Doses maiores

31 de agosto de 2021

Modernidade hiperconectada e cultura do desamor

Em seu livro “The End of Love: A Sociology of Negative Relations”, Eva Illouz afirma que:

A escolha negativa é tão poderosa e presente na vida das pessoas na modernidade hiperconectada quanto foi, na formação da modernidade, a escolha positiva no sentido de formar laços e relações com outras pessoas.

Afinal, continua ela:

Se a expansão do capitalismo foi baseada no crescimento populacional e na família como a estrutura mediadora entre a economia e a sociedade, essa conexão está sendo cada vez mais desfeita pelas próprias novas formas de capitalismo. O capitalismo é uma máquina formidável de produzir bens, mas não é mais capaz de garantir as necessidades sociais de reprodução, levando ao que a filósofa Nancy Fraser chamou de “crise do cuidado”.

Sob a influência massiva de novas plataformas tecnológicas, essa "liberdade" teria criado agora um número tão grande de possibilidades que as condições emocionais e cognitivas para a escolha romântica foram radicalmente transformadas.

Um exemplo é o sucesso que fazem plataformas como o Facebook, que apresenta como uma de suas características mais importantes tanto a multiplicação das “amizades” quanto seu rápido rompimento. Outros exemplos são o Tinder ou o Match.com, sendo estes diretamente voltados para os encontros sexuais.

A era contemporânea demanda talvez outro tipo de sociologia, que foi provisoriamente chamada por Eva de “estudo da crise e da incerteza”.

Pensando nisso, ela conduziu entrevistas com 92 pessoas na França, Inglaterra, Alemanha, Israel e Estados Unidos, entre 19 a 70 anos de idade. Uma pesquisa atenta aos “praticantes dessa nova cultura do desamor”. Grande parte das conclusões da autora baseiam-se nesses dados.

Leia também: Capitalismo escópico e mercantilização do corpo feminino

30 de agosto de 2021

Capitalismo escópico e a mercantilização do corpo feminino

“A imagem do corpo sexual foi intrínseca ao surgimento do que chamo de capitalismo escópico”, diz Eva Illouz em seu livro “The End of Love”. Tal capitalismo criaria um formidável valor econômico por meio da espetacularização dos corpos e da sexualidade, transformando-os em imagens que circulam em diferentes mercados. A dimensão visual faz do corpo um local de consumo, moldado por objetos de trocas comerciais. É convertido em um ativo na esfera produtiva do trabalho como uma imagem a ser vendida em diversas indústrias visuais.

A teoria feminista iluminou de maneira crucial o trabalho não remunerado das mulheres na formação e manutenção da máquina capitalista dentro da família. O capitalismo de consumo usa as mulheres de maneira diferente, por meio do trabalho performativo de produzir um corpo sexualmente atraente.

Na sociedade industrial, os homens exigiam que os corpos das mulheres estivessem à venda "apenas" por meio do casamento ou da prostituição. No capitalismo de consumo, a estrutura social e econômica que organiza a sexualidade é aquela na qual o corpo feminino já não é regulamentado pela família e passa por um processo generalizado de mercantilização que o faz circular em mercados ao mesmo tempo econômicos e sexuais, sexuais e matrimoniais.

Essa apropriação do corpo sexualizado feminino constitui uma expropriação de valor no sentido marxista: uma classe (homens) extrai valor do corpo de outra classe (mulheres). Isso, por sua vez, explica uma característica paradoxal da existência social da mulher contemporânea: enquanto o feminismo ganhou força e legitimidade, as mulheres foram redirecionadas para relações de dominação econômica por meio do corpo sexual.

Caracterização muito polêmica, mas debate necessário.

Lei também: Capitalismo escópico e sexualidade

27 de agosto de 2021

Capitalismo escópico e sexualidade

Em seu livro “The End of Love”, Eva Illouz cita a ativista feminista americana Susie Bright, que considera os anos 1990 como a época em que a sensualidade tornou-se universal no lugar da beleza, porque a sensualidade seria uma questão de estilo de roupa e marcas no corpo enquanto a beleza seria inata.

Para Susie, a sensualidade seria a plataforma cultural para consumo de bens concretos e padronizados (sutiãs, roupas íntimas, Viagra ou Botox), experienciais (cafés, bares para "solteiros" ou acampamentos de nudismo), ou mais intangíveis como aconselhamento terapêutico para melhorar a experiência e competência sexuais, produtos visuais (revistas femininas ou pornografia) e o que Eva chama de bens ambientais, que supostamente induzem uma atmosfera sexy.

Nesse sentido, afirma Eva, a mídia empresarial desempenhou um papel crucial ao reciclar uma versão parcial e distorcida do feminismo, em que a igualdade e a liberdade sexuais eram equivalentes ao poder de compra e à sexualidade em exibição. Os corpos das mulheres não eram mais o local da disciplina e controle masculinos diretos, mas da experiência e do exercício de sua agência por meio da liberdade do consumidor. A famosa série de TV “Sex and the City” exemplificou essa equação pós-feminista do poder exercido por mulheres através de uma sexualidade livremente mediada pelo mercado.

A autora fala em “capitalismo escópico”, definido pela extração de mais-valia via espetáculo e exibição visual dos corpos. Esse tipo de capitalismo seria a chave para entender como as mudanças sexuais andaram de mãos dadas com novos instrumentos de poder cultural implantados por empresas capitalistas.

Voltaremos a isso.

Leia também: Sexualidade como mercadoria


26 de agosto de 2021

Sexualidade como mercadoria

Em seu livro “The End of Love”, Eva Illouz afirma que durante o século 20 a sexualidade passou por grandes mudanças culturais que se alimentaram mutuamente: primeiro, foi privatizada e tornada prerrogativa do indivíduo. Depois, "cientificizada" por meio de visões biológicas do corpo e, portanto, arrancada da esfera da moralidade religiosa. Finalmente, o corpo sexual foi convertido em uma unidade hedonista explorada, principalmente, pela cultura do consumo.

A sexualidade tornou-se central na cultura comercial e visual popular, no estudo científico, na arte e literatura. Redefiniu o sentido da “boa vida” e tornou-se um atributo essencial do “eu saudável”, a ser libertado do jugo opressor das normas sociais.

Desse modo, tornou-se cada vez mais claro que agora cabia ao indivíduo moldar sua sexualidade para atingir o glamour, a atratividade, o bem-estar e a intimidade.

A sexualidade não era mais uma parte secreta da interioridade pessoal ou uma identidade vergonhosa a ser liberada na privacidade do consultório do psicanalista. Tornou-se uma performance visual, localizada em objetos de consumo visíveis ao invés de pensamentos e desejos.

Os encontros sexuais passam a acontecer cada vez mais em locais de lazer e se tornaram mercadoria consumida através de uma série de práticas de consumo (bares, danceterias, restaurantes, cafés, resorts, praias).

Isso tudo beneficiou quatro grandes indústrias. A indústria de serviços terapêutico-farmacológicos. A de brinquedos sexuais. O complexo industrial de publicidade e cinema. Finalmente, a indústria da pornografia, em que a sexualidade transformou-se em mercadoria a ser consumida para alcançar o bem-estar e o prazer.

Porém, como toda mercadoria no capitalismo, jamais tornou-se fonte de verdadeiro prazer, mas de reiteradas frustrações.

Leia também: Modernidade em rede dissolve relações emocionais e amorosas

25 de agosto de 2021

Modernidade em rede dissolve relações emocionais e amorosas

Continuamos a comentar o livro “The End of Love: A Sociology of Negative Relations”, de Eva Illouz.

Se durante a formação da modernidade, diz a autora, a luta era pelo direito a uma sexualidade livre de constrangimentos comunitários ou sociais, a modernidade tardia assume que a liberdade sexual e emocional é exercida incessantemente pelo direito de não se envolver ou se desligar de relações.

Um processo, afirma ela, que podemos chamar de "opção pela não opção": optar por sair de relacionamentos em qualquer estágio.

Hierarquia, controle e contrato eram elementos centrais para o capitalismo em seu período moderno. Eles se refletiram na visão do amor como uma relação contratual, livremente celebrada, regida por regras éticas de compromisso, produzindo benefícios óbvios e exigindo estratégias emocionais e investimentos de longo prazo.

Mas o capitalismo se transformou em uma rede global ramificada, com propriedade e controle dispersos. Surgiram novas formas de descompromisso, com horários flexíveis ou terceirização de mão de obra, fornecendo poucas redes de segurança social e quebrando laços de lealdade entre trabalhadores e locais de trabalho. Legislações e práticas trabalhistas diminuíram drasticamente o compromisso das empresas com seus empregados.

Na modernidade em rede, conclui Eva, assumem importância as maneiras pelas quais os laços se dissolvem e essa dissolução é considerada uma forma social em si mesma. 

Ou como já disseram dois revolucionários quase dois séculos atrás: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Inclusive, e tristemente, as relações afetivas.



24 de agosto de 2021

O fim do amor nas relações heterossexuais

Ainda sem edição em português, o livro “The End of Love: A Sociology of Negative Relations”, de Eva Illouz, aborda um fenômeno contemporâneo bastante disseminado. Trata-se de relações emocionais e ligações amorosas frouxas, cuja aparente liberdade acaba se revelando uma fonte de instabilidade e sofrimento.

Mas a autora optou por concentrar sua pesquisa nas relações heterossexuais. É que ela entende que a homossexualidade não tende a traduzir gênero em diferença, nem diferença em desigualdade. Também não se baseia na divisão de gênero entre trabalho biológico e econômico que caracteriza a família heterossexual. 

Nesse sentido, diz ela, o estudo dos efeitos da liberdade sobre a heterossexualidade seria sociologicamente mais urgente por interagir com a estrutura ainda generalizada e poderosa da desigualdade de gênero. Desse modo, a chamada liberdade sexual torna a heterossexualidade repleta de contradições e crises. 

Além disso, porque a heterossexualidade foi estritamente regulamentada e codificada pelo sistema social como algo que supostamente levava ao casamento, a mudança para a liberdade emocional e sexual nos permite compreender de forma mais nítida o impacto da liberdade nas práticas sexuais e a contradição que tal liberdade pode ter criado com a instituição do casamento (ou da união estável) que permanece no cerne da heterossexualidade.

Em contraste, a homossexualidade era, até recentemente, uma forma social clandestina e de oposição. Por isso, foi definida como uma prática de liberdade, conflitante e oposta à instituição doméstica do casamento, que usa e aliena as mulheres e atribui aos homens papéis patriarcais.

Esclarecida essa questão metodológica, as pílulas seguirão comentando a obra de Eva Illouz.

Leia também: O fim do amor: uma sociologia das relações negativas

23 de agosto de 2021

O fim do amor: uma sociologia das relações negativas

Sob a égide da liberdade sexual, os relacionamentos heterossexuais assumiram a forma de um mercado – encontro direto entre ofertas e demandas emocionais e sexuais, fortemente mediado por objetos e espaços de consumo e pela tecnologia.

Os encontros sexuais organizados como um mercado são vividos tanto como escolha quanto como incerteza. Ao permitir que os próprios indivíduos negociem as condições de seu encontro com muito poucas regras ou proibições, essa forma de mercado cria uma insegurança cognitiva e emocional generalizada. O conceito de “mercado” não é aqui simplesmente uma metáfora econômica, mas é a forma social assumida por encontros sexuais que são impulsionados pela tecnologia da internete e pela cultura do consumo.

Nossa modernidade contemporânea hiperconectada parece ser marcada pela formação de vínculos indiretos ou negativos. Nessa modernidade em rede, a não formação de vínculos torna-se um fenômeno sociológico em si, uma categoria social e epistemológica por si só. Se a primeira e a alta modernidade foram marcadas pela luta por certas formas de sociabilidade onde o amor, a amizade, a sexualidade estariam livres de restrições morais e sociais, na modernidade em rede a experiência emocional parece escapar às classificações emocionais e relações herdadas de épocas onde os relacionamentos eram mais estáveis.

Os relacionamentos contemporâneos se encerram, se rompem, se desvanecem, se evaporam e seguem uma dinâmica de escolha positiva e negativa, que entrelaça laços e não-laços.

As palavras acima resumem a principal linha de argumentação do livro “The End of Love: A Sociology of Negative Relations”, de Eva Illouz. É sobre como o capitalismo transforma os sentimentos sociais. E como isso causa muito sofrimento.

Continua...

Leia também:
Possíveis intimidades entre o sexo e a morte
Os bolcheviques contra a família e por liberdade sexual

20 de agosto de 2021

Contra Bolsonaro, vale aliança até com monarquistas?

“Nos Tempos do Imperador” é a mais nova e queridinha novela da Globo. Logo no primeiro capítulo, D. Pedro 2º recebe Solano López, presidente do Paraguai. Viera pedir a mão da princesa Isabel. O imperador nega e o coloca para correr, dizendo: “O Brasil jamais se curvará a um ditador”.

Solano López realmente não prestava. No final da Guerra do Paraguai, recrutava soldados cada vez mais jovens para defender sua ditadura. Até que na batalha de Acosta Ñu, aconteceu um dos mais covardes massacres da história das guerras.

Segundo os historiadores, havia de um lado, 20 mil soldados brasileiros. De outro, 3.500 recrutas paraguaios, entre 9 e 15 anos de idade, além de crianças de 6 a 8 anos, que também integravam os batalhões.

A desigualdade entre os dois exércitos também era armamentista. As armas usadas pelos paraguaios tinham um alcance máximo de 50 metros. Os rifles da cavalaria brasileira atingiam alvos a mais de 500 metros.

Sem falar no fato de que os mais novos não tinham nem força física para empunhar as armas, muito menos nas condições em que estavam, com fome e muitas vezes doentes.

Após 10 horas de luta sangrenta, poucas baixas do lado brasileiro e quase nenhum sobrevivente do lado paraguaio. As crianças, aterrorizadas, choravam, implorando pela própria vida aos soldados brasileiros. Eram imediatamente degoladas.

Segundo os roteiristas da Globo, Pedro 2º só tolerava ditadores de sangue azul. Mas a frase do personagem da novela está sendo interpretada como um recado a Bolsonaro.

Parece que a frente ampla contra Bolsonaro, além da Globo, agora inclui monarquistas.

Leia também: A derrota de Bolsonaro, só as ruas garantem

19 de agosto de 2021

Escravidão: os rugidos que fazem os senhores tremerem

Toussaint Louverture foi o grande líder da revolução haitiana de 1801. Nascido escravo, conseguiu conquistar sua liberdade liderando a única revolta de escravizados vitoriosa da história. No segundo volume de seu livro “Escravidão”, Laurentino Gomes diz que entre as leituras preferidas de Toussaint:

...estava um livro incendiário: "Uma história filosófica e política dos assentamentos e do comércio dos europeus nas Índias Orientais e Ocidentais", do padre e filósofo jesuíta Guilherme Thomas François Raynal, mais conhecido como abade Raynal, um dos grandes mentores intelectuais das revoluções libertárias do final do século XVIII.

Ainda segundo Gomes, o livro de Raynal “foi proibido em 1772 e queimado em praça pública em toda a França em 1779. O autor, condenado à prisão, a essa altura já estava, prudentemente, refugiado na vizinha Prússia, de onde só voltaria em 1787, às vésperas da Revolução Francesa que ajudaria a inspirar”.

Na obra, diz o jornalista, “Raynal fazia um balanço da colonização europeia na América, do extermínio dos índios e da opressão dos negros africanos. Propunha que eles próprios se rebelassem contra seus senhores, em defesa do que chamava de liberdade natural, assim definida: ‘É o direito que a natureza deu a todo aquele que se dispõe a usá-la de acordo com a sua vontade’”

Gomes lembra que Raynal concluía seu livro com a seguinte exortação:

Povos, cujos rugidos tantas vezes fizeram os senhores tremerem, o que estais esperando? Para quando estais reservando vossas tochas e as pedras que calçam as ruas?

Essas perguntas continuarão ressoando pelos séculos até que não se façam mais necessárias porque já não haverá escravidão de qualquer tipo.

Leia também: Escravidão: quando os de cima se dividem, hora de atacar

18 de agosto de 2021

Escravidão: quando os de cima se dividem, hora de atacar

Em 1803, Jean-Jacques Dessalines assumiu a liderança da revolução haitiana após a morte de Toussaint Louverture. Como relata Laurentino Gomes em seu livro “Escravidão”:

No dia 1º de janeiro de 1804, Dessalines, vitorioso, proclamou o Estado Independente do Haiti, do qual ele seria também o primeiro imperador, coroado no ano seguinte. Os brancos que ainda restavam no novo país foram massacrados. A antiga classe dirigente foi totalmente aniquilada. A revolução no Haiti repetiu um padrão observado em todos os territórios escravistas no continente americano: os escravos se rebelaram e ocuparam espaços sempre que, por divergências internas, a autoridade branca se esfacelou ou entrou em colapso. Era o que tinha acontecido, por exemplo, no Brasil em meados do século 17, quando a luta entre portugueses e holandeses abrira uma brecha para o crescimento e o fortalecimento do Quilombo de Palmares, no interior da então capitania de Pernambuco.

Gomes lembra que essa divisão entre os setores dominantes marcou outros conflitos como a Cabanagem, no Pará; a Balaiada, no Maranhão, e a Revolução dos Cabanos, em Pernambuco e Alagoas.

Na luta por sua liberdade, afirma o historiador Flávio dos Santos Gomes, em seu livro “Mocambos e quilombos”, os “escravos percebiam que os senhores estavam divididos e as tropas, desmobilizadas para a repressão; portanto, havia maior possibilidade de sucesso para suas escapadas”.

Essa condição não é importante apenas para o sistema escravista. Lênin colocava a divisão entre os de cima como uma das condições fundamentais para uma crise revolucionária. Mas essa condição pouco vale sem a organização dos de baixo. Algo que os rebeldes antiescravagistas que lutavam por aqui já sabiam.

Leia também: Alforria, democracia racial e meritocracia

17 de agosto de 2021

Alforria, democracia racial e meritocracia

Joaquim Barbosa Neves nasceu escravizado em 1780, na cidade de Itu, São Paulo. Alforriado na infância, aos 23 anos de idade já era dono de dois cativos, trabalhava como mascate e servia no batalhão de milícia local. Aos 25, tinha três escravos, tornara-se alferes da milícia e obteve da Câmara Municipal de Porto Feliz licença para abrir uma loja de secos e molhados. Quando morreu, era dono de um engenho de açúcar com 41 escravos e emprestava dinheiro a juros para outros fazendeiros. Seus filhos tiveram padrinhos brancos e ocuparam cargos importantes na administração pública.

No século 19, alguns descendentes de alforriados tornaram-se escultores, arquitetos, pintores, músicos, escritores e outros artistas, como Machado de Assis, Lobo de Mesquita e José Maurício Nunes Garcia. O patriarca da família Rebouças, da Bahia, foi advogado e deputado provincial. Um de seus filhos, o engenheiro André Rebouças, seria abolicionista e amigo da princesa Isabel.

Francisco de Sales Torres Homem, filho de padre com uma negra alforriada, foi ministro do Império, diretor do Banco do Brasil e ganhou de dom Pedro 2º o título de visconde de Inhomirim. Mesmo sendo abolicionista, preferia usar perucas e pó de arroz para disfarçar suas características negras.

Os relatos acima estão no livro “Escravidão”, de Laurentino Gomes. Segundo ele, mostrariam como o “surgimento de uma elite mestiça brasileira” foi possibilitado pela frequente adoção da alforria no sistema escravista brasileiro. Também seria elemento importante para explicar o surgimento dos mitos da democracia racial e da meritocracia como única via para a ascensão social. A alforria acabou, mas o mecanismo racista do qual fazia parte continua resistindo.

Leia também: A alforria como engrenagem da escravidão

16 de agosto de 2021

A alforria como engrenagem da escravidão

Segundo o livro “Escravidão”, de Laurentino Gomes, a alforria serviu como peça importante do sistema escravista no Brasil.

O autor explica que para conquistar sua liberdade, a pessoa escravizada “precisava trabalhar muitas horas para acumular uma poupança, contar com a solidariedade de padrinhos, parentes e amigos ou de instituições de apoio mútuo, como as irmandades religiosas”.

Mas mesmo depois da conquista da alforria, dispositivos legais previam sua revogação imediata “por ingratidão”. Além disso, os libertos continuavam a ser considerados estrangeiros. Com base nesse conceito, muitos foram expulsos do país após a Revolta dos Malês ocorrida na Bahia, em 1835.

Por outro lado, Gomes cita o historiador Donald Ramos, segundo o qual a “alforria foi, ironicamente, um dos mais importantes pilares do regime escravocrata”. “Essencialmente, ela representava uma recompensa pelos serviços prestados e pela aceitação dos valores fundamentais do mundo luso-brasileiro”, escreveu ele.

Em alguns casos, o escravo podia fornecer outro cativo como pagamento pela própria liberdade. Em 1783, o mosteiro beneditino do Rio de Janeiro vendeu a alforria para quatro de seus cativos e, com o dinheiro da transação, comprou outros sete escravizados, pagando por eles um valor médio inferior ao dos alforriados.

Os chamados “escravos de ganho” eram aqueles que vendiam ou prestavam serviços pelas ruas das cidades. Eles repassavam parte dos ganhos para seus senhores e poupavam para comprar sua liberdade.

Esses exemplos mostram como a prática da alforria acabava por alimentar a própria engrenagem da escravidão, em vez de reduzi-la. Além do mais, foi utilizada para alimentar o mito de uma escravidão mais branda no Brasil. Voltaremos a isso na próxima pílula.

Leia também: O papel da alforria no sistema escravista brasileiro

13 de agosto de 2021

O papel da alforria no sistema escravista brasileiro

Por volta de 1865, havia cerca de 4 milhões de pessoas escravizadas nos Estados Unidos. Como foram cerca de 400 mil cativos trazidos da África no total, o número de cativos norte-americanos havia se multiplicado por dez.

No Brasil, ocorreu o contrário. Em três séculos e meio, 4,9 milhões de africanos foram escravizados. Mas, em 1888, esse número estava reduzido a 750 mil.

Segundo Laurentino Gomes, em seu livro “Escravidão”, um dos fatores que explicaria essa diferença seriam as taxas de mortalidade. A expectativa de vida média de um brasileiro escravizado no fim do século 19 não passava de 18,3 anos, muito inferior à norte-americana, que era de 35,5 anos. Como resultado, as taxas de natalidade entre os escravizados eram bem maiores nos Estados Unidos, enquanto no Brasil foi necessário intensificar o tráfico para repor e manter o número de cativos.

O outro fator importante era a alforria. Em meados do século 19, cerca de 1% de todos os brasileiros escravizados obtinha a alforria anualmente, contra apenas 0,04% dos cativos norte-americanos.

Em alguns estados norte-americanos, a alforria era válida apenas com o consentimento formal da assembleia legislativa estadual. Senhores de escravos jamais poderiam negociar a libertação diretamente com seus cativos, como acontecia no Brasil.

Uma das possíveis explicações para isso é que os escravocratas estadunidenses temiam que a convivência entre libertos e escravizados desestabilizasse o regime de cativeiro. Já por aqui, a alforria teria sido incorporada como parte importante do sistema escravista, servindo de incentivo ao bom comportamento dos cativos.

Na próxima pílula tentaremos explicar melhor essa hipótese presente no livro de Laurentino Gomes.

Leia também: O pelourinho como controle social

12 de agosto de 2021

O pelourinho como controle social

“Quem quiser tirar proveito dos seus negros, há de mantê-los, fazê-los trabalhar bem e surrá-los melhor.” A afirmação é de Johannes de Laet, diretor no Brasil da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais e está no segundo volume de “Escravidão”, de Laurentino Gomes.

No Brasil escravista, diz Gomes, castigar não era visto como uma forma de vingança contra o escravo ou reparação moral do crime ou infração que havia cometido. Era, principalmente, uma eficiente forma de controle social, destinada a servir de exemplo aos demais cativos.

Segundo o antropólogo alagoano Arthur Ramos, nas cidades, “os açoites eram um espetáculo anunciado publicamente pelos rufos do tambor. Em seguida, a multidão se reunia na praça do pelourinho para assistir ao chicote do carrasco abater-se sobre o corpo do escravo condenado, que ali ficava exposto à execração pública. Excitadas, as pessoas aplaudiam, enquanto o chicote abria estrias de sangue no dorso nu do negro para servir de exemplo aos demais”.

Por outro lado, o senhor não perdia de vista que o escravo era um ativo econômico, uma máquina produtiva que não poderia ser danificada inutilmente. Caso ficasse ferido, era preciso curá-lo com a maior celeridade, para que não se perdesse sua capacidade de trabalho por muito tempo.

Segundo a lei portuguesa, o senhor tinha a prerrogativa de castigar o escravo. Porém, se errasse a mão e exagerasse, poderia ser denunciado à justiça e, eventualmente, também punido. Ocorre que punir um proprietário de escravos seria também desestabilizar a relação entre ele e seus cativos. Ou seja, a impunidade reinava.

Mais um relato que mostra que muito da lógica escravocrata continua vigente.

Leia também: Escravidão e pólvora devastando as sociedades africanas

11 de agosto de 2021

Escravidão e pólvora devastando as sociedades africanas

A escravização humana causou enorme e terrível impacto nas sociedades africanas. Para ter acesso à força de trabalho escravizada, os europeus estimulavam guerras fornecendo armas, munições, cavalos, armaduras e até treinamento militar aos seus aliados africanos. Entre 1750 e 1807, a Inglaterra teria embarcado para a África mais de 22 milhões de toneladas de pólvora.

Soberanos ou líderes tradicionais eram mortos, afastados do poder ou cooptados pelas engrenagens do comércio de gente.

“A enorme quantidade de armas e pólvora que os europeus trazem para cá tem causado guerras terríveis entre os reis, príncipes e chefes destas terras, que fazem de seus prisioneiros escravos”, dizia um memorando holandês de 1730. “Esses cativos são comprados imediatamente pelos europeus, a preços cada vez mais elevados. Como consequência, agora existe pouco comércio de mercadorias entre os próprios negros, com exceção de escravos. As antigas rotas de comércio estão todas fechadas”.

Em média, compravam-se dez escravizados por quinhentos litros de cachaça. Armas, pólvora e munições representavam o terceiro item mais valioso. Em 1760, no porto de Luanda entravam entre 6 mil e 7 mil espingardas por ano, sem falar do número grande que entrava por contrabando.

O relato acima baseou-se no segundo volume de “Escravidão”, de Laurentino Gomes. Mostra que a colonização europeia não encontrou no continente africano sociedades igualitárias e harmoniosas. Havia dominação de classe, rígidas hierarquias sociais e a escravização humana já era uma realidade local. Mas o colonialismo que pariu o sistema capitalista fez da servidão a grande alavanca para um sistema que até hoje escraviza a grande maioria da humanidade em favor do lucro para poucos.

Leia também: Todos roubavam, mas só os escravizados eram ladrões

10 de agosto de 2021

Todos roubavam, mas só os escravizados eram ladrões

No segundo volume de “Escravidão”, Laurentino Gomes cita a historiadora Adriana Romeiro, da Unicamp, segundo a qual:

...durante o período colonial brasileiro enriquecer no exercício de um cargo público não constituía, por si só, em delito. Ao contrário, esperava-se que os funcionários reais aproveitassem as oportunidades para acumular fortunas que pudessem engrandecer suas casas e redes de clientelas e parentelas. É nesse contexto que, segundo a historiadora, se deve entender a frase pronunciada pelo rei dom João II em 1495 ao se despedir do capitão-mor Lopo Soares de Albergaria, recém-nomeado governador de um entreposto de tráfico de escravos na costa da África: “Eu vos mando à Mina, não sejais tão néscio [tolo] que venhais de lá pobre”.

Mas, avisa Adriana, os oficiais da Coroa deveriam se manter dentro de certos limites de maneira a salvar as aparências e não ferir os interesses do rei. Como disse o marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil: “O caso não está em ser gentil-homem, o ponto está que a todos assim pareça”.

Já o coronel de infantaria Luís Vahia Monteiro, governador do Rio de Janeiro de 1725 a 1732, afirmou em carta ao rei dom João V: “Senhor, nesta terra todos roubam, só eu não roubo”.

Onde todos roubavam e trapaceavam, natural que escravos fizessem o mesmo. Mas nesse caso os “crimes” mais frequentes envolviam furtos de sobras e estoques, consumidos às escondidas nas senzalas ou vendidos. E a punição, quase certa e terrível.

Eis porque um ditado popular dizia “Nosso preto furta galinha, furta saco de feijão. Sinhô branco quando furta, furta prata e patacão”.

Não mudou muita coisa.

Leia também: Escravizando corpos e saberes

9 de agosto de 2021

Escravizando corpos e saberes

Saiu o segundo volume de “Escravidão”, livro de Laurentino Gomes. Como o primeiro, traz muitas informações interessantes. Dentre elas, um aspecto recentemente descoberto por novos estudos históricos, mostrando que os africanos escravizados não eram apenas mercadorias como outras quaisquer.

“Além de seres humanos acorrentados e marcados a ferro quente, diz Gomes, os porões dos navios negreiros transportavam conhecimentos e habilidades tecnológicas desenvolvidas na África que seriam cruciais na ocupação europeia do Novo Mundo”.

Em seus lugares de origem, afirma o autor:

...os africanos trabalharam como ferreiros, metalúrgicos, escultores e gravadores, prateiros e ourives, ferramenteiros, curtidores de couro e carne salgada, sapateiros, seleiros, tanoeiros, cocheiros, criadores e treinadores de cavalos, vaqueiros, carpinteiros, marinheiros, tecelões e pintores de tecidos, alfaiates e costureiras, cozinheiros, ceramistas, salineiros, projetistas e construtores de casas, armazéns, edifícios públicos, igrejas, estradas, canais e represas, entre outras atividades.

Ainda segundo o jornalista, muitos dos africanos escravizados eram habilidosos criadores de gado e foram fundamentais para o desenvolvimento da pecuária nas Américas.

Até o início do século 18, os colonos portugueses dominavam a técnica de fazer açúcar, mas nada sabiam de garimpo de ouro e diamantes. Coube aos escravizados trazer essa experiência. Em regiões da atual República de Gana, “o ouro em pó era processado e transformado em moedas de alta qualidade. A chamada lavagem aluvial, que consistia na retirada do minério depositado no fundo de rios e alagadiços, era praticada antes ainda da chegada dos portugueses à costa africana”.

São informações importantes. Mostram que, desde o seu início, foi fundamental para o sistema capitalista a sistemática apropriação das técnicas e saberes dos explorados.

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