Blog de Sérgio Domingues, com comentários curtos sobre assuntos diversos, procurando sempre ajudar no combate à exploração e opressão.
31 de outubro de 2024
As rupturas que o capital nos impõe
A ideia pode render bons desdobramentos em termos de entretenimento. Se a pretensão, porém, é representar uma situação aflitiva, talvez não seja muito convincente. Afinal, tudo o que a maioria de nós desejaria é sair do trabalho e esquecer suas tarefas e responsabilidades. Mas isso não só não acontece, como cada vez mais nossa vida privada é invadida por incessantes demandas profissionais. Corpo e mente perseguidos e exauridos até muito depois do horário de trabalho.
Trabalho remoto em tempo integral e semanas com apenas um ou meio dia de folga vêm se tornando regra para muita gente. Seja trabalhando para desumanos empregadores humanos, seja para aplicativos transformados em capatazes cibernéticos. Ao mesmo tempo, nada nesse esforço todo garante a estabilidade da atividade ou melhor remuneração. Mudanças cada vez mais rápidas nos processos produtivos tornam descartável, barateiam e desqualificam nossa força de trabalho.
Por outro lado, talvez a série pudesse até servir como metáfora sobre a alienação do trabalho sob o capitalismo. Um fenômeno que está longe de ser recente, mas que nem por isso perdeu sua força, aprofundando a fragmentação e esvaziando de sentido a imensa maioria dos processos laborativos. Revelando a fissura entre aquilo que somos e o que fazemos. O primeiro sendo escravizado pelo segundo.
Mas ruptura pra valer é a que teríamos que construir em relação ao poder do capital. E os caminhos para isso não estão disponíveis em nenhum streaming.
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30 de outubro de 2024
Um Marx não branco e periférico
Em 1703, aqueles sóbrios expoentes do protestantismo, os puritanos da Nova Inglaterra, por meio de decretos, fixaram uma recompensa de 40 libras por cada escalpo indígena e cada pele vermelha capturados; em 1720, fixou-se uma recompensa de 100 libras por cada escalpo; em 1744, depois que a Baía de Massachusetts declarou uma tribo como rebelde, estabeleceram-se os seguintes preços: pelo escalpo de um homem de 12 anos ou mais, 100 libras esterlinas; por um prisioneiro homem, 105 libras; por prisioneiros mulheres e crianças, 50 libras...
O trecho acima é do capítulo 24, volume 1, de “O Capital”. Foi citado no artigo Marx e os Povos originários, recentemente publicado por John Bellamy Foster, Brett Clark e Hannah Holleman. O texto demonstra como Marx denunciou firmemente toda a brutalidade do processo histórico que deu origem ao capitalismo e o mantém ainda hoje. Mas Marx também encontrou na organização social igualitária e solidária dos indígenas elementos fundamentais para inspirar a construção de uma sociedade radicalmente justa.
Não à toa, diz o artigo, Marx estudou obras como "As Raças Nativas dos Estados do Pacífico da América do Norte", de Hubert Howe Bancroft, sobre os indígenas do sudeste do Alasca e do noroeste do Pacífico. Também dedicou-se à leitura de pesquisas sobre os Delaware, Iroqueses, Mohegan, Cree, Chickasaw, Choctaw, Cherokee, Seminole, Dakota, Pawnee, Fox, Blackfoot e muitos outros povos indígenas. Sem falar nas investigações sobre a comuna russa e a história da Índia.
Ou seja, Marx foi um dos primeiros a entender que a luta pela emancipação universal da humanidade tem muito a aprender com sociabilidades não brancas e periféricas.
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29 de outubro de 2024
Tarifa zero e luta de classes
O Brasil é líder mundial na implementação da tarifa zero, com 117 cidades e mais de 5 milhões de pessoas contempladas. Essas informações estão no artigo publicado na Folha por Giancarlo Moreira Gama, militante negro e LGBTQ+, vereador da cidade paulista de Cabreúva.
O auge da luta pelo passe livre foi em 2013. E vimos o que aconteceu. O movimento foi tratado como terrorismo pelas forças repressivas, contando com a ajuda até de governos petistas.
Então, o que mudou? Recente matéria da BBC lembra que a gratuidade implica o subsídio total da tarifa pelo poder público. Subsídio para quem? Para os empresários do setor.
O fato é que o alto custo das passagens esvaziou os ônibus. A precarização do trabalho uberizado tirou parte da classe média dos pontos. Para manter seus lucros, os empresários diminuíram a frota. Principalmente, nas periferias, onde mora grande parte dos eleitores. A jogada passou a ser gratuidade bancada pelo dinheiro público, gerando efeitos eleitoreiros e benefícios privados.
Luta de classes é isso aí. Sempre que podem, nossos inimigos se apropriam das bandeiras populares em proveito próprio. Por outro lado, até agora, nenhuma capital adotou a medida integralmente. Aí, os interesses e os ganhos ainda são graúdos demais para serem contemplados.
Há muita luta pela frente, portanto. Uma delas é a criação de um Sistema Único de Mobilidade, que está em tramitação no Congresso por iniciativa de Luiza Erundina. É importante que os movimento populares pressionem não apenas por sua aprovação, mas pela garantia do caráter público e de participação popular na gestão do novo sistema. Inclusive, com sua estatização integral.
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25 de outubro de 2024
Ideologia burguesa: sucesso fácil e impossível
A pílula de ontem lembrou que a burguesia é a única classe dominante da história que fez do trabalho virtude. Mas faltou dizer que ela também é a primeira que também trabalha. Claro que trabalha explorando o esforço alheio, mas nunca entregou-se ao completo ócio como suas antecessoras.
Há, porém, outra característica que diferencia a burguesia de suas congêneres anteriores: a acirrada competição entre seus membros e setores.
Sim, os reis, imperadores e outros poderosos travaram grandes guerras entre si por territórios e riquezas no passado. Mas no caso da burguesia, a competição é intrínseca ao sistema e o reforça, levando à criação de imensos e poderosos monopólios. Com isso alimenta a ilusão de que cada pessoa pode se elevar por cima da massa para se tornar também ela toda poderosa. Seriam suficientes alguns lances espertos temperados com sorte para chegar lá.
Basta uma grande ideia para um negócio, um serviço diferenciado, uma startup inovadora e até jogos de azar. Antes eram as casas lotéricas e os caça-níqueis nos bares. Agora, a fortuna também está ao alcance dos dedos nas “bets” eletrônicas.
Alguém disse que tem sido mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Até porque o segundo está providenciando o primeiro. Mas o mesmo poderia valer para a contagiante ilusão do trabalho com resultados individuais fantásticos imposta pela ideologia dominante.
A vitória da ideologia burguesa é evidente quando é mais fácil um explorado se imaginar milionário dependendo do próprio esforço e da sorte do que juntando-se a milhões de seus iguais para buscar a emancipação e a dignidade coletivamente.
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24 de outubro de 2024
Trabalho, luta de classes e conversa fiada
A sociedade capitalista é a única sociedade dividida em classes na história em que a classe dominante fez do trabalho virtude. A burguesia nasceu da plebe trabalhadora, mas é aquela pequena parte dela que conseguiu se apropriar dos meios de produção. O restante tornou-se massa proletária a ser explorada.
Essa diferenciação foi vendida como vitória de uma parte do povo sobre a outra. Mas pobres que reunissem certas qualidades e se esforçassem poderiam vencer por mérito próprio. Era o mito da meritocracia, melhor apenas que os mitos do poder e riqueza concedidos por hereditariedade ou por vontade divina.
Ou seja, na sociedade capitalista o trabalho transformou-se em razão de ser da grande maioria das pessoas, de alto a baixo. Ter um emprego, uma ocupação, uma fonte de sustento a partir do próprio esforço tem importância fundamental na vida contemporânea.
Mas o conceito de trabalho acima só tem esse sentido no capitalismo. Marx entendia o trabalho como elemento essencial da espécie humana. É através dele que transformamos a natureza e a nós mesmos. Essa condição pode atribuir ao trabalho um caráter emancipatório, desde que deixe de intermediar a exploração de uns pelos outros e justificar a opressão dos segundos pelos primeiros.
Enquanto a humanidade não conferir esse caráter libertador ao trabalho continuaremos a sofrer com suas terríveis negatividades.
O arrazoado acima é só para lembrar que todos os problemas e contradições sociais que vivemos atualmente têm origem na esfera do trabalho. São produto da luta de classes. Inclusive, disputas eleitorais como as que enfrentamos hoje contra o fascismo. O resto é conversa fiada de coach charlatão.
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23 de outubro de 2024
Aquiles, Escamandro e os deuses do capitalismo
Em “A Ilíada”, de Homero, Aquiles é o combatente invencível, lutando ao lado dos gregos contra Troia. Mata a todos sem dó ou vacilação, até que encontra pela frente Escamandro.
Escamandro é um rio-deus. Na mitologia grega, os rios eram considerados entidades poderosas e sagradas. Como as águas de Escamandro banhavam Troia, a divindade também protegia os troianos. Aquiles despertou a fúria de Escamandro não apenas pelos inúmeros corpos de troianos que jogou em suas águas. Os cadáveres também as poluíam, matando peixes e outros seres vivos.
A batalha entre Aquiles e Escamandro é um dos momentos mais dramáticos da Ilíada. O deus-rio, enfurecido, tenta afogar Aquiles, acrescentando a suas águas as dos afluentes e riachos próximos. Pela primeira vez, o invicto herói grego se viu em apuros. Mas Aquiles é filho da deusa Tétis e protegido de Hera, mulher de Zeus. Contra uma retaguarda dessa, o rio-deus não tinha a menor chance. As deusas convocaram Hefesto e o deus do fogo fez as águas de Escamandro ferverem e evaporarem, garantindo a vitória a Aquiles.
Mas deixemos a mitologia de lado, por um momento, para destacar a seguinte notícia: “Banco do Brasil, Bradesco e Itaú Unibanco lideram ranking global de financiamento antiambiental. Maior parte do crédito liberado, explica a matéria, é destinada para as indústrias da soja e da pecuária bovina, setores com amplo histórico de violações socioambientais na Amazônia e no Cerrado brasileiro”.
Aí estão as causas das frequentes inundações catastróficas e queimadas calamitosas. No lugar de brigarem entre si, como na mitologia, os deuses do capitalismo se unem na promoção do apocalipse planetário.
Leia também: O ecossocialismo contra a barbárie do Antropoceno
21 de outubro de 2024
O ecossocialismo contra a barbárie do Antropoceno
Para Lênin, o militante socialista tinha que ser, antes de tudo, um “tribuno do povo”. Ou seja, ser alguém “capaz de reagir a qualquer manifestação de tirania e opressão, não importa onde apareça, nem qual seja a classe das pessoas atingidas por ela”.
Nos tempos atuais, os socialistas precisam ser também tribunos do meio-ambiente, diz Ian Angus, em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”.
Marx dizia que as pessoas não mudam a si mesmas e depois mudam o mundo. Elas mudam a si mesmas, mudando o mundo, afirma Angus. Mas não existe revolução em que todos ganham. Numa verdadeira revolução, diz ele, aqueles que têm poder e privilégios na velha sociedade devem perdê-los na nova.
Marx e Engels advertiram: a luta de classes conduzirá ou a “uma reconstituição revolucionária da sociedade em geral” ou à “ruína comum das classes em conflito”. No Antropoceno, a ruína comum, a destruição da civilização, é uma forte possibilidade. Por isso, o autor defende um movimento com um programa ecossocialista que faça a ligação entre a raiva espontânea de milhões de pessoas e o início de uma transformação ecossocialista.
Se lutarmos, podemos perder. Se não lutarmos, perderemos, diz ele. A sorte ou o acaso podem desempenhar um papel, mas uma luta consciente e coletiva para deter o trem infernal do capitalismo é a nossa única esperança para um mundo melhor.
Por fim, Angus cita Gramsci, para quem era urgente “deter a dissolução que corrói as raízes da sociedade humana”. Somente assim, a “árvore nua e estéril pode tornar-se verde novamente”.
Esta pílula encerra a série sobre a obra de Angus.
Leia também: A União Soviética se rende ao capitalismo fóssil
18 de outubro de 2024
A União Soviética se rende ao capitalismo fóssil
Segundo Ian Angus, em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”, no início da década de 1930, a União Soviética era líder mundial em ciência ecológica e legislação ambiental. Foi o primeiro país a criar grandes áreas de conservação e um dos pioneiros na proibição da caça de espécies ameaçadas de extinção.
Havia forte apoio para cientistas como Vernadsky, que desenvolveu a teoria da biosfera, e Vavilov, primeiro a traçar as origens genéticas das principais plantas alimentícias do mundo. Tragicamente, diz Angus, o estalinismo abandonou a visão marxista do socialismo como desenvolvimento humano sustentável. Para superar o capitalismo, o regime adotou um modelo de industrialização acelerada, desprezando os custos humanos e ambientais.
Para citar apenas um exemplo, na década de 1960, as autoridades soviéticas lançaram um enorme projeto de desvio de rios que desaguavam no Mar de Aral para irrigar plantações de algodão. As novas safras tornaram a União Soviética o segundo maior exportador mundial do produto. Mas, em 1989, o Aral, que era o quarto maior corpo de água do mundo, tinha sido reduzido a menos de 10% do seu tamanho original.
Na década de 1980, a União Soviética tornou-se o segundo maior emissor mundial de gases com efeito estufa. A legislação ambiental soviética era excelente no papel, mas não evitou que o país sucumbisse ao capitalismo fóssil, tal como aconteceu com as outras potências da época.
Os fracassos ambientais do Bloco Soviético no século 20 demonstram porque a ecologia deve ter um lugar central na teoria, no programa e nas atividades socialistas, conclui o autor.
Lei também: No capitalismo fóssil, Hades no comando
No capitalismo fóssil, Hades no comando
Há uma grande polêmica entre os geólogos para saber se estamos vivendo atualmente na idade do Holoceno ou do Antropoceno. Este último período seria caracterizado pelo papel decisivo das ações humanas nas grandes transformações que o planeta vem sofrendo há quase um século.
Mas apesar da resistência de cientistas mais conservadores, as evidências em favor do Antropoceno são cada vez maiores. Por exemplo, entre 19 e 24/09/2024, as queimadas transformaram o sudoeste da Amazônia na região que mais emitiu gases de efeito estufa no planeta. Ao mesmo tempo, na floresta mais úmida do mundo falta água, morrem os peixes e a população pobre passa fome.
Um recente estudo publicado na revista “Nature Ecology & Evolution” mostra que Austrália, Canadá, Chile, Portugal, Indonésia, Sibéria e o oeste dos Estados Unidos estão entre os lugares mais afetados por incêndios florestais nos últimos anos.
Difícil esconder as marcas sujas das digitais do capitalismo fóssil nisso tudo.
O primeiro período geológico da terra é chamado de "Hadeano", inspirado em Hades, o deus do submundo dos mortos na mitologia grega. O nome refere-se às condições infernais que prevaleciam na Terra primitiva. O planeta acabara de ser formado e sua superfície ainda estava derretida com lava superaquecida e temperaturas altíssimas.
Bom, é possível que a polêmica entre defensores do Holoceno e do Antropoceno dê lugar ao debate para saber se vamos viver novo período infernal no planeta. Mas diferente do anterior, já não seria o poderoso deus grego o responsável. No lugar de Hades, o filho de Cronos, estaríamos sob o domínio de demônio Fóssil, criatura do diabólico Capital.
Leia também: Os palavrões do Antropoceno
16 de outubro de 2024
A luta de classes no oco do mundo
Rosana Pinheiro-Machado é uma antropóloga que vem realizando estudos de campo com moradores da periferia das grandes cidades há mais de uma década. Em entrevista à revista eletrônica CTXT, ela afirma que suas pesquisas indicam “fortes evidências de que os setores que escaparam à pobreza apoiam políticos autoritários. A insuficiência do setor público e a precariedade do mercado de trabalho, diz ela, proporcionam o cenário perfeito para que figuras conservadoras do marketing digital se tornem novos líderes políticos”. Segundo Rosana, muitas pessoas entram nessa lógica porque querem melhorar de vida, mas acabam caindo em redes de extrema-direita.
Citando Pablo Marçal, a antropóloga lembra que ele “conhece todas as técnicas populistas. Domina redes, algoritmos, invade o cérebro das pessoas, estuda neurolinguística”. E exemplifica destacando uma frase em que Marçal se referia a Guilherme Boulos: "O outro lá invade terrenos. Eu invado cérebros. Entro no cérebro da pessoa, faço ela ficar com raiva e depois pulo para o outro lado".
Marçal utiliza técnicas capazes de atrair pobres e remediados. Transforma milhões de frustrados pelas falsas promessas de prosperidade em pessoas socialmente egoístas e selvagens. Ocupa a vida oca dos ressentidos, os enfurece e pula “para o outro lado”.
E deste lado, ficamos nós, entregando pacotes vazios, etiquetados com palavras abstratas como “austeridade”, “responsabilidade fiscal” e “união nacional”. Não à toa, a raiva sentida pela maioria pobre da população se transforma em votos conservadores e em mobilização fascista.
Marçal, Bolsonaro e outras lideranças canalhas só fazem o que boa parte da esquerda deixou de fazer: travar a luta de classes bem no meio do oco do mundo.
Leia também: A esfinge dialética: decifra-me, enquanto te devoro
15 de outubro de 2024
Os palavrões do Antropoceno
Muito do que parece ser resultado das alterações climáticas é, na verdade, promovido por políticas de racismo e exclusão incorporadas à lógica do capitalismo fóssil. É assim que Ian Angus introduz o conceito de “exterminismo” em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”.
Em 1980, o historiador inglês E. P. Thompson, diz ele, criou o termo “exterminismo” para descrever as possíveis consequências da corrida nuclear.
Mas Angus prefere citar o escritor estadunidense Stan Goff, que utiliza o conceito de Thompson em seu relato sobre o Katrina, desse modo: “O exterminismo é a aceitação explícita ou não de mortes em massa como preço a ser pago pela preservação do poder econômico e político da classe dirigente. O exterminismo não se caracteriza por ações ofensivas, mas, frequentemente, ocorre por negligência calculada. Seus instrumentos são pobreza, doença, subnutrição e catástrofes ‘naturais', geralmente facilitadas pelo isolamento econômico e deslocamento populacional em massa”.
Nos dias que se seguiram ao furacão Katrina, em 2006, várias centenas de pessoas, incluindo bebês de colo e idosos cadeirantes, tentaram deixar Nova Orleans atravessando uma ponte para Gretna, cidade do outro lado do Rio Mississipi. Mas a força policial da localidade impediu o acesso, disparando tiros para o ar. As autoridades locais não permitiriam a entrada de “desabrigados” negros em Gretna.
Portanto, não surpreende o fato de que 46% dos moradores das áreas mais atingidas pelo Katrina fossem negros, em comparação com os 26% das áreas sem maiores estragos.
Antropoceno e exterminismo são dois conceitos malditos criados pela sociedade industrial. Precisamos nos livrar do capitalismo fóssil, para que nunca mais precisemos usar palavrões como esses.
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14 de outubro de 2024
A esfinge dialética: decifra-me, enquanto te devoro
A última pílula citou as formulações de Marx e Gramsci para mostrar que o senso comum é um emaranhado contraditório, constantemente atravessado por valores e preconceitos da ideologia dominante.
Apesar disso, boa parte da esquerda insiste em culpar a população pela confusão ideológica que vem garantindo seguidas vitórias à extrema-direita. Uma atitude metafísica que, a rigor, equivale a culpar a própria realidade.
Diante dessa situação, perguntava a última pílula, “o que fazer?”. Claro que não há resposta pronta para essa questão. Assim como não havia nada de universal ou definitivo na famosa resposta formulada por Lênin. Afinal, ele mesmo dizia que suas propostas eram produto “da análise concreta de situações concretas”.
A compreensão sobre o funcionamento e a dominação no capitalismo contemporâneo está presente em muitos estudos e pesquisas bastante precisos, sofisticados e de grande qualidade acadêmica.
Mas se todo esse acúmulo crítico não produzir efeitos transformadores na vivência concreta dos explorados e oprimidos, torna-se inútil. Marx, Engels, Gramsci, Lênin eram grandes teóricos, mas sua prioridade era a transformação da realidade, não apenas sua apreensão.
Nossa abordagem da realidade dos explorados e oprimidos é limpa, mas superficial. A da extrema-direita chafurda, mas pavimenta com eficiência o caminho da barbárie.
Os enigmas da luta de classes só se deixam revelar nos terrenos onde assumem toda sua radicalidade. É lá que a dialética costuma se apresentar como a esfinge que nos desafia a decifrar seu mistério dizendo: "Decifra-me, enquanto te devoro".
A esquerda precisa encontrar um modo de responder a esse desafio urgentemente. Se continuarmos perdidos em nossas abstrações, acabaremos sendo tragicamente devorados pelo enigma.
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12 de outubro de 2024
Maçaroca ideológica e realidade contraditória
O vereador do PSOL mais votado no Rio de Janeiro foi Rick Azevedo, defendendo redução da jornada de trabalho. Ótimo. Mas ele também declarou que a CLT é um regime de escravidão.
Muitos de nós consideram esse raciocínio extremamente contraditório. Mas desde que o marxismo surgiu, uns 170 anos atrás, temos elementos suficientes para saber que, muitas vezes, a realidade que é contraditória.
E se isso não bastasse, ainda é possível contar com a ajuda da obra que Antônio Gramsci iniciou há mais de 100 anos. Segundo o revolucionário italiano, a ideologia dominante é formada por uma maçaroca de concepções de mundo, misturando religião, filosofia, valores tradicionais e modernos, crenças e preconceitos etc. Mas nem por isso, ela é imutável ou monolítica, sofrendo metamorfoses que se adaptam às necessidades da luta de classes.
Carteira assinada, empreendedorismo liberal, teologia da prosperidade, livre comércio, imprensa livre, conservadorismo de costumes, autoritarismo, fundamentalismo religioso, estado mínimo, corporativismo sindical...
Todos esses valores hegemônicos conflitantes e até opostos entre si convivem bem porque correspondem às contradições da própria realidade. E quando os choques se tornam agudos a ponto de ameaçar a ordem dominante entra em cena o elemento de coerência nesse aparente caos: a dominação burguesa e seu aparato de repressão.
Sempre que ignora esse elemento de coerência, a esquerda acaba culpando ou o povo ou a burguesia. Culpar o primeiro é abrir mão da disputa política e contra-hegemônica. Culpar a segunda, é pedir ao inimigo para pegar leve. Ambas as atitudes implicam abdicar da verdadeira transformação social.
O que fazer, então? Fica para a próxima pílula
Leia também: Nas periferias, CLT é coisa de otário
11 de outubro de 2024
O Titanic das catástrofes ambientais
Estima-se que 90% do comércio mundial é feito por navios que emitem anualmente mais gases de efeito estufa que 205 milhões de automóveis. Se esses cargueiros fossem um país, seriam o sexto maior emissor, ficando logo abaixo do Japão e acima da África.
Mas esse não é todo o problema. Quem afirma que na crise ambiental estamos todos no mesmo barco, ou está enganado ou está enganando. Muitos cargueiros dos países ricos, por exemplo, despejam seu lixo em águas de países periféricos para cortar custos logísticos e ambientais.
A imensa maioria das vítimas de catástrofes ambientais estão nos países dependentes e 75% delas são mulheres. Os países mais pobres, principalmente os que ficam ao sul do Saara, na África, são os mais atingidos. Dentro de cada nação, os mais pobres, mulheres, crianças e idosos têm maior probabilidade de perder suas casas e meios de subsistência devido às alterações climáticas. Também têm mais chances de morrer.
Cada vez mais, a divisão não é apenas entre ricos e pobres, ou conforto e pobreza: é entre sobrevivência e morte.
Continuamos navegando em nosso Titanic enquanto ele se dirige lentamente rumo a um mar escuro e ameaçador. Os marinheiros entram em pânico e aqueles que pagaram passagens mais baratas já começam a cair na água.
Como diz a escritora Arundhati Roy:
Os ricos ficam despreocupados ao saber que os botes salva-vidas são reservados aos passageiros de sua classe. E a tragédia é que eles provavelmente estão certos.
Os dados e argumentações acima estão no livro “Enfrentando o Antropoceno”, de Ian Angus.
Leia também: Capitalismo fóssil: só danos, sem redução
9 de outubro de 2024
Nas periferias, CLT é coisa de otário
“Quero ser Pablo Marçal: por dentro da arriscada indústria que promete fabricar milionários”. Este é o título de uma ótima reportagem da BBC, publicada em 02/10/2024.
A matéria divulga conclusões de uma pesquisa da University College Dublin (UCD) feita durante dois anos, junto aos 500 maiores influenciadores de marketing digital do Brasil. A análise incluiu também um milhão de pessoas que fizeram algum dos cursos desses influenciadores, ou manifestaram interesse em fazê-los. O trabalho foi coordenado pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora titular da UCD.
Segundo o levantamento, 13 milhões de pessoas “estão empreendendo no Instagram hoje no Brasil, por meio das contas comerciais”. Mas Rosana estima que a quantidade de gente usando o Instagram para vender algum produto no País hoje é muito maior, girando em torno de 25 milhões.
Os dados revelam a maneira como a maior parte dos influenciadores opera e seus padrões de discurso, que incluem a aversão ao emprego formal regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e críticas à formação superior.
"A lógica da pessoa querer ser chefe de si mesma, em um país onde muitos empregos estão marcados pela lógica da humilhação, é muito libertadora", afirma a antropóloga.
Quem mora nas periferias e bairros pobres das grandes cidades brasileiras não se surpreenderia com muitas dessas conclusões. Nesses lugares, chamar alguém de CLT é o mesmo que xingar de otário.
Tudo isso tem muito a ver com as recentes ofensivas da extrema direita e com a grande votação de Pablo Marçal para a prefeitura de São Paulo. Mas voltaremos ao tema em algumas das próximas pílulas.
Leia também: A economia idiota dos exploradores
8 de outubro de 2024
Capitalismo fóssil: só danos, sem redução
Desde o século 19, a relação entre o crescimento do capitalismo e o aumento das emissões de gases de efeito estufa tem sido muito estreita. Esses gases liberam muito carbono na atmosfera devido ao uso excessivo de combustíveis fósseis.
Combustíveis fósseis estão presentes na produção de alimentos, roupas, moradias, aquecimento, remédios, transporte, comunicações, entretenimento e muito mais. O capitalismo nasceu e sempre foi fóssil, afirma Ian Angus em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”.
Estudos realizados por diversos grupos ambientalistas demonstram que é perfeitamente plausível uma transição completa para combustíveis renováveis e sem carbono. Mas a um custo estimado em US$ 100 trilhões. Muito caro?
Durante a Segunda Guerra, foram produzidos cerca de 6 mil navios, 850 mil aviões, 5 milhões de tanques, 8 milhões de armas de grande porte e as bombas atómicas. Tudo em apenas seis anos e ao custo de muitos trilhões de dólares. O mesmo esforço poderia ser feito em relação à troca das matrizes energéticas? Sim, mas não sob o capitalismo.
O fato é que os combustíveis fósseis são a força motriz que garante ao capitalismo lucros nos níveis necessários para sua reprodução. O problema é que essa reprodução beneficia apenas uma pequena maioria e ainda causa os mais terríveis efeitos colaterais para o restante de nós. É só olhar em volta para constatar isso.
O capital é viciado em lucros e dependente de petróleo, gás e carvão. Mas quem sofre com essa relação patológica é a imensa maioria da humanidade. Ficamos com cada vez mais danos, sem qualquer redução. O capitalismo é uma droga de que precisamos nos livrar urgentemente.
Leia também: O ambientalismo militar dos Estados Unidos
7 de outubro de 2024
Mafalda: atual aos 60 anos
Em uma das tirinhas, por exemplo, Mafalda se depara com uma criança e diz: ‘Oi! Como você é pequeninha! Qual é seu nome?”. “Liberdade”, ela responde.
Um assunto que também era importante aparece na tira publicada acima. Infelizmente, as guerras continuam e vêm se tornando ainda mais destrutivas.
Mas o desenhista também abordava questões como o meio ambiente, o machismo e o consumismo. Temas que ganhariam maior destaque muito tempo depois.
É o caso da ecologia. No início dos anos 1970, era uma preocupação restrita a pequenas comunidades acadêmicas e alternativas. Em uma de suas ilustrações, Quino mostra um globo terrestre rodeado de remédios. Mafalda, ajoelhada ao lado dele, usa um termômetro para medir sua temperatura. Os sintomas do aquecimento global já apareciam nos desenhos do artista argentino, muitos anos antes de se tornarem preocupação generalizada.
A denúncia do machismo aparece em cenas que trazem a mãe de Mafalda escravizada aos afazeres do lar, enquanto pensa com tristeza na carreira profissional que deixou para trás.
Em outro momento, Mafalda assiste à TV, que dispara apelos consumistas como “Use”, “compre”, “beba”, “coma”, “experimente”! “Eeeei! reage a menina, o que eles pensam que nós somos?”. Assustada, ela mesma responde: “Eles sabem quem nós somos!”. Muitas décadas atrás, Quino parecia adivinhar o poder dos algoritmos.
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4 de outubro de 2024
O ambientalismo militar dos Estados Unidos
É impossível determinar o impacto dos gastos bélicos estadunidenses sobre as alterações climáticas, porque as emissões militares foram excluídas do Acordo de Quioto. Mas estima-se que um milhão de barris de petróleo por dia é “um número seguro e até conservador”. Isso seria suficiente para aumentar o total das emissões dos Estados Unidos em escandalosos 5%.
Basta dizer que 70% do peso de todos os soldados, veículos e armas norte-americanos compõe-se de derivados de combustível fóssil. Ou seja, o exército estadunidense é altamente inflamável. Principalmente quando suas bombas incendeiam cidades, aldeias e vilarejos pelas periferias do mundo.
Mas o governo estadunidense está preparado para os problemas ambientais desde 2003. Durante a administração Bush, o Pentágono fez um estudo intitulado “Um cenário abrupto de mudanças climáticas e suas implicações para a segurança nacional”. Segundo o documento, os Estados Unidos provavelmente poderiam sobreviver a ciclos de cultivo menores e condições climáticas adversas sem perdas catastróficas. Desde que as fronteiras sejam reforçadas em todo o país para conter imigrantes famintos indesejados vindos do Caribe, México e América do Sul. E o fornecimento de energia seja reforçado através de alternativas como energia nuclear, energias renováveis, hidrogénio e contratos exclusivos com o Oriente Médio.
Claro que tudo isso vai depender de muita força bélica. Ou seja, o militarismo estadunidense tanto causa como reforça o apocalipse ambiental.
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2 de outubro de 2024
O efeito estufa e o sufocamento machista
Eunice Newton Foote foi uma cientista e militante feminista estadunidense. Foi a primeira pesquisadora a concluir que certos gases aqueciam quando expostos à luz solar, e que o aumento dos níveis de dióxido de carbono mudaria a temperatura atmosférica, podendo afetar o clima. Um fenômeno conhecido atualmente como efeito estufa.
Falecida em 1888, suas contribuições caíram no esquecimento por mais de cem anos. Até o século 21, a descoberta do efeito de estufa era atribuída a John Tyndall. Mas Eunice publicou os resultados de sua pesquisa em 1856, três anos antes de Tyndall divulgar seu trabalho. Sendo que Eunice nem era uma cientista profissional, realizando seus experimentos movida pela curiosidade e guiada por seu talento.
Nascida em Connecticut, Eunice foi criada em Nova York, centro dos movimentos sociais e políticos da época, como o abolicionismo e a luta por direitos para as mulheres. Em 1848, participou da Convenção de Seneca Falls, a primeira sobre direitos das mulheres realizada nos Estados Unidos. Eunice e Elisha, seu marido, foram signatários da Declaração de Sentimentos aprovada no evento, exigindo direitos sociais e legais iguais aos dos homens, incluindo o direito ao voto.
As informações acima são da Wikipedia. Como se pode ver, não bastassem graves problemas como aquecimento global e negacionismo climático e científico, ainda há o sufocamento machista imposto às mulheres. É desse modo que se asfixia a inteligência de metade da humanidade para preservar os mitos sobre a superioridade intelectual masculina.
Como disse, certa vez, o educador Mario Sérgio Cortella: “O contrário do machismo não é o feminismo. O contrário do machismo é a inteligência”.
Leia também: Ada Lovelace, criadora do algoritmo cibernético
1 de outubro de 2024
A economia idiota dos exploradores
“É a economia, idiota”. Esta frase ficou famosa nas eleições presidenciais estadunidenses de 1992. Foi dita por James Carville, estrategista da campanha de Bill Clinton contra George Bush.
Na época, a reeleição de Bush parecia garantida graças à rápida vitória estadunidense na primeira Guerra do Golfo e ao fim da União Soviética. Mas a recessão econômica que castigava o país levou os eleitores a escolher Clinton.
Algo semelhante, mas invertido, parece estar ocorrendo nas atuais eleições municipais brasileiras. O desemprego está baixo, a renda aumentou, as projeções de crescimento do PIB subiram e a inflação quase zerou, em agosto.
Apesar disso, o PT patina nas projeções das eleições municipais. Nas capitais, por exemplo, não há nenhum favorito petista. Há várias explicações para isso, incluindo o apoio a candidaturas de terceiros devido a alianças julgadas necessárias para a “governabilidade”.
Mas, talvez, o problema seja o modo como se costuma entender a economia. Muitos a veem de forma reducionista, matemática, de curto prazo. Uma concepção que interessa aos poderosos.
Um dos criadores da economia política clássica e herói de muitos neoliberais é Adam Smith. Mesmo para ele, porém, a dimensão moral é fundamental para compreender os fenômenos econômicos. Esse tipo de reflexão aparece em sua obra “A Teoria dos Sentimentos Morais”, que os neoliberais preferem ignorar.
O problema é que a esquerda também teima em agarrar-se à macroeconomia abstrata do capital. Com isso, deixa a direita à vontade para defender seus valores conservadores e reacionários na realidade cotidiana de milhões de explorados que lutam para sobreviver.
É a economia, sim. Mas não a economia idiota dos exploradores.
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