Doses maiores

30 de abril de 2012

A CUT presa na própria armadilha

A CUT voltou a falar em fim do fim do imposto sindical. Em 2005, uma proposta de Emenda à Constituição previa o fim dessa cobrança. A CUT sempre lutou por sua extinção. Mas na época concordou com a criação de um “imposto negocial”. Nada mais que sua continuação disfarçada de contribuição. O assunto acabou morrendo. O imposto sindical, não. Continua firme e forte como os burocratas sustentados por ele.

Agora, um de principais eixos do 1º de Maio da CUT retomou a bandeira histórica. O que teria mudado? Em entrevista à página IHU On line, o economista José Dari Krein dá uma pista. Segundo ele:

A CUT foi a Central que mais perdeu espaço na sociedade brasileira. Na pesquisa sindical, o número de sindicatos filiados chegava a 40%. Destes, 2/3 eram filiados à CUT. Atualmente, pelo cadastro do Ministério do Trabalho, as entidades filiadas a uma central chega a 73% e a participação da CUT caiu para menos de 40%.

O fato é que o fim do imposto tinha tudo a ver com a proposta inicial da CUT. Uma central de luta, cujos sindicatos deveriam ser mantidos pela contribuição voluntária de seus representados. Esse caráter foi se perdendo à medida que a central domesticava sua prática. Quando o governo petista foi eleito, a CUT amansou de vez.

O problema é que os burocratas das outras centrais são mais eficientes que seus colegas cutistas. Por isso, estão criando entidades sindicais de carimbo aos montes. Arrecadando milhões diretamente dos bolsos dos trabalhadores. Deixaram a CUT para trás.

Nos anos 90, surgiu o “sindicalismo de resultados”. Uma proposta patrocinada pelos patrões e defendida pela Força Sindical. Ninguém mais fala nisso, hoje em dia. Não porque tenha morrido. Na verdade, esse novo tipo de peleguismo domina o sindicalismo, com raras e combativas exceções. Infelizmente, a CUT não está entre elas.

Cuidado com o tapetão do STF

O Supremo Tribunal Federal aprovou a constitucionalidade das cotas raciais em universidades. Fez o mesmo quanto à interrupção de gravidezes de fetos sem cérebro. Os críticos podem considerar tais decisões “vitórias no tapetão”. Do nosso lado, há quem comemore as raras vezes em que o tapetão funciona a nosso favor. Mas isso pode ser muito perigoso.

Há várias decisões do STF que merecem ser comemoradas. Entre elas, as que envolveram união homoafetiva, pesquisas com células-tronco, terras para quilombolas. Mas não nos esqueçamos de que a maioria desses posicionamentos limitou-se a reconhecer direitos. Ainda assim, depois de muitos anos de luta. Única forma de garantir seu respeito efetivo.


Em relação às cotas, por exemplo, o Supremo apenas as autorizou. Não tornou sua adoção obrigatória. A USP já anunciou que não pretende implantar o sistema. Ou seja, o racismo brasileiro sofreu uma derrota na cúpula do Judiciário. Na sociedade em geral, ainda conta com uma enorme vantagem. É a crença generalizada de que a situação social dos negros tem pouco ou nada a ver com a cor de sua pele. 

E seria bom lembrar outras decisões da “alta corte”. O habeas-corpus para o banqueiro Daniel Dantas e a manutenção da lei da Anistia da ditadura, por exemplo. Sem falar na absolvição muito frequente de criminosos de altos escalões. 


Já há quem fale em recorrer ao STF em relação ao novo Código Florestal. A campanha pelo veto de Dilma segue a mesma lógica. Movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda já começam a acostumar-se ao tapetão. E à condição de mera torcida. 


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União gay, homofobia e democracia

27 de abril de 2012

Abundância de contradições na internete

No capitalismo, quanto maior a escassez, maior o lucro. Quanto mais raro certo produto, ou quanto mais ele for procurado, maior o seu preço. Se isso já é complicado para um sistema que tem crises devido à abundância de sua produção, a situação ainda pode piorar.

De uns 50 anos para cá, a informação tornou-se bem altamente rentável. Incluindo aquela contida em bens culturais e de entretenimento. Ocorre que informação é algo cujo estado natural é o de abundância, não de escassez.

A troca rápida e barata de dados pela internete agravou o problema. Daí, a enorme guerra em torno da propriedade intelectual. Conflito que envolve empresas gigantes e governos poderosos. Na verdade, o objetivo é criar gargalos que tornem a informação escassa.

A rigor, é como tentar reter água em balde furado. E, agora, mais um buraco parece estar se abrindo no recepiente. Trata-se do BitTorrent Live. Reportagem de Mariano Blejman para o jornal Página/12, em 10/04, explica que o programa:

...funciona exatamente ao contrário da forma como funcionavam, até agora, as transmissões ao vivo: quanto mais pessoas estão conectadas a um mesmo serviço, mais veloz pode ser a conexão.

Ou seja, a qualidade aumenta na razão direta da integração e não da competição entre as transmissões. Por isso, também exige menos infraestrutura. Um problema muito sério para as grandes corporações. Não à toa, Bram Cohen, criador do sistema, afirma que seu "objetivo é extinguir a televisão".

Cohen também é o criador do BitTorrent, um serviço de transmissão de dados que já vem usando a mesma lógica há mais de 10 anos. O mais incrível é o que diz a reportagem sobre a origem do BitTorrent. Segundo a matéria, ele:

... foi desenvolvido, inicialmente, para uma empresa de segurança, que tinha que distribuir seus arquivos de forma criptografada, de maneira tal que não se poderia destruir as cópias de segurança e, ao mesmo tempo, fosse impossível conhecer o conteúdo dos mesmos. Atualmente, BitTorrent tem 150 milhões de usuários ativos, com maior permanência que o Facebook ou YouTube.

Para nossa sorte, os capitalistas também criam seus próprios gargalos.

Leia também: A Google e os limites do capitalismo

26 de abril de 2012

Vitória ruralista, vergonha petista

Ontem, 25/04, a Câmara dos Deputados aprovou o novo Código Florestal. A decisão torna legal grande parte da destruição ambiental que já vinha sendo feita impunemente. O agronegócio aplaude. O governo esperneia, mas tem grande responsabilidade pela derrota.

Estavam em votação duas propostas ruins. A que veio do Senado e a do deputado Paulo Piau (PMDB/MG). Esta última era um pouco pior e foi aprovada. Um de seus pontos mais nocivos era a exclusão do texto aprovado de princípios que davam ao Código Florestal caráter de lei ambiental. Ou seja, prevaleceu a prioridade à exploração econômica das florestas.

A bancada do PT colaborou ao permitir que a matéria fosse votada em caráter de urgência. Mas a cumplicidade dos governistas já vem de longe. A destruição do Código Florestal começou em 24/05 do ano passado. Foi nesta data que a Câmara aprovou o início do processo para sua reforma. A decisão contou com o apoio de grande parte da bancada governista. Entre eles, 45 dos 80 petistas.

Às vésperas da Conferência Rio+20, as lideranças petistas dão mais uma demonstração de submissão à turma do dinheiro. As forças populares iniciam campanha para que Dilma vete a lei. Está correto, mas demonstra o quanto estamos reféns do esquema montado pelo lulismo. Sempre pedindo, sempre frustrados. Além disso, nada impede que eventuais vetos sejam derrubados logo depois de terminada a conferência ambiental.

25 de abril de 2012

Saudáveis dúvidas sobre o aquecimento global

Há uma corrente de opinião que coloca em dúvida as causas e consequências do aquecimento global. A maior parte dela é formada por quem defende interesses econômicos poderosos. São políticos, cientistas, jornalistas ligados a indústrias que teriam seus lucros reduzidos com o combate ao uso de energia com efeitos poluentes.

Mas o outro lado também pode inspirar desconfiança. É o que procura mostrar a matéria “Monotonia conveniente: a ideologia aquecimentista”, publicada na revista Contracorrente, de outubro de 2011. Seu autor é Oswaldo Sevá, engenheiro mecânico, doutor em Geografia Humana e professor da Unicamp.

Um trecho dá ideia do tamanho do problema. Trata-se da opinião de Luis Carlos Molion, meteorologista que representa no Brasil a Organização Meteorológica Mundial. Ele foi entrevistado pelo site UOL Ciência e Saúde, em dezembro de 2009. Na época, acontecia a COP 15, em Copenhague. Sobre a influência humana na mudança de temperatura do planeta, Molion afirmou:

Os fluxos naturais dos oceanos, pólos, vulcões e vegetação somam 200 bilhões de toneladas de emissões por ano. A incerteza que temos desse número é de 40 bilhões para cima ou para baixo. O homem coloca apenas 6 bilhões de toneladas, portanto as emissões humanas representam 3%. Se, nessa conferência ,conseguirem reduzir a emissão pela metade, o que são 3 bilhões de toneladas em meio a 200 bilhões? Não vai mudar absolutamente nada no clima.

Mas o que levaria tanta gente a insistir na responsabilidade humana nos problemas climáticos? Gente, inclusive, bastante poderosa, como o ex-vice-presidente estadunidense Al Gore. Cevá ajuda a esclarecer:

No início de outubro deste ano, organizamos na Unicamp um Fórum intitulado “Injustiça Ambiental e Saúde: os atingidos pela poluição do ar”, no qual pesquisadores universitários e lideranças de entidades não governamentais levaram o seu testemunho e experiência sobre o avanço dramático dos números medidos de poluição do ar (poeiras, fumaças, hidrocarbonetos, inclusive os aromáticos bastante patogênicos, gases de nitrogênio e de enxofre, precursores de chuvas ácidas e de ozônio respirável) e sobre a degradação das condições de vida de populações em áreas carboníferas, siderúrgicas e do agronegócio. Esses temas e assuntos cruciais para a saúde e sobrevivência do ambiente e da espécie humana vêm sendo obscurecidos, desprezados e omitidos pelos que, nas empresas, governos, universidades e ONGs, passaram a seguir a moda e o credo aquecimentista. Muito antes de aquecer, se é que aquece… a atmosfera está certamente sendo envenenada.

Faz sentido. É bom ficarmos de olho nesse debate. Entre os que combatem o uso dos combustíveis fósseis não há só mocinhos.

24 de abril de 2012

Genialidade e desespero

Estão em cartaz bons filmes sobre o jogador Heleno e o cantor Raul Seixas. Em comum, o talento e o tormento. Casos que fazem pensar na genialidade como produto do desespero.

Estariam todos os gênios condenados a isso? Há vários exemplos que confirmam a hipótese. Dostoievsky, Lima Barreto, Van Gogh, Turing, Beethoven são só alguns casos. Francisco Bosco em sua coluna de O Globo de 31/03 cita a definição de Sartre:

A genialidade não é um dom, é a saída que se inventa em casos desesperados.

Mas o que dizer de um Chico Buarque? De família rica, bonito, talentoso e inteligente. Parece que o que o atormentava era o sonho de ser romancista. Só recentemente conseguiu. Enquanto isso, foi perpetrando magníficas preciosidades musicais.

Por outro lado, estamos falando de uma determinada época histórica. Só de uns 200 anos para cá os artistas e gênios foram reconhecidos como indivíduos singulares. Antes, em geral, não passavam de artesãos ou estudiosos talentosos, raramente reconhecidos.

Em nosso tempo, a celebridade chegou para muitos deles. Porém, a um alto preço. Artistas e gênios, em geral, parecem nervos expostos. Cometem maravilhas que não cansamos de admirar. Mas estão vulneráveis às mais terríveis dores. Não apenas as do espírito. Constrangimentos materiais são cruéis também.

Em uma sociedade que uniformiza e massifica tudo, são como flores em jardins ressequidos. Admiradas e permanentemente ameaçadas. Será, então, que em uma sociedade com espaço para a invenção já não teríamos gênios? Certamente, o contraste proporcionado pelas flores vistosas desapareceria. Mas no seu lugar poderia haver um jardim repleto dos mais variados e belos tipos de plantas.

Não seria a sociedade alternativa. Seria a primeira sociedade humana digna desse nome.

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23 de abril de 2012

Gozação entre nós, deboche contra os poderosos

Entre as torcidas organizadas, há quem combata a violência nos estádios com o slogan “Paz entre nós, guerra aos senhores”. Futebol é paixão e alegria. Rivalidades são naturais. Mas que o ímpeto violento popular seja reservado para aqueles que merecem: os donos do poder, que já nos violentam tanto e há muito tempo.

Entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 01/04 traz o antropólogo norte-americano Roy Wagner. Comentando seu livro "A Invenção da Cultura", ele destaca o papel do humor afirmando:

O humor é uma forma de invenção. É um exercício de ver a partir de uma perspectiva e então se deslocar para outra repentinamente, com algo um pouco confuso. Uma piada inventa; ela usa a perspectiva para inventar.

Em outro trecho, Roy afirma:

Estamos acostumados a pensar no humor como forma de entretenimento, não como forma de alteração de perspectivas, de alteração sujeito-objeto.

Talvez, essa concepção ajude a pensar o desafio de tornar o humor arma de combate. Proposta difícil porque corre o sério risco de perder a graça. Mas não é impossível. É o que provam, por exemplo, Luis Fernando Verissimo e Laerte. Ambos são mestres na habilidade de deslocar as perspectivas para debochar da lógica dominante.

Isso não quer dizer que só possamos fazer piada com aqueles que ocupam posições sociais elevadas. Nem que devamos desferir ataques pessoais desrespeitosos contra eles. O alvo principal deve ser a estupidez dos preconceitos e valores conservadores que defendem.

Claro que sempre haverá os que fazem piada com mulheres, negros, homossexuais, pobres. Mas sigamos a inspiração dos torcedores conscientes. Entre os explorados e oprimidos, respeito, sem abrir mão da gozação contra rendições aos valores conservadores. Aos poderosos, o melhor e mais impiedoso de nosso deboche.

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20 de abril de 2012

A festa dos bancos continua

O governo Dilma agiu corretamente ao pressionar os bancos a baixar os juros. Mas os bancos continuam a praticar taxas insultantes. E a festejar às nossas custas.

Teoricamente, juros para empréstimos são altos porque há risco de que o devedor não pague. Mas não é assim que funciona no capitalismo atual. Dominada por monopólios, a economia de mercado tem suas leis manipuladas muito mais facilmente.

Tomemos o exemplo crédito consignado. Os bancos prometeram reduzir a taxa de juros desse tipo de empréstimo para 0,89%. Algo em torno de 12% anuais. Bem superior à taxa Selic para um tipo de operação de risco zero. Afinal, o pagamento é descontado diretamente do salário, aposentadoria ou pensão do emprestador.

Isso acontece porque dos 157 bancos existentes no País, apenas cinco concentram mais de 70% do mercado. E dados do Banco Central mostram que nos últimos três anos cinco bancos médios brasileiros deixaram de existir devido a fusões e aquisições. Trata-se de um setor altamente concentrado.

Mas, mesmo em um setor monopolizado, há interesse em ampliar a clientela. As taxas praticadas pelos bancos brasileiros não indicam isso. É que os bancos têm à sua disposição um negócio muito mais rentável. É a aplicação em papéis da enorme dívida pública brasileira. Assunto que se tornou tabu para jornais e governos.

São mais de R$ 2,5 trilhões parasitando os cofres públicos. Pagando os maiores juros do planeta. Retirando recursos dos orçamentos da Saúde, Educação, Previdência etc. Aumentando a desigualdade social. Acima de tudo, fazendo a festa de grandes investidores, incluindo gigantes empresariais. Folia que está muito longe de acabar. 

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19 de abril de 2012

19 de abril: dia dos selvagens

Antes de comemorar o indígena brasileiro, o 19 de abril também era o Dia do Exército Brasileiro. A data lembra a batalha de Guararapes, travada em Pernambuco. Nela os “invasores holandeses” foram derrotados por tropas formadas por portugueses e colonos.

Ou seja, comemoramos o momento em que defendemos bravamente uma colonização contra outra. Entre os mortos do lado “brasileiro”, deviam estar muitos índios e negros. Tamanha dedicação não impediu que o Exército viesse a reprimir de forma sangrenta várias revoltas populares.

Os mais recentes episódios desse tipo aconteceram após o golpe de 1964. E suas vítimas não foram apenas militantes políticos. Os índios não foram esquecidos pelos ditadores militares. É o que mostra reportagem de Elaíze Farias para o jornal amazonense “A Crítica”, publicada em 08/04.

Segundo a matéria, “entre 1972 e 1975, no Estado do Amazonas, dois mil indígenas da etnia waimiri-atroari sumiram sem vestígios”. Depois de lembrar que os mortos não estão na lista oficial de vítimas da ditadura, a reportagem esclarece os motivos da matança. Os indígenas:

...foram considerados empecilhos para o desenvolvimento e guerrilheiros e inimigos do regime militar. Por resistirem à construção de uma estrada (a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista) que atravessaria seu território, sofreram um massacre.

Hoje em dia, ainda há muita bala matando e mutilando índios. Mas aos antigos males juntam-se aqueles causados pelo assédio econômico às terras indígenas. E já não se trata somente do Exército. Jagunços, órgãos governamentais, ONGs, partidos políticos e empresas também fazem sua parte.

Tudo isso sob um governo chefiado por quem combateu corajosamente o governo dos generais. Continua valendo tudo para que grandes obras continuem a destruir matas, animais e gente. Que tal fazer uma só comemoração? Seria o Dia da Selvageria.

18 de abril de 2012

Ser chefe de índio é arriscado

Ainda aprendendo com os índios, continuamos citando o livro “Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí:

As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são internamente homogêneas, unas e indivisas, possuindo uma História e um destino comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros diariamente.

Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de acordo com suas tradições e necessidades.

Se não tem poder, o que faz o chefe? O texto diz que ele exerce “três funções: doar presentes, fazer a paz e falar”. Segundo Marilena:

A doação de presentes é a maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar desigualdade econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do Estado.

Quanto à fala, o chefe a usa para manter a paz. Como a comunidade não dispõe de leis para resolver conflitos, o chefe apela ao bom senso, aos costumes, à memória e à tradição. Mas há outra função para a fala. É a Grande Palavra:

Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido, ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu prestígio, sua relação com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá atenção. Ninguém o escuta.

A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma, diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra, a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado.

Segundo o texto, se o chefe tenta usar suas funções para criar uma forma separada de poder, ele é morto pela comunidade.

É, parece que esses povos têm muito a nos ensinar.

17 de abril de 2012

Aos mestres indígenas, com carinho

Grande parte das pessoas ainda encara os indígenas como povos ingênuos, que têm muito a aprender e evoluir. Espécie de crianças a serem educadas. Algo bastante conveniente para o poder econômico, que está de olho em suas terras.


Sobre isso, vejamos um trecho do livro “Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí. Referindo-se aos povos ameríndios que não estavam organizados em grandes impérios, a filósofa diz que:

... os conquistadores encontraram as demais nações americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus. Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a evangelização e o extermínio.


A esta visão dá-se o nome de etnocentrismo. Isto é, uma concepção que considera como corretos apenas padrões e valores dos brancos. O atraso dos povos indígenas estaria no fato de não terem mercado, escrita, história e Estado. Não é bem assim, explica Marilena:

O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica (isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica, gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós que não sabemos lê-la.

Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -, transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em geração. Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades possuem História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza, diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da Natureza e como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.

Diante disso, é bem duvidoso que sejamos nós os que têm algo a ensinar. Basta ver o que estamos fazendo com o ambiente e o que é o Estado sob o qual vivemos. Amanhã, continuaremos a aprender com os índios.

16 de abril de 2012

A Google e os limites do capitalismo

E março passado, o Globo publicou a reportagem “Perdedores no mundo tech”. Segundo a matéria, companhias poderosas como Nokia, Kodak e Yahoo! enfrentam “demissões, perda de mercado e concordata”.

A situação seria resultado de vários fatores. Um dos mais importantes, a capacidade inovadora de concorrentes como a Google. E qual seria o segredo da Google? Provavelmente, a rotina de trabalho que a empresa adotou para seus funcionários.

Horários flexíveis, jogos, brincadeiras, prêmios generosos, espaços amplos, arejados e informais. Tudo para possibilitar um ambiente que estimule a imaginação da equipe de criadores da empresa. O fato é que a Google tenta dar sua resposta a um antigo e sério problema do capitalismo. 

Há mais de 100 anos, a substituição de trabalhadores por máquinas dá altos lucros aos patrões. Mas nada substitui a capacidade humana de inovar. E quem não inova é atropelado pela concorrência. É por isso que desde a década de 1970, buscam-se formas de trabalho que façam surgir soluções desenvolvidas pelos próprios empregados.

Nada disso, porém, era segredo para muitos críticos do capitalismo. Entre eles, o russo Lev Vygotsky, filósofo marxista. Em 1930, ele escreveu:

Se no princípio o indivíduo foi transformado em uma fração, no executor de uma função fracionária, em uma extensão viva da máquina, então ao término, as próprias exigências da indústria requererão uma pessoa plenamente desenvolvida, flexível e que seja capaz de alterar as formas de trabalho, de organizar o processo de produção e de controlá-lo.

No entanto, Vygotsky avisa:

... a essência de toda esta discussão consiste no fato que esta dupla influência de fatores inerentes à indústria de grande escala sobre o desenvolvimento pessoal do homem, esta contradição interna do sistema capitalista, não pode ser solucionada sem a destruição do sistema capitalista de organização industrial.

Ou seja, cedo ou tarde, a capacidade de inovação de empresas como a Google choca-se com os limites do sistema. Trabalho criativo, mesmo, só com controle da produção pelos produtores diretos. Algo incompatível com o capitalismo.

Leia o texto de Vygotsky, clicando aqui

Leia também: 
Tentando apalpar capital imaterial

13 de abril de 2012

O dilúvio tupinambá e o desastre capitalista

Em seu livro "As 100 Melhores Lendas do Folclore Brasileiro", A.S. Franchini conta história do dilúvio tupinambá. Segundo a obra, os tupinambás acreditam numa entidade criadora de todas as coisas e seres vivos.

Seu nome é Monan e viveu entre as criaturas humanas, até que estas se mostraram más e injustas. Diante disso, provocou um enorme dilúvio de fogo. O texto diz que:

Até ali a Terra tinha sido um lugar plano. Depois do fogo, a superfície do planeta tornou-se enrugada como um papel queimado, cheia de saliências e sulcos que os homens, mais adiante, chamariam de montanhas e abismos.

Depois, entendendo que o castigo já surtira efeito, Monan mandou outro dilúvio. Desta vez de água, para apagar o fogo e revitalizar a terra. O mundo voltou a ser povoado.

Mas os indígenas continuam a ter muito com o que se preocupar. Agora, não se trata da ira de seus deuses. São só as terrenas majestades capitalistas. Só na Amazônia, está programada a construção de 24 usinas hidrelétricas. Cerca de 132 áreas indígenas devem ser inundadas.

Como resultado podemos ter nova destruição em larga escala. As montanhas e abismos que surgiram do fogo serão cobertos por lagos imensos. Tomados pela calma da morte de milhares de espécies afogadas. E pelo silêncio, invadindo lugares onde reinava o barulho vivo de animais e povos.

Não se sabe bem porque o mito do dilúvio aparece em tantas e diferentes culturas. Talvez, tenha a ver com os ciclos da natureza, envolvendo escassez e abundância. E com o fato de que o excesso pode ser desastroso tanto num caso como no outro.

No capitalismo não é assim que funciona. Sua abundância burra só consegue gerar mais escassez e destruição. O desastre é certo.

Leia também: Rio+20: uma esquerda marrom egrosseira

11 de abril de 2012

A hegemonia nas bancas de jornais

Quer saber como funciona a hegemonia da burguesia? É só olhar para uma banca de jornal. Nas grandes cidades, elas estão espalhadas por todos os cantos. Carregadas de convites de adesão à ideologia dominante.

Experimente. É uma festa para os olhos. São dezenas de títulos em revistas, quadrinhos, manuais, livros de preço acessível e outras publicações. Também há CDs e filmes em DVD. Em geral, elas vendem até jornais.

Segundo a Câmara Brasileira do Livro, haveria cerca de 25 mil de bancas no País. As livrarias não passariam de 1.300. Nada contra. Os pontos de venda dos livros é que deveriam ser em número muito maior. Mas o fato é que para um povo que pouco lê, tantos pontos de venda nas grandes cidades chamam a atenção.

É uma aula de hegemonia da classe dominante. Há para todos os gostos: saúde, novelas, TV, filmes, moda, malhação, sexo, quadrinhos, games, esportes, estética, decoração, imóveis, automóveis, jardinagem  e até sociologia, filosofia e educação.

Claro que muito desse material tem qualidade. Não fosse assim, não venderia tanto. O problema é que a lógica geral é a da conservação da sociedade tal como ela está organizada.

Mesmo publicações tidas como alternativas estão mergulhadas e cercadas por valores preconceituosos, superficiais, simplificadores, alienantes.

Se você é de esquerda e quer derrubar o capitalismo, passe na banca mais próxima. Preste atenção. Pode ajudar a entender como a ideologia dominante se apropria dos vários anseios da existência humana. E como darmos nossas próprias respostas a eles.

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10 de abril de 2012

Diminuir encargos sociais é cortar salários

Os neoliberais gostam de afirmar que o custo da mão de obra nacional é muito alto. Não ousam culpar o valor dos salários por isso. Preferem citar os “encargos sociais”. Ou seja, INSS, FGTS e outros “benefícios”. Tais direitos representariam duas vezes o valor do salário contratado. A grande mídia gosta de citar a proporção de 102%.

O governo Dilma parece concordar. Segundo nota do Blog do Planalto de 03/04, o governo vai desonerar a folha de pagamento de 15 setores da indústria. Com isso, “a contribuição previdenciária patronal de 20% sobre a folha de pagamentos será eliminada”, diz o texto. Mais uma vez, a Previdência Social dos trabalhadores será desfalcada.

Mas o mais grave não é isso. O fato é que as medidas não passam de redução salarial. É o que se deduz de um estudo do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Em Nota Técnica de julho de 2011, a entidade diz:
Para se chegar a um percentual de 102% de encargos sociais, parte-se de um conceito bastante restrito de salário. Tal conceito considera como salário apenas a remuneração pelo que chama de tempo efetivamente trabalhado. Para o cálculo desse tempo, são excluídas: parte da remuneração relativa ao repouso semanal remunerado; férias remuneradas; adicional de 1/3 sobre o valor das férias; feriados; 13º salário; aviso prévio em caso de demissão sem justa causa por iniciativa do empregador; despesas de rescisão contratual (equivalentes à multa sobre o saldo do FGTS) e a parcela do auxílio-enfermidade custeada pelo empregador, os três últimos calculados com base em uma média de incidência sobre o total de empregados.
Ou seja, o conceito de salário proposto pelo Dieese entende que a remuneração do trabalhador é formada pelo conjunto dos direitos pagos a ele. Segundo este critério, o custo dos encargos sociais cairia para pouco mais de 25%. Mais importante, o estudo mostra que cortar encargos significa cortar salários. Mais um ataque aos direitos dos trabalhadores. Os patrões aplaudem.

Leia também: Dilma no varejo, Lula no atacado

Ler não compensa, já o crime...

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil entrou na pauta de vários jornais. Seus resultados foram divulgados no início de abril pelo Instituto Pró-Livro. No geral, os dados mostram um quadro bastante negativo. O número de leitores teria diminuído desde 2007, data da última edição da pesquisa.

Ao mesmo tempo, o estudo mostra que o passatempo preferido dos entrevistados continua sendo assistir televisão, com 85% das respostas. Enquanto isso, ler fica na sexta posição, com 28%. O que poderia indicar que a TV continua sendo a grande inimiga dos livros no País. Por consequência, de melhores fontes de informação, formação e cultura geral para a maioria da população.

Mas s situação é mais complicada. A reportagem “Os brasileiros e o papel da leitura”, de O Globo de 09/04, por exemplo, diz o seguinte:
Quando se pergunta sobre a importância da leitura, há uma quase unanimidade acerca de sua importância. Em nossa sociedade, o valor da leitura é apreendido como fundamental, e 88% dos entrevistados dizem isso. Mas entre essa afirmação genérica e a prática há uma grande distância. Quando perguntados se conhecem alguém que "venceu na vida" por ler, 47% dos entrevistados dizem que não, e mais 8% não sabem. Há uma percepção social da importância da leitura e uma prática não leitora, que se deve a muitos fatores: escolaridade (tempo na Escola e qualidade do ensino), renda, acesso, deficiências físicas (visuais) etc. A "ponte" entre formação profissional, sucesso, "vencer na vida" e leitura se perde na prática. Tudo indica que, neste caso, os entrevistados igualam leitura apenas com "leitura literária" e não consideram as leituras técnicas e científicas, por exemplo.
Trata-se de um fenômeno muito preocupante. Se há uma verdade aceita por quase toda a população é a do papel positivo da educação. Por outro lado, ensino, qualificação, melhor renda parecem estar de um lado e a prática da leitura, de outro.

A ser verdadeira essa interpretação, estamos falando de um divórcio lamentável. “Vencer na vida” fica de um lado. Formar-se como pessoa dotada de cultura geral e respeito à dignidade humana, de outro. O pior é que tal conclusão faz todo sentido.

É perfeitamente possível ser, ao mesmo tempo, um promotor brilhante e um senador financiado por criminosos. E não estamos falando apenas do caso Demóstenes. Há crimes sendo cometidos dentro da lei, financiados por empresários vitoriosos e viabilizados por parlamentares respeitáveis.

Leia também:
Mais respeito com Demóstenes
A corrupção que nasce das leis

8 de abril de 2012

Dilma no varejo, Lula no atacado

A última pesquisa CNI/IBOPE que mediu a popularidade da Presidente Dilma Rouseff constatou 77% de aprovação a seu governo. A Auditoria Cidadã da Dívida Externa, porém, destacou outros números da mesma pesquisa. O boletim da entidade publicado em 04/04 pondera que:
... os dados mais importantes não saíram nas manchetes: apenas uma minoria da população aprova importantes quesitos da política econômica, tais como a taxa de juros (que conta com o apoio de apenas 33% da população), combate à inflação (42%) e impostos (28%). Tal situação se repete na avaliação de áreas sociais fundamentais, como Saúde (aprovada por apenas 34% da população), Segurança (35%) e Educação (49%).
Assim, a aprovação recorde seria referente “à aprovação pessoal da Presidente Dilma”, o que apontaria “uma contradição em relação à rejeição da população às áreas antes mencionadas”.

A análise faz sentido e mostra que o resultado da pesquisa merece mais esforço analítico por parte das forças de esquerda. Pelo menos, daquelas que não aceitam suas conclusões como sinônimo de acerto político.

Uma conclusão possível: aparentemente, a população vem isentando o governo federal em relação a grande parte dos problemas sociais mais graves. Talvez, transfira a maior parcela da culpa a parlamentos e governos estaduais e locais.

Mas Dilma é apoiada por 11 dos 18 governadores, por exemplo. No Senado e na Câmara, suas maiorias são bastante seguras. Quanto aos municípios, a aliança com o PMDB dá ao governo federal forte apoio. Portanto, o esquema de poder institucional no País vem funcionando em grande harmonia.

O resultado? Medidas favoráveis ao grande capital, migalhas aos mais pobres e cumplicidade com esquemas de corrupção, de um lado. De outro, silêncio por parte da maioria dos movimentos sociais.

Trata-se de mais uma lição de hegemonia política do lulismo. Os pontos negativos ficam diluídos. Tornam-se coisa do varejo sujo da política oficial. No atacado, preservam-se os interesses dos poderosos. Estes continuam sendo os proprietários. Na gerência geral do negócio, permanece Lula. No balcão, Dilma.

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5 de abril de 2012

A armadura vazia de Albert Nobbs

Dirigido por Rodrigo García, “Albert Nobbs” vale pela excelente interpretação de Glenn Close. Também serve como denúncia sobre a violência da imposição de padrões sociais. O personagem principal é uma mulher que vive como homem há mais de 30 anos. O cenário é a sociedade irlandesa do século 19.

No papel masculino, Nobbs é um competente e dedicado garçom de um hotel de luxo. Junta todo o dinheiro que pode para comprar uma loja. Sonha tirar seu sustento do estabelecimento, ao lado de uma esposa dedicada.

Mas Nobbs não parece ter assumido a condição de travesti apenas por orientação sexual. Em uma cena do filme, a protagonista passeia por uma praia em trajes de mulher. A feminilidade reprimida finalmente se mostra. Ela corre, salta e rodopia feliz. De repente, tropeça e cai. Sem a armadura masculina seu corpo parece estranhar a leveza das roupas femininas.

Nobbs não teria escolhido a condição masculina para ser feliz sexualmente. Tal opção seria apenas a mais adequada a uma sociedade conservadora e machista. Ele não parece apaixonado pela mulher que escolheu para esposa. O casamento, a loja, seu comportamento profissional. Tudo parece racionalmente planejado para que ele seja, finalmente, considerado uma “pessoa normal”.

No final, Nobbs desaba como um boneco quebrado. A armadura jaz vazia. Mas nada disso aconteceu de repente. A pessoa que a usava foi desaparecendo até sumir.

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4 de abril de 2012

O Mozart brasileiro era negro

Nos Estados Unidos, um afrodescendente é considerado negro mesmo que ninguém o reconheça como tal por sua aparência. No Brasil, acontece o contrário. Pouca gente lembra que o maior escritor brasileiro era negro. Machado de Assis chegou, no máximo, a ser reconhecido como “mulato”.

O padre José Maurício Nunes Garcia nem chegou a isso. Negro, o nosso maior compositor sacro permanece amplamente ignorado. O "Mozart brasileiro" era filho de um casal de escravos libertos e viveu de 1767 a 1830, no Rio de Janeiro, onde fez fama na corte, recém-chegada de Portugal.

O genial padre é responsável por 240 obras musicais. Mas há evidências de que teria produzido quase o dobro desse número. Apesar disso, os concertos de música clássica oferecidos a públicos populares não trazem suas obras.

Bastariam alguns movimentos da Missa de Santa Cecília, por exemplo. Certamente, encantariam as plateias tanto quanto Villa Lobos e Carlos Gomes. A música do padre negro não mostra influências aparentes da cultura de seu povo. Mas a beleza universal de sua obra é evidente.

Nada disso prova que o talento vence o racismo e abre seu caminho contra tudo e todos. É muito provável que não fossem tantos preconceitos, teríamos muitos outros Josés Maurícios. Assim como Machados, Limas Barreto, Aleijadinhos, Pixinguinhas, Paulinhos...

Há outro Mozart Negro na história da música. É Joseph Boulogne, o Chevalier de Saint-George. Mas sua história fica para uma próxima vez.

Saiba mais sobre José Maurício no site http://www.josemauricio.com.br

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Universidade: negros pela porta dos fundos
A Caixa Econômica Federal e o capitalismo racista

3 de abril de 2012

Mais respeito com Demóstenes

Há um cheiro de injustiça no ar. São inegáveis os serviços prestados por Demóstenes Torres à elite brasileira. E não é necessária a escuta de ligações telefônicas para que isso fique claro. Em março de 2010, ele afirmou publicamente que o estupro de escravas negras aconteceu “de forma muito mais consensual”.

Estava em debate a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial. A proposta final ficou a cargo do senador goiano. E ele fez sua parte. A versão aprovada acabou com as cotas na educação, serviço público, empresas e partidos políticos. Programas de saúde pública voltados para a população negra também ficaram de fora.

Deve ser por isso que antes do escândalo envolvendo Carlinhos Cachoeira, o ilustre parlamentar recebeu tanto apoio. Ele chegou até a escrever o prefácio do livro “Ficha Limpa: a Vitória da Sociedade”. Obra lançada por Ophir Cavalcante, presidente da respeitável OAB. Um trecho do texto diz que a sociedade:
...não admite que os destinos da nação possam ser geridos por representantes que não possuem conduta adequada à dignidade das relevantes funções públicas.
No fundo, ele tem razão. As funções públicas do parlamento nem são tão dignas assim.

Até o DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) entrou na dança. Há anos, a entidade costuma apontar Demóstenes como um dos "Cabeças do Congresso". Mas admitamos, um congresso como este merece as cabeças que tem.

No mais, tudo continua a correr tranquilamente. A Lei Geral da Copa foi aprovada, mesmo contendo medidas que proíbem greves. A votação do Código Florestal deve ser adiada para depois da Rio+20. Passado o badalado evento ecológico mundial, deve ficar mais fácil aprovar uma legislação de acordo com o que quer a bancada da motosserra.

É muita ingratidão.

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2 de abril de 2012

Na África, a carne mais barata

“Quem precisa da África?“ Esta pergunta inicia artigo de Marcilio R. Machado, publicado pelo Valor, em 30/03. O autor é membro do conselho de administração da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). A resposta? O capitalismo. Diante da crise que atinge os “países ricos”, ele recomenda investimentos em países africanos:
Apesar do ambiente de turbulências econômicas globais, o crescimento da África subsaariana permaneceu robusto, variando de 4,8% em 2010 para 4,9% em 2011. Além disso, o fluxo de capital cresceu, no mesmo período, de US$ 35,8 bilhões para um valor aproximado de US$ 41 bilhões.
O autor diz que não há o que se temer quanto às consequências sociais de uma elevação dos investimentos na região. Quem garante é Adam Smith, “pai da economia moderna”. Segundo Machado:
Adam Smith, que na sua obra menos conhecida, "Teoria dos Sentimentos Morais", defende que a natureza humana não é composta apenas de interesses pessoais. A natureza humana inclui simpatia, empatia, amizade, amor, e o desejo de se obter o reconhecimento social. A sua abordagem ressalta que capitalismo é um sistema econômico focado mais na importância de servir do que em aspectos estritamente comerciais com o objetivo de acumular riqueza.
Só não custa lembrar que Adam Smith é o pensador favorito dos defensores da mais completa liberdade de mercado. A única verdadeiramente posta em prática pelo capitalismo. Por isso mesmo, responsável pelas catástrofes sociais que, hoje, atingem os próprios países centrais do sistema.

A sugestão do artigo deveria fazer tremer de medo às populações do grande continente negro. Trata-se de recomendar mais capitalismo a uma região do planeta que já vem sendo devastada por ele há séculos. Prova mais cabal de que o capitalismo só sabe acumular riqueza sem distribuí-la.

O fato é que mais uma vez se lembram da África como fonte de exploração destruidora. Talvez, o artigo de Machado pudesse ser resumido em poucas palavras. Aquelas que aparecem em uma música de Marcelo Yuka, Ulisses Cappelletti e Seu Jorge. Chama-se “A carne”, foi gravada pelo “Farofa Carioca” e diz:
A carne mais barata do mercado é a carne negra
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