Doses maiores

31 de março de 2020

Pandemia e oportunismo: trabalho precarizado

Especialistas em investimentos financeiros vêm aparecendo nas redes virtuais ou grande mídia para lembrar que toda “crise também é oportunidade”. Eles dizem coisas repugnantes como “é hora de investir em ações de empresas de equipamentos médicos”.

É feio, mas cínicos não costumam mentir. É verdade que a atual crise pandêmica está criando muitas oportunidades. Só que a grande maioria delas servirá para aprofundar ainda mais a exploração do trabalho pelo capital.

“O mundo nunca vai ser o mesmo após a pandemia”, diz um consenso surgido com a crise causada pelo coronavírus-19. “O teletrabalho veio para ficar” é outro desses consensos.

Muitos funcionários do setor de serviços e servidores públicos que hoje estão trabalhando em casa podem não retornar mais a seus escritórios e repartições, quando a pandemia der uma trégua.

Mas a grande maioria estará muito longe de desfrutar do privilégio de “ficar perto da família e longe das cobranças”. Muito mais provável é uma nova epidemia de trabalho domiciliar à moda do século 19 na Europa ou do sul global atual, com suas oficinas em garagens e porões residenciais.

A tecnologia para essa transição já está pronta há algum tempo. A produtividade do teletrabalho não apenas pode ser medida em tempo real. Ela também permite condicionar a remuneração final do “produtor” tanto quanto o trabalho por peça no início da Revolução Industrial.

E aqueles que resistirem ainda serão condenados por não colaborarem com o “esforço de guerra no combate ao vírus”.

As oportunidades oferecidas pela atual pandemia ao grande capital são muitas. Uma delas será, certamente, promover uma nova e enorme onda de precarização do trabalho.

Leia também: Por uma Greve Geral Humanitária

30 de março de 2020

Por uma Greve Geral Humanitária

O bolsonarismo só existe como mobilização permanente. A pandemia retirou os holofotes de suas performances bizarras. E por um motivo óbvio. Seu discurso sempre teve como base uma doença imaginária. O corpo nacional íntegro, são e masculino só poderia ser violado pela “ideologia” que é tão invisível quanto o covid 19. A “ideologia” não pode ser vista, mas suas manifestações são sentidas no modo de vida. Aquele que acredita no discurso (ideológico) contra a ideologia sabe que seu inimigo está enraizado no cotidiano. Por mais que deseje a submissão da mulher, a erradicação da homossexualidade, o controle da educação e o fim das artes, reconhece que isso não é possível e que o “vírus” ideológico pode estar dentro dele mesmo. O líder manipula exatamente esse sentimento para a mobilização perene. Promete repressão para os que já se reprimem.

(...)

Ora, diante de um vírus real a manipulação entrou num curto circuito. As pessoas passaram a temer uma ameaça verdadeira.
O trecho acima é de um texto de Lincoln Secco, militante marxista, petista e historiador. Está disponível aqui e merece ser lido na íntegra, pois também alerta para uma outra “doença” presente entre nós. O imobilismo continua a contagiar as lideranças dos movimentos sociais, mesmo quando há divisões nas fileiras do inimigo.

Como saída, Lincoln propõe que a classe trabalhadora inicie uma “greve geral humanitária internacionalista”, diz ele. Uma resposta que, sendo bem sucedida, “vai mudar radicalmente a conjuntura. Porque isso só acontece a partir da base produtiva e não de disputas parlamentares”.

É isso! Uma resposta global para dois flagelos globais: a pandemia e o capitalismo.

Leia também: Greve geral sanitária, já!

28 de março de 2020

Anticorpos contra o fascismo: o populismo (2)

Voltando ao conceito de populismo, em seu livro “As novas faces do fascismo”, Enzo Traverso cita uma definição de Jacques Rancière:
Populismo é o nome conveniente sob o qual se procura dissimular a contradição exacerbada entre a legitimidade popular e a legitimidade de especialista, ou seja, a dificuldade que o governo da ciência tem em se adaptar às manifestações da democracia... 
O filósofo francês está se referindo aos governos neoliberais, que alegam tomar decisões puramente técnicas. Não seriam, portanto, nem de esquerda nem de direita.

É com essa pretensão que, por exemplo, a chamada “troika” manda na Comunidade Europeia. Trata-se de uma entidade informal composta por FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. Ela dita políticas para todos os governos da União Europeia, sem ter recebido um único voto popular.

Foi a troika que impôs as políticas que, nos últimos anos, aprofundaram a destruição dos serviços públicos que, agora, fazem tanta falta diante do avanço do coronavírus-19.

Qualquer um que questione essa lógica, é considerado populista. Mas quando o governo que faz isso é de esquerda, é asfixiado até se render, como aconteceu com o governo do Syriza, na Grécia.

Governos populistas de direita, porém, muito dificilmente se indispõem com os neoliberais, mantendo intactos os interesses do grande capital. Mesmo quando desferem ataques fascistas à democracia, continuam a ser tratados apenas como populistas. Afinal, quanto menos participação social e política, melhor para o “ambiente de negócios”.

É desse modo que em nome do combate ao populismo, o neoliberalismo impõe políticas de direita que bloqueiam os caminhos da esquerda, mas abrem avenidas para o avanço do fascismo.

Leia também: Anticorpos contra o fascismo: o populismo

26 de março de 2020

Greve geral sanitária, já!

Enquanto Bolsonaro bate boca com governadores, o grande empresariado tem seus interesses atendidos. Veja-se, por exemplo, o título de matéria da Folha de hoje: “Governo atende a quase todos pleitos da indústria em MP trabalhista e deixa centrais de fora”

No Globo, Miriam Leitão, avisa: “Há um novo consenso entre economistas: é preciso aumentar o gasto público”. E na Revista Exame, o magnata Abílio Diniz afirma: "Paulo Guedes é liberal, mas em momentos de crise somos todos keynesianos".

O keynesianismo a que se refere Diniz certamente não implicaria a estatização de setores estratégicos da estrutura econômica. Apenas mais e maiores subsídios para ele e seus colegas de classe.

Uma possível queda de Bolsonaro muito dificilmente alteraria esse quadro. Os prováveis responsáveis pela manobra seriam governadores com grande identidade ideológica com o capitão e rabo acorrentado ao empresariado.

Enquanto isso, o que podem fazer as forças de esquerda? Alguns dos trabalhadores estão isolados em casa, mas muitos outros trabalham.

Se não é possível lotar as ruas, que abandonemos os locais de trabalho. É preciso construir uma greve geral sanitária, nos moldes dos movimentos que já vêm propondo petroleiros e metalúrgicos.

Ao keynesianismo de araque dos patrões, oporíamos um programa amplo e radical de resgate social bancado pelo grande capital. Para começar, garantindo salários integrais para todos, trabalhando ou não.

Para custear essa medida, imediata e pesada taxação das grandes fortunas e suspensão do serviço da dívida pública. Esta e outras medidas semelhantes precisam ser debatidas.

Não é possível continuarmos em nossa quarentena passiva, enquanto patrões e governos se distraem calculando quantos de nós devem morrer.

Leia também: Uma doença oportunista a espera do coronavírus

25 de março de 2020

Anticorpos contra o fascismo: o populismo

A grande mídia tem apontado o populismo de alguns governos como um dos grandes responsáveis pela tardia ou irresponsável reação ao coronavírus-19.

Populistas, nesse caso, seriam Trump, Bolsonaro, Boris Johnson...

Mas o fato é que populismo tem sido o conceito favorito da grande mídia e de seus “especialistas” quando se trata de evitar termos mais pesados, como fascismo.

Afinal, como considerar fascista um governante como Bolsonaro e continuar a apoiar muitas de suas decisões?

No seu livro “As novas faces do fascismo”, Enzo Traverso tenta esclarecer essa confusão.

Para o consenso estabelecido, diz ele, populismo seria “um procedimento retórico que consiste em exaltar as pessoas comuns, opondo-as à elite (...) a fim de mobilizá-las contra o ‘sistema’”.

Segundo essa categorização capenga, populistas seriam Sarkozy, Berlusconi e Orbán, assim como Chávez, Morales e Kirchner. O problema é que são ignoradas as muitas diferenças ideológicas radicais entre essas lideranças.

Chávez, por exemplo, seria um populista porque usaria a demagogia como técnica de comunicação. Mas seu populismo era a forma mais consistente de resistência política contra a globalização neoliberal em seu país, afirma o autor.

Já, os partidos “populistas” da Europa Ocidental se caracterizam por suas propostas xenófobas e racistas, procurando retirar direitos e conquistas das camadas mais baixas e marginalizadas da população.

Nesse último caso, trata-se de fascismo, não de populismo. E a forma como vêm reagindo à  atual pandemia só reafirma isso. Trump e Bolsonaro infestam o ar de fascismo sempre que abrem a boca para falar sobre o coronavírus.

Voltaremos ao tema, pois nos interessa desenvolver defesas eficazes tanto contra o coronavírus como contra o fascismo.

Leia também:
Uma doença oportunista a espera do coronavírus
Coronavírus-19: os maiores transmissores

24 de março de 2020

Uma doença oportunista a espera do coronavírus

As recentes medidas de isolamento social devido ao coronavírus-19 não foram acompanhadas por nenhuma rede de assistência capaz de garantir a milhões de pessoas o mínimo necessário para sua sobrevivência.

Elas moram nos bairros pobres das grandes cidades e dependem da venda diária de seu trabalho ou mercadorias para comer. Não têm nada de seu a não ser seus filhos e contas para pagar. Suas condições sanitárias são péssimas.

Elas vão começar a passar fome. Vão adoecer ainda mais. Muitas vão se organizar para se defender. Para buscar atendimento prioritário para suas necessidades e atenção especial do sistema de saúde. Mas outras vão cair no desespero e deixar se levar pelo ódio cego. Devem ocorrer saques, arrastões, violência indiscriminada.

Para os assalariados com algum vínculo trabalhista, será menos pior, mas não muito. Os empresários e a grande mídia falam em “Plano Marshall” para a economia. O governo já sinalizou que entendeu a senha. Preparou um pacote para salvar lucros, não empregos. Haverá mais gente pronta a responder com ódio cego.

A resistência dos movimentos sociais estava paralisada. Agora, está completamente fragmentada. Há iniciativas importantes como as propostas de greves sanitárias dos petroleiros e metalúrgicos de São José dos Campos. Mas por enquanto são exceção.

Já os anticorpos da estrutura de repressão há muito vêm sendo fortalecidos. O combate ao coronavírus-19 não é só mais um episódio de militarização da vida. Sua dimensão totalizante é inédita e esmagadora.

Doenças oportunistas são aquelas que se aproveitam do estado de debilidade das defesas do organismo para causar dano. Há uma terrível doença oportunista no ar: é o capitalismo.

Leia também: A Doença X e seu maior hospedeiro

23 de março de 2020

A Doença X e seu maior hospedeiro

No início de 2018, durante uma reunião na Organização Mundial da Saúde em Genebra, um grupo de especialistas (o R&D Blueprint) cunhou o termo “Doença X”: prevendo que a próxima pandemia seria causada por um novo patógeno desconhecido que não tinha ainda infectado a população humana. A Doença X provavelmente resultaria de um vírus originário de animais e surgiria em algum lugar do planeta onde o desenvolvimento econômico aumenta o contato entre pessoas e animais selvagens.

A Doença X provavelmente seria confundida com outras doenças no início do surto e se espalharia rápida e silenciosamente; explorando rotas de viagens humanas e de comércio, alcançaria vários países e espremeria a contenção. A Doença X teria uma taxa de mortalidade mais alta que uma gripe sazonal, mas se espalharia tão facilmente quanto a gripe. Isso abalaria os mercados financeiros antes mesmo de alcançar um status de pandemia. Resumindo, o Covid-19 é a Doença X.

Como argumentou o biólogo socialista Rob Wallace, as pragas não são apenas parte de nossa cultura. Elas são causadas ​​por ela.

O trecho acima está em artigo de Michael Roberts disponível aqui. Nele o economista marxista britânico mostra como não é preciso conspirações e planos diabólicos para que pandemias como o coronavírus-19 surjam. Bastam que se deixem agir as leis da exploração sem freios da ocupação humana do planeta. Em especial, em sua fase industrial, quando um único e predatório padrão de exploração da natureza começou a se disseminar pelo mundo.

Em 2018, não havia como dar um nome à Doença X. Mas seu hospedeiro há muito tempo tem nome e sobrenome: exploração capitalista.

20 de março de 2020

A ordem é sacrificar primeiro idosos e vulneráveis

Michael Roberts é um respeitado economista marxista inglês. Recentemente, publicou um esclarecedor artigo sobre o coronavírus-19 em seu blog. Merece ser lido na íntegra. São informações muito importantes.

E assustadoras.

Em relação aos meios de contenção da doença, por exemplo, ele comenta que “a Itália segue a abordagem chinesa do bloqueio total”, cujo efeito imediato é a paralisação da economia, aumentando a “recessão macroeconômica”.

Mas, no caso britânico, diz ele, a abordagem é diferente e “muito arriscada”. Trata-se:

...de auto isolamento para os vulneráveis​, permitindo que jovens e saudáveis ​​sejam infectados, a fim de criar a chamada imunidade de rebanho e evitar que o sistema de saúde seja sobrecarregado. O que essa abordagem significa é basicamente deixar morrerem os velhos e vulneráveis, porque eles vão morrer de qualquer maneira se infectados e evitar um bloqueio total que danificaria a economia (e os lucros). A abordagem dos EUA é basicamente não fazer nada: nenhum teste em massa, nenhum auto isolamento, nenhum fechamento de eventos públicos; apenas esperar até as pessoas ficarem doentes e depois lidar com os casos mais graves.

Poderíamos chamar essa última abordagem de resposta malthusiana. O mais reacionário dos economistas clássicos no início do século 19 foi o reverendo Thomas Malthus, que argumentou que havia muitas pessoas pobres “improdutivas” no mundo, então pragas e doenças regulares eram necessárias e inevitáveis ​​para tornar as economias mais produtivas.

Não à toa, diz Roberts, Marx chamou a “economia clássica” do século 19 de filosofia da miséria. O problema é que o século 19 ficou para trás, mas não sua filosofia. Muito menos a miséria causada por ela.

Leia também: Coronavírus-19 e luta de classes

19 de março de 2020

Coronavírus-19 e luta de classes

Mike Davis é um escritor, militante político, urbanista e historiador estadunidense. Suas investigações dedicam-se principalmente às relações entre poder e classes sociais.

Mas entre suas maiores preocupações estão também os sérios riscos patológicos causados pela organização capitalista da produção. É o caso de recente artigo publicado pelo portal da Boitempo, sobre as relações entre a pandemia do coronavírus-19 e a luta de classes.

Um trecho é tristemente esclarecedor:

...quem dispõe de um bom plano de saúde e também tem condições de trabalhar ou lecionar de casa está confortavelmente isolado, contanto que siga com prudência as diretrizes de segurança. Funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados que gozam de uma cobertura decente terão de fazer escolhas difíceis, optando entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores de baixa renda do setor de serviços, trabalhadores agrícolas, desempregados e sem teto estão sendo atirados aos lobos.

Davis também lembra o que escreveu em seu livro “O monstro bate à nossa porta”, de 2005:

O acesso a medicamentos vitais, incluindo vacinas, antibióticos e antivirais, deveria ser um direito humano, universalmente disponível a preço zero. Se os mercados não tiverem condições de fornecer incentivos para produzir tais drogas de maneira barata, então os governos e as organizações sem fins lucrativos deveriam assumir a responsabilidade por sua manufatura e distribuição. A sobrevivência dos pobres deve sempre ser prioridade sobre os lucros do grande complexo farmacêutico.

É com esse tipo de proposta que podemos transformar a tragédia social que surge no horizonte em oportunidade para emperrar a máquina de morte e doenças do capitalismo. Mas não esperemos iniciativa alguma de governos.

18 de março de 2020

Coronavírus-19: o que mais está sendo incubado?

Raquel Varela é uma historiadora portuguesa muito combativa. Em seu blog, publicou uma nota importante sobre uma proposta em discussão em Portugal:

...declarar-se o Estado de emergência é um grave erro, vamos arrepender-nos se o permitirmos. Nós já suspendemos, contra o Governo, a circulação e o contacto, as ruas estão vazias, deprimentemente vazias. As lojas e restaurantes fecham porque não há clientes. Nem nas praias nos aglomerámos (...), nem nos jardins, nem nos passeios, todos estão afastados de todos. Tristes mas seriamente afastados. O que precisamos é que fechem os grandes lugares de trabalho não essenciais, e deixem os outros essenciais a laborar protegidos. Não precisamos nem devemos aceitar qualquer suspensão constitucional de direitos, porque a seguir a isto vem uma crise económica, que já estava engendrada, vêm os cortes de salários, mas com proibição de reuniões sindicais, direito de associação, que é isso que significa o Estado de emergência.

E concluiu, alertando:

Todos os sindicatos devem opor-se a isto frontalmente. A Ordem os Advogados, o Ministério Público. Todos os que sabem o que está em jogo, para além do medo. O Estado de emergência é contra as greves, não é contra o COVID.

Ela fala de um país sob um governo de centro-esquerda, reeleito recentemente após rejeitar a austeridade neoliberal como saída para a crise econômica. Este nem de longe é o nosso caso. Além disso, por aqui, nem é preciso decretar um “estado de emergência” para que direitos constitucionais sejam ignorados.

O governo Bolsonaro acaba de publicar portaria autorizando uso de força policial para forçar quarentenas e isolamentos. Algo muito ruim está sendo incubado.

17 de março de 2020

Coronavírus-19: o agronegócio fazendo merda

Em 2005, Mike Davis lançou o livro “O Monstro bate à nossa porta”, alertando para a ameaça de uma pandemia global de gripe aviária. Felizmente, a previsão não se confirmou.

Mas as condições denunciadas por ele para que surgisse uma doença viral capaz de se generalizar persistiram e muito possivelmente pioraram. Tudo indica que é o que presenciamos agora.

Um trecho de um artigo que Davis publicou em 2009, dá uma pista sobre uma das mais prováveis causas da atual pandemia.

...a criação animal nas últimas décadas tem se transformado em algo que mais parece a indústria petroquímica do que a tradicional fazenda familiar retratada em livros didáticos.

Em 1965, por exemplo, havia 53 milhões de porcos em mais de 1 milhão de fazendas americanas. Hoje, a criação de 65 milhões de suínos está concentrada em 65 mil instalações - metade com mais de 5 mil animais.

Essencialmente, houve uma transição entre os velhos chiqueiros para enormes criadouros produzindo vasta quantidade de excrementos, com dezenas e até centenas de milhares de animais com sistemas imunes enfraquecidos, sufocando no calor e no estrume, enquanto trocam doenças entre si a uma velocidade absurda.

A Smithfield Foods, por exemplo, tem duas filiais nos Estados Unidos que criam anualmente mais de 1 milhão de suínos cada, gerando centenas de substâncias tóxicas em lagoas cheias de merda. Qualquer um que presenciar esse tipo de produção pode compreender intuitivamente o quão profundamente o agronegócio tem mexido com as leis da natureza.

Ainda que a origem do coronavírus-19 não esteja esclarecida, certamente o agronegócio tem grande participação nessa merda toda.

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16 de março de 2020

Coronavírus-19: os maiores transmissores

Por enquanto, a mortalidade causada pelo coronavírus-19 é baixa. Limita-se a idosos e pessoas com problemas respiratórios. Mas sua letalidade indireta pode se revelar enorme em pouco tempo.

Em seu atual estágio, o novo vírus mata pouco e desorganiza muito. Em uma economia que globaliza cada vez mais as relações mercantis, mas concentra fortemente lucros e bem-estar, isso pode ter dimensões apocalípticas para a grande maioria.

A globalização facilitou muito a disseminação de doenças. Ao mesmo tempo, seu caráter neoliberal desmontou as já precárias redes de proteção social mundo à fora. Os dispositivos de segurança sanitária estão limitados a minorias cada vez menores.

Outro efeito extremamente nocivo são as crescentes restrições ao direito de circulação e de reunião. Elas podem ser mortais para a esquerda anticapitalista, que fica sem oxigênio quando não consegue estar presente nas ruas e em suas entidades de luta.

Manifestações canceladas, reuniões inviabilizadas, relações fragmentadas. Condições ideias para o funcionamento ainda mais eficiente e massacrante dos aparelhos de dominação e repressão.

Tudo isso para não falar da proximidade de mais um surto da crise de 2008. Naquele ano, o sintoma da doença capitalista se manifestou no mercado imobiliário. Por mais complicada que fosse sua explicação, enxergava-se sua origem em atividades humanas condenáveis.

O sintoma atual da falência capitalista tem uma procedência mais opaca. É a forma como a sociedade capitalista está organizada: criação animal concentrada, desmatamento, falta de saneamento, aglomerações urbanas extremamente adensadas...

A doença continua a ser o capitalismo, mas seus defensores pretendem escondê-la por trás de fatores aleatórios ou forças divinas. Os maiores transmissores do vírus estão no poder.

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13 de março de 2020

Itália, 1924. Brasil, 2020: a esquerda paralisada

Giacomo Matteotti era um traidor de sua classe. Filho da burguesia agrária italiana, foi um respeitado parlamentar socialista. Politicamente moderado, ajudou a fundar o Partido Socialista Reformista em 1922, após abandonar o Partido Socialista.

Ainda assim, demonstrava enorme coragem pessoal e compromisso com a democracia. Alvo do ódio da extrema-direita, por duas vezes, pelo menos, quase foi linchado ao ser reconhecido por hordas fascistas na rua.

Em maio de 1924, fez um duro discurso contra o governo Mussolini diante de um parlamento acovardado. Despertou a ira do “Duce”. Em junho, em plena luz do dia, capangas fascistas sequestram Matteotti. Seu corpo seria encontrado dois meses depois. Havia sido morto a pauladas. Tinha 39 anos.

A comoção é grande. Até setores fascistas desaprovam o ocorrido. A crise ameaça derrubar o governo. Tudo indica que Mussolini foi o mandante. No entanto, como mostra o livro “M, O Filho do Século”, de Antonio Scurati, um discurso do líder fascista diz tudo sobre a situação da esquerda italiana naquele momento.

Nesse pronunciamento feito durante o Grande Conselho do Fascismo, em 22 de julho de 1924, Mussolini diz:

Afinal, o que as oposições estão fazendo? Eles fazem greves gerais ou parciais? Alguma manifestação de rua? Ou tentativas de revolta armada? Nada disso. As oposições conduzem uma controvérsia puramente jornalística. Eles não podem fazer mais nada.

Infelizmente, Mussolini estava certo. E ao sobreviver à crise, novamente fortalecido, consegue aprovar uma lei eleitoral que viria garantir a seu partido ampla maioria parlamentar nas eleições seguintes.

É leviano traçar paralelos entre situações tão diferentes. Mas amanhã completam-se dois anos da morte de Marielle Franco.

Leia também: Itália, 1920: os socialistas vacilam. Os fascistas, não

12 de março de 2020

Itália,1920: os socialistas vacilam. Os fascistas, não

Abril de 1920, Nicola Bombacci chega a Copenhague, Dinamarca. O mais popular dos socialistas italianos vai ao encontro de dois enviados soviéticos: Maksim Litvinov, comissário para assuntos externos, e Leonid Krasin, chefe do comissariado para o comércio exterior.

Bombacci pretendia discutir a revolução italiana com eles. Mas não teve chance. Um e outro foram claros. Sua prioridade era retomar relações comerciais e políticas entre Moscou e os estados capitalistas. Nada mais.

Era o isolamento da Revolução Russa que começava a cobrar um preço alto demais não só dos bolcheviques, mas também dos revolucionários no restante do mundo.

Alguns anos mais tarde, a contrarrevolução stalinista resolveria esse problema da pior maneira possível: qualquer processo revolucionário deveria ser sacrificado se isso fosse considerado necessário para preservar o estado soviético. Em nome desse imperativo, muitas revoluções seriam não apenas desencorajadas como abertamente combatidas.

Mas no caso italiano, não seria justo responsabilizar apenas os bolcheviques. Os socialistas moderados eram maioria no partido e o sucesso eleitoral de 1919 dava-lhes a esperança de conquistar transformações radicais pelo voto. Nem mesmo a grande onda de ocupações de fábricas acontecida recentemente mudou essa perspectiva.

Enquanto isso, também em 1920, o segundo congresso nacional dos fascistas promoveu uma guinada à direita. O programa de 1919, cheio de exigências de esquerda foi completamente abandonado. Agora, o objetivo era fazer a “revolução fascista”, anticomunista e a serviço da burguesia.

Era a enorme e destruidora onda fascista começando a surgir. Ocupando o vazio político deixado tanto pela indecisão dos socialistas italianos entre o caminho revolucionário e a via eleitoral como pelas primeiras manifestações do pragmatismo estatal soviético.

Leia também: Itália, 1919: fascistas e socialistas defendem propostas semelhantes

11 de março de 2020

Itália,1919: fascistas e socialistas defendem propostas semelhantes

Jornada diária de oito horas de trabalho, salário mínimo, representantes sindicais nos conselhos diretores das empresas, gestão das indústrias por seus trabalhadores, imposto progressivo sobre o capital, expropriação parcial das riquezas.

As exigências acima são algumas dentre aquelas publicadas em 6 de junho de 1919 no jornal “O Povo da Itália”. É o programa dos fascistas aprovado em um encontro nacional realizado meses antes.

Como relata Antonio Scurati, em seu livro “M, O Filho do Século”, as propostas são quase as mesmas defendidas pelos socialistas revolucionários, que se posicionam à esquerda dos reformistas. Ele foi concebido para converter simpatizantes comunistas em militantes fascistas. Semelhante ao que aconteceu com o próprio Mussolini.

Mas a esperteza só poderia dar resultado porque a crise social atravessada pela Itália logo após a Primeira Guerra é enorme. Era preciso apresentar respostas a uma revolta popular que se torna cada vez mais raivosa.

Como diz o autor:

O caos é total, crescente, generalizado. Mas é apenas caos. A revolução é outra coisa e os líderes socialistas são completamente incapazes de direcionar essa revolta espontânea para a conquista do poder.

Era assim que pensava Mussolini. E, infelizmente, ele estava certo.

Mas não se trata de simplesmente condenar a cúpula socialista por sua vacilação e covardia política. Ou de considerá-los meros incapazes de seguir o corajoso exemplo dos bolcheviques russos.

A monarquia parlamentar italiana era muito diferente da ditadura czarista russa. São tais diferenças que Gramsci viria a estudar, produzindo sua grande obra.

Mas é importante destacar que o próprio poder bolchevique teve influência no fracasso italiano. É o que veremos a seguir.


10 de março de 2020

Por trás da mutação subprime/coronavírus, o capitalismo em crise

José Martins e a Equipe 13 de Maio mantêm o boletim “Crítica da Economia” há 30 anos. O tom é meio apocalíptico quando aborda os problemas e contradições da atual fase do capitalismo. E as manifestações de alegria pela iminência de colapsos econômicos um pouco despropositadas. Motivadas, segundo suas próprias palavras, por “boas notícias sobre a necrologia do capital”.

Mas é uma fonte importante de informações e dados para os marxistas combativos. E mantém uma análise atenta da situação mundial. É o caso do trecho abaixo, retirado da última edição do boletim:

...dois gatilhos deveriam ser acionados para a abertura do novo período de crise global. O primeiro seria uma radical interrupção da produção industrial da China, o “chão de fábrica do mundo”. Como já é de amplo conhecimento público, este gatilho acaba de ser acionado.

A novidade é que o gatilho chinês veio embalado pela espetacular mistificação do novo coronavírus. Já houve outros coronavírus, mas não tão propagandeados como o atual.

O problema é que todas as análises econômicas da atual explosão econômica global aparecem poluídas por uma asneira da sociedade do espetáculo.

Como providencial álibi para os capitalistas de todo o mundo, as turbulências atuais do mercado que eles mesmos criaram aparecem apenas como resíduo deste obscuro vírus de mais uma cepa corriqueira de tantas outras gripes.

Mais além desta asneira, o segundo e definitivo gatilho para a abertura oficial da crise global será a derrocada dos preços das ações na maior bolsa de valores do mundo.

Realmente, o coronavírus é o novo subprime. Causa superficial da mais grave das epidemias: o capitalismo.

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Quando a disputa China x Estados Unidos pode ser mero detalhe

3 de março de 2020

Sanders: quando o voto útil é o voto incendiário

Em momentos eleitorais, a esquerda mais radical e combativa costuma ser pressionada a aceitar o chamado “voto útil”. Raramente, esse voto pragmático coincide com a opção mais próxima às propostas comprometidas com as lutas populares. Sua função seria apenas evitar o mal maior.

Pois não é o que vem acontecendo na campanha eleitoral pela presidência dos Estados Unidos. A candidatura considerada “incendiária” vem se mostrando a mais preparada para derrotar Donald Trump. É o que indica, por exemplo, recente matéria de Meagan Day e Matt Karp sobre as primárias democratas, publicada pela Revista Jacobin:

As pesquisas são unânimes: uma maioria considerável dos eleitores nas primárias dos democratas (entre 60% e 65%) dizem que é mais importante encontrar um candidato que possa vencer Trump do que um que eles concordem com as pautas. Isso não é um padrão para eleitores que fazem oposição a um presidente em exercício. Na prévia da sua campanha de reeleição em 2004, por exemplo, menos da metade de todos os democratas diziam o mesmo sobre George W. Bush.

Ao longo das primárias, Bernie Sanders e muitos de seus apoiadores têm argumentado que não é suficiente vencer Trump: precisamos nos organizar para transformar as condições econômicas abismais que produziram Trump também. E isso é extremamente verdadeiro.

Situações extremas exigem soluções extremas, costuma-se dizer. Mas a persistência dessas situações vem de longe. Não surgiram com Trump, por lá, ou Bolsonaro, por aqui.

É exatamente a recusa em enxergar a necessidade de combater radicalmente o extremismo capitalista que nos empurra para situações-limite que disputas eleitorais estão longe de resolver.

De qualquer maneira, agora somos Sanders.

2 de março de 2020

Fascismo é, antes de tudo, violência

Antes de tudo, devemos declarar novamente que, para os fascistas, a violência não é um capricho ou um propósito deliberado (...). É uma necessidade cirúrgica. Uma necessidade dolorosa (…). Para nós, a violência é uma exceção, não um método ou um sistema...

Estas palavras foram escritas por Benito Mussolini no artigo "Sobre a violência", de 25 de fevereiro de 1921. São citadas por Antonio Scurati, em seu livro “M, O Filho do Século”.

Mas o mesmo autor mostra que em setembro daquele mesmo ano, nos debates que antecederam a realização do congresso nacional fascista de Roma, o grande dilema era: fundar um partido ou um exército?

A resposta viria com a seguinte formulação: “melhor um partido, mas capaz de se transformar em um exército. De transformar imediatamente seus membros em soldados prontos para lutar no terreno da violência. Um partido de milícia.”

E novamente em 1921, em 9 de novembro, reunidos em congresso na capital italiana, os fascistas criam seu partido nacional. O manifesto de fundação afirmava que “com o método da violência, enterramos todos os métodos anteriores”.

Ou seja, tal como é costume na extrema-direita, aquelas primeiras palavras de Mussolini eram falsas. A violência é, sim, o principal método fascista. E isso ficou provado em várias ocasiões na Itália e Alemanha. Espancamentos e assassinatos vitimaram milhares de militantes sindicais e de esquerda. Várias vezes, sob escolta ou colaboração da polícia e do exército.

Ou seja, no combate ao fascismo, a violência é uma questão incontornável. Mas só a esquerda anticapitalista pode realmente enfrentá-la. Esperar a reação dos poderes instituídos é inútil. E perigoso.

Leia também: Mussolini e seu exército de odiadores pequeno-burgueses