos em entrevista à Folha, publicada em 01/12. Ele é autor do livro "Estranhas Catedrais - As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar". Segundo Campos, o setor teve participação ativa no golpe militar “e conseguiu se manter próximo ao Estado mesmo após a redemocratização”.

Não à toa, os casos de corrupção envolvendo as empreiteiras só vieram à luz há uns 30 anos. Antes, as negociatas ficavam no escuro graças à censura imposta pela ditadura.

Agora, executivos dessas poderosas corporações foram detidos. Um fato positivo, diz Campos. Mas “os donos das empresas, os empreiteiros de fato, não estão presos”, avisa ele. Por enquanto, como seu antigos sócios fardados, eles permanecem impunes.

Continuam a se dar bem, mesmo sob um governo que pretende representar os interesses de algumas de suas maiores vítimas, nos cárceres e nos canteiros de obras.

Leia também: Por um Dia de Finados mais descontraído

Machismo: do trabalhador braçal ao professor universitário

A Lei Maria da Penha recebeu este nome em homenagem a uma mulher que foi vítima de agressões de seu marido por 23 anos. Mas poucos sabem ou lembram que o agressor era professor universitário.

Pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo (FPM), em 2013, mostraria que a violência contra a mulher atinge toda a sociedade, independente de renda, cor, escolaridade ou outros fatores. Mas dentre estes recortes, o nível de escolaridade pode ser um bom indicador de acesso a renda e dos obstáculos criados pelo preconceito racial.

Os dados da FMP indicam que a violência física atinge 19% das mulheres com curso superior ou mais, contra 25% das que têm só o ensino fundamental. Já as formas de controle ou cerceamento atingem 19% das mulheres com menor escolaridade, contra 27% das mais graduadas. A “violência psíquico-verbal” afeta igualmente todas as mulheres, com 21%. A agressão sexual atinge 11% das quem têm ensino fundamental e 8% das mais escolarizadas.

Essa mesma uniformidade, porém, dificilmente será encontrada na estrutura pública voltada para lidar com esse grave problema social. Um exemplo é a lei que obriga o SUS a atender vítimas de estupro. Aprovada há um ano e meio, ela ainda não foi colocada em prática. E a grande maioria das mulheres que recorrem ao SUS são pobres.

Além disso, é inegável que a estrutura policial-judiciária tende a tratar as mulheres agredidas como parcialmente culpadas pela agressão. Mas este tratamento será ainda mais provável para uma moradora de favela, por exemplo.

Seja como for, não faltam exemplos de que o machismo reina igualmente entre trabalhadores braçais e professores universitários.

Leia também: O país do “estupra, mas não mata”

3 de dezembro de 2014

Um governo em disputa... na lama

Os petistas costumam afirmar que os movimentos sociais devem disputar os rumos do governo de seu partido. Que muitas disputas rolam soltas no Planalto, não há dúvidas. O problema é quem está nessa briga em condições de vencê-la.

Veja-se o caso da indicação da senadora Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura. Alguns militantes petistas pressionam para impedir a nomeação da maior representante do agronegócio nacional. Mas a verdadeira guerra de bastidores está fora do alcance desse valoroso pessoal.

O nome de Kátia causou crise séria, mesmo, foi no PMDB. A indicação da senadora não agradou algumas poderosas frações dentre os sanguessugas pemedebistas. Mas não se trata de interesses paroquiais.

O poderoso frigorífico JBS Friboi e Kátia não se bicam. Segundo ela, a empresa estaria utilizando sua condição de monopólio para fazer concorrência desleal no mercado agropecuário. Uma ação que prejudicaria corporações do setor que também são grandes, mas nem tanto.

Por outro lado, a JBS vinha sendo beneficiada por várias medidas da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura. Em outubro passado, por exemplo, a Justiça condenou o órgão por ter beneficiado a JBS. O dirigente da Secretaria é um apadrinhado do líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha. Com Kátia na Agricultura, a JBS teme perder essas regalias.

Enquanto isso, a “ilustre” ministeriável é acusada de ter recebido R$ 200 mil para sua campanha eleitoral de um empresário investigado pela operação “Terra Prometida”, da Polícia Federal. Trata-se da venda ilegal de lotes destinados à reforma agrária.

Governo em disputa? Claro que sim. Mas meter-se nessa briga é pra quem gosta de chiqueiro.

Leia também:
O ministério de Dilma e a esquerda dos manifestos

2 de dezembro de 2014

A “má-fé institucional” nos serviços públicos

No livro “A ralé brasileira”, Jessé Souza utiliza o conceito de “má-fé institucional”. Trata-se de:

...um padrão de ação institucional que se articula tanto no nível do Estado, através dos planejamentos e das decisões quanto à alocação de recursos, quanto no nível do micropoder, quer dizer, no nível das relações de poder cotidianas entre os indivíduos.

Este fenômeno seria responsável por enfraquecer aquela que deveria ser a função mais importante dos serviços públicos: a diminuição das injustiças sociais.

Na escola, por exemplo, os filhos de famílias pobres chegam completamente despreparados para uma disciplina que só pode ser assimilada por quem já a exercita em casa. Muitos dos pais desses alunos também foram excluídos da educação escolar pelo mesmo motivo.

Ainda assim, essas crianças encontram acolhida adequada por parte de apenas alguns professores. Em geral, o sistema escolar rende-se aos valores meritocráticos e as abandona. Desse modo, muitas vezes, acentua ao invés de moderar as diferenças sociais entre os alunos.

No sistema de saúde, a obra destaca o que chama de “animalização” dos pacientes mais pobres. Há esforços sinceros para curá-los e salvar-lhes da morte. Mas quase sempre na condição de portadores de uma vida, não de direitos.

Esse tipo de abordagem sempre corre o risco de culpar as pessoas e isentar o sistema. No entanto, o próprio livro lembra que os profissionais que resistem a essa institucionalidade mal intencionada são exatamente aqueles que se engajam nas lutas sociais.

Precisamos continuar buscando respostas na luta de classes. Mas elas somente surgirão se desafiarmos as lógicas de dominação a que aderimos como indivíduos.

Leia também: Os maiores derrotados pela meritocracia