Doses maiores

31 de outubro de 2022

Uma vitória de Pirro? Uma vitória da porra!

Os exércitos se separaram e, diz-se, Pirro ter respondido a um indivíduo que lhe demonstrou alegria pela vitória que "uma outra vitória como esta o arruinaria completamente". Pois ele havia perdido uma parte enorme das forças que trouxera consigo, e quase todos os seus amigos íntimos e principais comandantes... 

O relato acima é do historiador grego Dioniso de Halicarnasso e refere-se a batalhas travadas contra os romanos pelo rei macedônio Pirro, no século 3 A.C.

A partir daí, “vitória de Pirro” passou a ser aquela cuja conquista tem um preço quase tão alto quanto uma derrota. Não seria difícil utilizar a expressão em relação à eleição de Lula, ontem. Para obtê-la, Lula e o PT tiveram que abrir mão não só de muitos de seus princípios como devem perder vários dos principais postos em seu próprio governo. 

E muitos de nós, das velhas tropas da esquerda, acabamos marchando ombro a ombro com antigos generais inimigos, responsáveis por tantas de nossas derrotas e muitas de nossas baixas.

Mas era imperioso impedir uma recondução do bolsonarismo ao Poder Executivo. Situação que levaria a ainda mais atrocidades contra os pobres e outros setores vulneráveis da população e à implantação definitiva do fascismo no País.

Além disso, é preciso levar em conta os inúmeros crimes eleitorais cometidos por Bolsonaro. Em especial, o orçamento secreto e a imensa derrama de recursos públicos em favor de sua candidatura, contando com a omissão e cumplicidade vergonhosas de uma institucionalidade pretensamente republicana. 

Tudo isso torna a eleição de nosso heroico Pirro de Garanhuns uma enorme conquista. Uma vitória da porra! 

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13 de outubro de 2022

A teologia do Capital. Resistente, coerente, diabólica

“Quem são os eleitos do Capital” é o nome de um dos capítulos da versão do “Eclesiastes” bíblico, criada por Paul Lafargue em seu livro “A Religião do Capital”. Nele se destacam os “versículos” abaixo:

– O mineiro vive entre o gás venenoso e os deslizamentos de terra; o operário se move entre as rodas e correias da máquina de ferro; a mutilação e a morte estão diante do trabalhador; o capitalista que não trabalha está protegido de todo perigo.

– Não se tira vinho de pedra, nada se aproveita de um cadáver: exploram-se apenas os vivos. O carrasco que guilhotina um criminoso priva o capital de um animal a ser explorado.

– O patrão que faz os empregados trabalharem 14 das 24 horas não desperdiça o seu dia.

– Não poupe nem o bom nem o mau trabalhador, porque tanto o cavalo bom como o mau precisam da espora.

– A árvore que não dá fruto deve ser arrancada e queimada; o trabalhador que não traz mais lucros deve ser condenado à fome.

– O trabalhador que se revolta, alimenta-o com chumbo.

– Roubar grande e devolver pequeno é filantropia.

– O capitalista, libertário fanático, não dá esmola; pois isso priva os desempregados da liberdade de morrer de fome.

– Digo em verdade, há mais glória em uma carteira recheada de notas, do que no homem carregado de talentos e virtudes ou no burro carregando legumes no mercado.

Há muito mais verdades como estas na obra de Lafargue. Mas a amostra evidencia que o Capital inspira uma das religiões mais resistentes e coerentes. Como se ele fosse, assim, uma espécie de deus. Ou diabo.

Com essas doses profanas, as pílulas entram em breve recesso.

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11 de outubro de 2022

A luta socialista como sistema de sentido

“Por que Bolsonaro surpreendeu no primeiro turno” é o título de artigo recentemente publicado por Frei Betto. Em meio a tantas análises sobre as eleições, o texto mostra um pouco mais da floresta e menos das árvores ao utilizar o conceito de “sistema de sentido”.

Um exemplo de sistema de sentido é a religião. “Ela ‘explica’ desde a origem do Universo até o que ocorre a cada pessoa após a morte. Como ironizam os cientistas, os físicos têm perguntas; os teólogos, respostas”, diz Betto.

O problema é que desde o enfraquecimento da Teologia da Libertação e de outras iniciativas religiosas progressistas, o campo da espiritualidade foi dominado por uma combinação reacionária de empreendedorismo individual e fanatismo. 

O texto é muito preciso na análise dos erros da esquerda nessa esfera fundamental da disputa hegemônica. Mas também pode servir de provocação para a luta da esquerda em geral. Há muito tempo, as concepções socialistas perderam sua condição de sistema de sentido. Mas não se trata de retomar a dogmática stalinista, cujo caráter conservador nada tinha de socialista.

Uma tarefa crucial é romper nossa dependência em relação à farsa da institucionalidade burguesa. Outra ruptura importante é com a influência do relativismo paralisante do pensamento pós-moderno sobre grande parte da produção teórica da esquerda. Esses, porém, são só alguns dos fenômenos que desarmaram a luta socialista.

Para vencer a disputa de hegemonia com a burguesia é fundamental construir uma concepção socialista que atribua sentido à vida das pessoas. Mas isso só será possível se for feito a partir das lutas concretas travadas no cotidiano delas.

Leia também: O que, afinal, vem se desmanchando no ar?

10 de outubro de 2022

A histórica tolerância dos “democratas” com o fascismo

Durante os anos 1930, os chamados regimes “democráticos” viam com bons olhos a perseguição feita pelos fascistas às organizações da classe trabalhadora. Afinal, no começo de 1939 já existiam campos de concentração na França, onde foram internados anarquistas, comunistas e republicanos espanhóis, que haviam lutado contra as tropas fascistas de Franco e buscaram refúgio em território francês. Enquanto isso, falangistas espanhóis, fascistas italianos, russos contrarrevolucionários e nazistas autênticos passeavam livremente pela França.

Só quando o exército germânico se aproximou de Paris, o ministro do interior francês ordenou a captura de meia dúzia de notórios jornalistas e políticos partidários de Hitler. Tarde e sem efeito.

No Reino Unido, em julho de 1940, contavam-se já 27 mil detidos. Alguns eram reconhecidamente partidários de Hitler e Mussolini, mas muitos outros haviam emigrado por razões políticas e eram antifascistas de longa data ou judeus fugidos do Reich.

O conflito entre os regimes parlamentares e os regimes fascistas surgiu do expansionismo alemão e japonês, que ameaçava o equilíbrio internacional. Só a necessidade de conquistar a população trabalhadora para o esforço de guerra levou os governos aliados a dar um verniz antifascista ao que, na realidade, constituía apenas uma preservação de esferas de influência.

O morticínio causado pela Segunda Guerra serviu depois para que as chamadas democracias, adulterando o seu passado, apresentassem como uma incompatibilidade o que fora uma estreita colaboração com o fascismo.

As informações acima estão no livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo. Não são histórias do passado. A tolerância dos falsos democratas de direita com o fascismo se renova periodicamente. Estamos vivendo um desses momentos. Inclusive, no Brasil.

Leia também: O irracionalismo fascista da psicologia de capitão

8 de outubro de 2022

Deus nos salve da América

“Ideias de 'guerra civil' nos EUA incendeiam redes sociais” diz reportagem de Ken Bensinger e Sheera Frenkel publicada no The New York Times e reproduzida pelo Globo, em 06/10/2022. 

Segundo o texto: 

Mais de um século e meio depois do fim da Guerra Civil verdadeira, o mais violento conflito da História dos EUA, as referências a uma nova guerra civil se tornaram lugar comum na direita. Embora o termo seja usado de maneira dispersa em alguns casos, como em uma analogia à crescente divisão partidária no país, especialistas afirmam que, para alguns, a expressão é bem mais do que uma metáfora.

Após a apreensão de documentos na residência do ex-presidente Donald Trump, “publicações no Twitter mencionando uma ‘guerra civil’ dispararam quase 3.000% em questão de horas”, diz a reportagem.

Mas o fenômeno não se limita à internete. Em campanha para as eleições legislativas de novembro, multiplicam-se os casos de republicanos prevendo uma guerra civil nos comícios que realizam por todo o país. 

“No final de agosto, informa o texto, uma pesquisa com 1,5 mil adultos conduzida pelo instituto YouGov e pela revista Economist apontou que 54% dos entrevistados que se identificaram como ‘republicanos convictos’ acreditavam que uma guerra civil era algo provável na próxima década.”

Estamos falando de uma sociedade com elevado índice de armamento da população. Some-se a isso a mentalidade delirante que prevalece em grande parte do país, além do racismo a rasgar-lhe as entranhas. Por fim, trata-se da nação cuja contribuição para todo tipo de desequilíbrio no planeta já é decisivo. Imagine se resolver se dilacerar...

Deus nos salve dessa América dos infernos!

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6 de outubro de 2022

O irracionalismo fascista da psicologia de capitão

Organizar a nação consoante princípios de obediência tão fortes e indisputados como os que presidem às cadeias de comando militares e, ao mesmo tempo, proceder a uma mistificação de igualdade formal entre as pessoas de todas as classes sociais tão ilusória e poderosa como a democratização suscitada pela presença iminente da morte nas trincheiras – este paradoxo, que o fascismo conseguiu implantar na realidade, só era possível depois da guerra e em função dela. 


O segredo da política interna fascista consistiu em fomentar um espírito de guerra em tempo de paz. Um crítico sagaz do nazismo observou que “a Alemanha aprendeu as lições de 1914, compreendeu que a preparação para a guerra tem de começar durante a paz, que guerra e paz deixaram de ser duas categorias distintas e constituem duas expressões de um mesmo fenômeno – o fenômeno da expansão”.

Os trechos acima são do livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo. Em relação a nossa situação atual e local, similaridades aparecem quando ele descreve alguns dos principais aspectos da ideologia fascista: 

...a apologia da morte, o fascínio pela vertente destruidora da civilização mecânica, o afã sádico de mandar e o paradoxal prazer masoquista da obediência, a exaltação da novidade sem ultrapassar as sombras da tradição, a face escanhoada. Que prosaico! Será que a mística do irracionalismo não foi mais do que uma psicologia de sargento?

É certo que não há veteranos de guerra entre os fascistas tupiniquins. Mas é assim que eles se sentem na sua delirante luta contra o comunismo. Portanto, irracionalismo não lhes falta e um capitão tresloucado faz as vezes do sargento.

5 de outubro de 2022

O homo sapiens e sua duvidosa sapiência

“O lado B de Svante Pääbo, Nobel de Medicina” é o título de um bom texto jornalístico de Ana Lúcia Azevedo, publicado no Globo em 04/10/2022.

A reportagem fala sobre o mais recente ganhador do Nobel de medicina. Pesquisador do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, da Alemanha, o laureado se especializou em métodos para recuperar e sequenciar o DNA de fósseis de primatas. 

O trabalho do cientista sueco foi fundamental para descobrir que nós, Homo sapiens, tivemos um ancestral comum com os neandertais. Além disso, suas pesquisas mostraram que nos misturamos a esses hominídeos, em algum lugar entre a Europa e a Ásia, há cerca de 70 mil anos. Como resultado disso, 2% do genoma das pessoas de origem europeia e asiática carregam genes originários deles. 

Pääbo também foi responsável por descobrir uma nova espécie de hominídeo: o denisovan. Foi ele, ainda, que identificou genes dessa espécie em 6% das populações do Sudeste da Ásia e da Melanésia, na Oceania.

A história do mundo que os estudos de Pääbo revelaram é a da diversidade, afirma Ana. Um mundo que já teve gente filha de pai humano e mãe neandertal e vice-versa. Ou filha de neandertal com denisovan. A Humanidade é resultado dessas misturas, conclui corretamente a jornalista.

É relativamente recente a descoberta de que a nossa espécie conviveu com outros hominídeos por milênios. Depois do australopitecos, vieram outros, como os homos habilis, homos erectus e homos neanderthalensis, até que ficamos apenas nós. 

Nós, os sapiens. Nós, que pretendemos nos diferenciar pela sapiência, mas podemos acabar extintos graças a nossa burrice, arrogância e estupidez.

Leia também: A duvidosa sapiência do homo sapiens

4 de outubro de 2022

No divórcio com Deus, a briga é pela guarda do filho único

O livro do Apocalipse é o último da Bíblia. Apocalipse quer dizer revelação, em grego. E o que revelou seu autor, João, foi como tudo vai finalmente acabar. Em sua versão bem humorada, Mark Russell relata desse modo:

Jesus Cristo finalmente voltará à Terra. Virá do céu cavalgando um cavalo branco com uma espada na mão, estilo Senhor dos Anéis. Matará todos os soldados do exército romano e usará suas armas como lenha. Então afogará a Besta e seus falsos profetas num lago de fogo. Eu sei que isso não parece muito com o Jesus que você conhece e ama, mas, poxa, o cara cansou de ser sacaneado.

Quando o mundo finalmente for destruído, Deus finalmente voltará para começar do zero. Trará todos os cristãos mortos de volta à vida e dará aos mártires bons empregos no governo. Então, dominará o mundo inteiro, instaurando o Reino de Deus. Nos tratará como porquinhos da Índia, tal como fez no princípio. O mundo será exatamente como era no Jardim do Éden. Só um pouco mais cheio desta vez... e com menos cobras tagarelas.

Russell explica que escolheu “Deus está desapontado com você” como título de seu livro porque condensaria a Bíblia em uma única frase. Só que se o Deus bíblico vive desapontado com suas criaturas, muitas de nós sentem o mesmo quanto a Ele.

Esse casamento eternamente conturbado pode não acabar em apocalipse, mas o divórcio é certo. E faremos questão de brigar pela guarda do filho único. Do Jesus defensor dos explorados, dos oprimidos, da solidariedade humana e da justiça social não abrimos mão!

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3 de outubro de 2022

Matéria escura e ondas eleitorais

Metáforas podem ser muito úteis para explicar coisas difíceis de entender. E também para mostrar o tamanho de nossa ignorância em relação a certos fenômenos.

Há quase um século, a astrofísica detectou a existência da matéria escura no universo. Trata-se de uma substância invisível que não interage com a luz e só pode ser detectada por seus efeitos gravitacionais. 

Os mais recentes resultados eleitorais poderiam ser comparados a efeitos indiretos provenientes de uma matéria que permanece escura para um tipo específico de observador: a militância das forças de esquerda.

Escura porque fica longe de determinados holofotes, essa substância parece ser composta de todo o tipo de resíduos e detritos históricos, reciclados e recombinados permanentemente. Nela estão tanto o senhor de escravos e seus feitores, como generais saudosos da ditadura, torturadores, jagunços, milicianos com mandatos, empresários escravocratas, sacerdotes mercenários e padres pistoleiros. É uma maçaroca de racismo, homofobia, misoginia, fanatismo, truculência e superexploração capitalista. Composição potencializada pela persistência secular da desigualdade e injustiças sociais.

Há momentos, porém, em que as metáforas atingem seus limites. A matéria escura cosmológica está fora do alcance de nossas ações. Mas não podemos nos permitir fazer o mesmo em relação ao equivalente dela no cenário político nacional. Diferente de seu análogo metafórico, deixada a si mesma, essa matéria não permanece inerte. A direita a manipula com muita competência.

Não podemos continuar a nos lembrar da existência desses pontos cegos somente quando somos sacudidos por ondas eleitorais. Por trás delas estão as forças gravitacionais do sistema de dominação que são capazes de nos esmagar.

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