Doses maiores

31 de maio de 2016

O sermão dos peixes loucos

Em sua última coluna na Folha, Pasquale Cipro Neto citou o “Sermão de Santo Antônio aos Peixes", do Padre Antonio Vieira, de 1654. No trecho em questão, Vieira desaprova o comportamento canibal dos peixes:

Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.

Depois de aproveitar o trecho para discutir tempos verbais, Pasquale não resistiu a usá-lo para ironizar o atual momento da política nacional.

Mas o sermão também serve para pensar no atual estágio da história humana. Não se trata da desproporção entre grandes e pequenos, porém. A ideologia que sustenta a ordem social vigente insiste em afirmar que oferece chances de sucesso iguais para todos, graúdos e miúdos.

Mas é de vampirismo que se trata, não de canibalismo. A riqueza acumulada pelo 1% mais rico da população mundial equivale ao que possuem os 99% restantes. São números de um estudo da ONG Oxfam, baseado em dados do banco Credit Suisse de outubro de 2015.

O problema é que para sustentar cada peixe graúdo pertencente ao 1% de abastados, não seria necessária a exploração do trabalho de cem, de mil ou um bilhão dos peixes menores.

O que torna o capitalismo tão repugnante é que se trata do estágio da história humana em que nem mesmo todo luxo de alguns poucos justifica tamanha miséria e exploração. Mais do que injustiça, é loucura.

30 de maio de 2016

Capitalismo: desliga que é melhor

Em 23/05, Ronaldo Lemos publicou artigo sobre o DAO (Descentralized Autonomous Organization) ou Organização Autônoma Descentralizada.

Trata-se de uma plataforma mundial de investimentos capaz de colocar em prática projetos empresariais. Segundo Lemos, a iniciativa já levantou US$ 160 milhões, sendo “o maior financiamento coletivo já realizado”.

A estrutura do DAO seria totalmente descentralizada, em que a comunidade de investidores decide por votos qual proposta deve receber recursos para sair do papel.

Seria mais um exemplo da chamada economia colaborativa, última moda entre os que acham possível fugir à lógica concentradora, especulativa e irracional do mercado capitalista.

Mas a proposta traz uma novidade importante. O sistema não precisa de intervenção humana e obedece a instruções pré-programadas. Além disso, uma vez criadas essas iniciativas, nada pode interromper seu funcionamento, “exceto desligar a rede como um todo”.

Desse modo, diz o texto, “não haverá prefeitura, tribunal ou sindicato capaz de derrubar a infraestrutura informacional dessa operação”. Essa informação parece assustadora, mas isso já acontece com o próprio sistema capitalista.

Em 1848, Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista: “Tal como o aprendiz de feiticeiro, a burguesia não consegue controlar as potências que pôs em movimento”. É o que acontece, por exemplo, com as frequentes crises econômicas. Nem mesmo os capitalistas sabem como evitá-las. E só conseguem resolvê-las preparando novas e piores crises.

A circulação adicional de centenas de milhões de dólares virtuais só deve piorar ainda mais as coisas.

O fato é que, tal como acontece com o DAO, o capitalismo só pode ser parado se desligarmos o sistema todo. Se interrompermos sua operação, tão centralizada quanto perversamente humana.

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25 de maio de 2016

Um governo que ninguém derruba

Em 20/05, a revista “Brasileiros” entrevistou Amir Khair. Ele é especialista em Finanças Públicas e foi Secretário Municipal de Finanças de Luiza Erundina. Com a grande imprensa elogiando as medidas econômicas propostas pelo governo Temer, alguns números divulgados pelo entrevistado merecem destaque.

Segundo Khair, economizar nos gastos públicos não tem nada “a ver com redução de programa social. O dinheiro jogado fora é com juros: R$ 500 bilhões por ano”. “Hoje 82% do déficit público são despesa com juros, 13% são queda de arrecadação e apenas 5% são aumento da despesa pública”, afirma.

Além disso, os US$ 200 bilhões de excesso nas reservas internacionais custam ao País R$ 110 bilhões em juros anuais.

Ele afirma também que:

...os bancos no Brasil têm três fontes de riqueza: os juros cobrados sobre os empréstimos, a Selic alta e as tarifas bancárias. A concentração em cinco instituições lhes permite cobrar o que quiserem.

Perguntado sobre a reforma da Previdência, considerada obrigatória por golpeados e golpistas, ele informa que entre 2014 e 2015, os benefícios previdenciários aumentaram R$ 6 bilhões, enquanto os juros cresceram R$ 130 bilhões.

O título da entrevista é “Calem os bancos”. Mas os bancos não têm apenas voz. Têm um governo só deles, formado pela união entre Banco Central e Ministério da Fazenda. Eleição após eleição, seus interesses continuam religiosamente respeitados.

Mas seria injusto culpar só os bancos. O pornográfico mercado brasileiro de juros beneficia o grande capital em geral. Por isso, o poder econômico faz questão de financiar as eleições. Entre o governo afastado e o interino, a monarquia rentista manda, desmanda e não cai.

24 de maio de 2016

Sobre golpes e contragolpes

Uma grande questão na luta contra o golpe é saber de que golpe se trata. Muitos petistas tentam compará-lo à intervenção militar de 1964.

Mas o fato é que não há qualquer sinal de manobras militares, fechamento de partidos, cassação de mandatos, intervenções em sindicatos.

Outra diferença marcante foi evidenciada pelo recente episódio envolvendo a gravação de Romero Jucá. As especulações sobre a quem interessa sua divulgação são muitas.

É verdade que a gravação incriminadora poderia vir a público antes da votação da admissibilidade do impeachment. Mas por que divulgá-la, agora, quando o julgamento nem se iniciou?

Se a intenção era diminuir ou estancar as investigações da Lava-Jato, o surgimento do grampo obrigou seus responsáveis a negar publicamente essa intenção. O que pode ser fatal para um governo cheio de suspeitos à beira de se tornarem réus.

Tudo isso indica que há sérias divisões na classe dominante. São projetos mesquinhos, mas que não conseguem se compatibilizar nem contam com uma força capaz de fazê-lo, como os militares de 1964.

A comparação com 64, porém, serve para que os petistas alarmem as forças populares e consigam apoio incondicional a seu projeto.

Mas qual projeto? Aquele que começou pela nomeação de Joaquim Levy? O mesmo que seria continuado por Meirelles, substituto de Lula para o lugar de Levy?

A “autocrítica” divulgada pelo PT não ajuda. Insiste em falar em “disciplina fiscal”, por exemplo. E continua achando que é possível controlar um Estado montado para servir à classe dominante.

Ou seja, outra grande questão importante na luta contra o golpe é saber se ela inclui o combate ao PT.

Leia também: O 18 brumário de Michel Temer

23 de maio de 2016

O velociraptor ataca novamente

Antonio Donato Nobre é cientista do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Em 16/05 concedeu entrevista ao portal “IHU On-Line” sobre os prejuízos causados pelas técnicas que predominam na agricultura. Segundo ele:

A agricultura convencional extermina aquela vida que tem capacidade regulatória, mata o solo, fator chave para sua própria sustentação, e introduz de forma reducionista e irresponsável nutrientes hipersolúveis, substâncias tóxicas desconhecidas da natureza e organismos que podem ser chamados de Frankensteins genéticos.

Nobre enumera as várias técnicas que podem substituir essa “tecnociência” que serve apenas aos interesses mesquinhos do grande capital agrário. São elas: agroecologia, agrofloresta sintrópica, sistemas agroflorestais, agricultura biodinâmica, trofobiose, agricultura orgânica, agricultura sustentável, entre outras.

No lugar dessa variedade toda, monoculturas plantadas em latifúndios de milho e soja, tudo muito temperado com agrotóxico. Mais exatamente, um balde anual de veneno na mesa de cada brasileiro. Sem falar nos agentes químicos necessários para dar sabor e cor às rações que saem dessas plantações.

Por trás de tudo isso, a padronização industrial que reduz custos tanto quanto elimina nutrientes e torna nosso cardápio uma coleção de sabores que não passam de gradações saturadas de sal e açúcar. Os lucros disparam na mesma proporção que as doenças e a obesidade anêmica.

Segundo o entrevistado, esses métodos de cultivo tornam destrutiva “a pegada humana no planeta”, e suas consequências já se fazem “sentir no clima como falência múltipla de órgãos”.

É verdade. Mas a pegada em questão não é do “Frankenstein genético”. É do nosso conhecido velociraptor, símbolo de uma humanidade rendida à lógica da rapina contra si mesma.

Leia também: O Homo Velociraptor

20 de maio de 2016

O Homo Velociraptor

Para Christian Laval e Pierre Dardot, autores do livro "A Nova Razão do Mundo: Ensaios sobre a Sociedade Neoliberal", o neoliberalismo generalizou “o homem da competição e do desempenho” como modelo social a ser perseguido.

Nosso ideal como seres humanos seria o equivalente ao velociraptor, dinossauro tornado famoso pelo filme “Jurassic Park”. Relativamente pequeno, sua capacidade de matar ultrapassava de longe a dos enormes tiranossauros. Uma verdadeira máquina de devorar carne.

Mas a extrema especialização costuma ser mais uma fraqueza que uma vantagem na natureza. A dependência em relação a algumas poucas habilidades, mesmo que perfeitas, pode ser um atalho para a extinção. Bastam algumas alterações no ambiente para que a sobrevivência se torne impossível.

Somos o contrário do velociraptor. Com tantas vulnerabilidades físicas, podemos ser mortos por quase todas as formas de vida, de microscópicas bactérias a grandes feras. Mesmo assim, fomos capazes de nos espalhar pelo planeta de um modo que é impossível a qualquer outra espécie.

Descendemos dos insignificantes, mas espertos mamíferos, que viram os enormes répteis perecerem. Por milhões de anos, aprendemos a compensar nossas fragilidades físicas com uma diversidade cultural e produtiva capaz de enfrentar as mais radicais mudanças no ambiente.

Agora, no que acreditamos ser nosso auge evolutivo, pretendem que troquemos as variadas cores que nossa espécie criou pelos poucos tons cinzentos da competição insana imposta pelo mercado.

No intervalo de alguns séculos, o capitalismo resolveu que seremos tão limitados como predadores ultraespecializados, perseguindo presas que pertencem a nossa própria espécie.

Mas, admitamos, muitos de nossos líderes estão perfeitamente adaptados para esse papel. Velociraptor quer dizer “ladrão rápido”.


Leia também: Nos governos e fora deles, governa o neoliberalismo

19 de maio de 2016

Socialismo e barbárie nos Estados Unidos

Na corrida presidencial estadunidense, surpreende o sucesso do pré-candidato democrata Bernie Sanders contra Hillary Clinton.

Qualquer político americano sabe que apenas se parecer com um socialista é garantia de fim de carreira.

Sanders, porém, faz questão de se apresentar como socialista. O centro de sua campanha é a denúncia dos privilégios do 1% da população estadunidense frente à pobreza e exploração que atinge os outros 99%. Mas não apenas isso.

Sanders é homem, branco, de classe média, idoso e heterossexual. Mesmo assim, se transformou no candidato favorito dos jovens americanos progressistas, incluindo negros, mulheres, LGBT, assim como vários setores de trabalhadores.

Sanders defende os direitos das minorias oprimidas, sem ignorar as maiorias exploradas. A especialidade dos Clinton sempre foi a defesa dos direitos individuais e das “minorias”, enquanto desprezam a exploração das multidões.

Essa política foi adotada com sucesso por Obama. O problema é que os dois mandatos do simpático presidente estadunidense foram marcados pela pior distribuição de renda da história americana.

O fato é que as medidas adotadas contra os efeitos da crise de 2008 foram as piores possíveis. A dinheirama que saiu dos cofres públicos voltou para os mesmos especuladores que causaram a crise. Enquanto isso, foram gerados empregos insuficientes e mal pagos.

Teria chegado a vez do socialismo no centro do imperialismo mundial?

Pela via institucional, nem a versão suave de Sanders. Hillary deve ser a candidata democrata. A questão é sua fragilidade diante de Trump.

Sanders entusiasma o eleitorado democrata, tanto quanto Hillary o desanima. Altos níveis de abstenção podem eleger o republicano.

Teria chegado a vez da barbárie nos Estados Unidos?

Leia também: Donald Trump: tragédia nada acidental

18 de maio de 2016

O 18 brumário de Michel Temer

No debate sobre o caráter golpista do governo atual, seria interessante lembrar um dos conceitos de golpe, presente no livro “O 18 brumário de Luís Bonaparte“, de Karl Marx. A obra analisa as manobras políticas que deram poderes ditatoriais ao sobrinho de Napoleão, em 1851.

Para ficar à frente do golpe, Bonaparte criou a “Sociedade 10 de Dezembro”, cujos membros Marx assim descrevia:


...rebentos arruinados e aventureiros da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, cafetões, donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos...
 


Seriam o que Marx chamou de “lumpemproletariado”. Trabalhadores em situação de miséria extrema ou marginalizados.

Ainda segundo Marx, tratava-se de uma “sociedade beneficente” na medida em que “seus membros sentiam a necessidade de beneficiar-se à custa da nação trabalhadora”. Na verdade, a maioria foi utilizada como massa de manobra por Bonaparte e seus aliados burgueses.

O Brasil atual também tem a sua “sociedade beneficente”. Criada com objetivos golpistas e chefiada pelo “gatuno” Eduardo Cunha, entre seus membros estão
 corruptos notórios e até acusados de homicídio. Golpe consumado, vários deles ganharam cargos de ministros. 

É verdade que há semelhanças entre o ministério antigo e o do presidente interino. A maior diferença é que, agora, 23 dos 28 ministros de Temer são milionários.

Ou seja, aqueles que Marx descreveu como habitantes do porão da sociedade francesa do século 19, no Brasil integram a classe dirigente há muito tempo. A grande mudança é que agora dispensam intermediários, revelando a exata medida da estatura moral da burguesia local.

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17 de maio de 2016

Sobre homens e meninos negros

“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens” é “uma investigação acerca da construção da masculinidade negra periférica”. A definição é de Jé Oliveira, ao apresentar a peça teatral que protagoniza à frente dos músicos Cássio Martins, DJ Wojtila, Fernando Alabê, Mauá Martins e Melvin Santhana.

O projeto do Coletivo Negro nasceu a partir de entrevistas feitas com 12 homens negros de diversas idades e ocupações. Nos depoimentos, além da origem pobre, o 
elemento mais comum é a morte. 

É ela, em sua versão “matada” ou “morrida”, pela bala, pela faca, pelo álcool ou outras doenças, que cerca a masculinidade negra periférica. É ela, diz o personagem principal, que torna “impossíveis as metáforas” e faz as coisas serem o que são, nuas e cruas.

Mas a maior inspiração artística da obra são os Racionais MC’s. E o coletivo de hip-hop paulistano sabe como poucos transformar a justa revolta da juventude negra da periferia em poesia, ainda que dura e cortante. É a afirmação de que mesmo as piores situações de violência geram suas metáforas. Inclusive, com lirismo.

Mas se é pela morte que o espetáculo começa, a música vai tomando conta. As rimas ásperas e verdadeiras do rap passam pelo samba e se despedem com o soul dançante dos Jackson Five. É a arte cumprindo sua grande vocação de veículo para a emancipação.

Ainda assim, a realidade volta a bater na cara quando ficamos sabendo que os alvos de treinamento para tiro utilizados na cenografia foram obtidos junto à Polícia Militar. Neles estão desenhados perfis de homens negros. Mas podem ser meninos...

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16 de maio de 2016

A bailarina negra que fez das correntes sapatilhas

Sexta-feira, 13/05, Sesc Copacabana. No centro do teatro de arena, atrizes, atores, dançarinas e dançarinos. O espetáculo é sobre Mercedes Baptista (1921-2014), primeira bailarina negra a integrar o corpo de dança do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, aprovada em concurso em 1948.

O talento de Mercedes não se impôs apenas aos palcos da elite. Também participou do “Teatro Experimental do Negro”, fundado por Abdias do Nascimento. Nesta condição, a bailarina que já havia trabalhado como operária e doméstica, militava por reconhecimento e dignidade para os atores e dançarinos negros no teatro brasileiro.

Seu talento foi reconhecido no exterior. Nos Estados Unidos, Mercedes ministrou cursos no Connecticut College, no Harlem Dance Theather e no Clark Center de Nova York. No Brasil, a coreografia afro-brasileira de Mercedes ajudou a revolucionar o carnaval carioca, tendo sido campeã com o Salgueiro, em 1962.

Tudo isso está esquecido, soterrado pela história dos que venceram, ainda que Mercedes sempre tenha sido vitoriosa. Como diz o personagem de Abdias na peça, nem todo esse reconhecimento a livrou de sentir o peso das correntes ancestrais em suas sapatilhas.

No espetáculo, a beleza da dança, da música, do cenário, do canto está a serviço de uma história dolorida, bonita e comovente. Tambores e atabaques recepcionando piano, violino e violoncelo. A coreografia como liberdade de usar o próprio corpo e recusar sua submissão aos abusos da escravidão, ontem, e do racismo, hoje.

Sexta-feira, 13/05, o Grupo EMÚ, em Copacabana, apresentava o lindo espetáculo “Mercedes Baptista” para uma plateia quase vazia. Apesar disso, os bailarinos e músicos não usavam nem correntes nem sapatilhas. Somente asas!

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13 de maio de 2016

Muito trauma, nenhuma ruptura

Em meio aos traumas causados pelo impeachment, lembremos alguns elementos fundamentais de continuidade.

O governo Temer começa da mesma forma que o governo Lula. Henrique Meirelles é o homem forte da economia. Talvez, seja por isso que Lula vinha insistindo para que Dilma fizesse do mesmo Meirelles seu Ministro da Fazenda para acalmar “os mercados”.

Demorou, mas Lula acabou por ser ouvido.

Ao deixar o governo, Dilma manteve apenas dois ministros. O primeiro era o presidente do Banco Central. É justo. Afinal, ele ocupa o cargo mais importante da “República”. O de garantidor do pagamento da enorme e imoral dívida pública, que já subtrai diariamente mais de R$ 1,5 bilhão do orçamento público só em juros.

O outro integrante remanescente do alto escalão petista era o ministro do Esporte, devido aos Jogos Olímpicos. É justo, também. Afinal, os bilhões gastos com o megaevento ajudarão a engrossar a dívida pública. E já conta até com a absurda legislação especial deixada pelo PT.

Voltando a Meirelles, seu ministério agora também cuida da Previdência. Quem sabe, assim, a Reforma da Previdência que Dilma tanto prometeu aos “mercados” seja aprovada. E o dinheiro dos trabalhadores pode ser canalizado diretamente para o pagamento da... dívida pública. De uma gaveta à outra, sem intermediários.

No ministério da Justiça, Alexandre Moraes, ex-secretário de Segurança do governo paulista. Em seu currículo, o espancamento de alunos que ocuparam escolas em São Paulo, entre outras violências. Portanto, mais do que qualificado para garantir que a lei antiterrorismo aprovada pelo governo Dilma seja plenamente utilizada.

Ou seja, o momento é traumático exatamente porque não houve rupturas.

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10 de maio de 2016

E o cadáver se mexeu!

Em “Uma esquerda para o capital”, Eurelino Coelho aponta como principal causa da transformação do PT em partido da ordem capitalista o abandono do marxismo por parte de suas principais lideranças.

Os dirigentes petistas teriam feito essa opção, diz Coelho, porque, entre outras coisas, consideraram a ruína das experiências ditas “socialistas” uma prova do fiasco das teses de Marx.

O marxismo seria uma ideologia autoritária ou, na melhor das hipóteses, utopia irrealizável. A justificar teoricamente esta conclusão uma mistura de pós-modernismo e liberalismo, anunciando a eternização do capitalismo e a necessidade de suavizá-lo.

No lugar do socialismo, uma versão muito fraca do reformismo europeu a ser implantado quando o PT conquistasse o governo central. Segundo o texto:


...ao invés de políticas gerais de distribuição de renda, exigidas por uma classe trabalhadora fortalecida e organizada, o que restou do ideário social-democrata foram políticas focalizadas de efeito compensatório, concedidas a uma classe derrotada.

Foi o que se viu concretizado nos governos petistas, com programas governamentais e sociais quase sempre intermediadas pelo mercado. Mas, como diz Coelho:


O principal obstáculo é a dificuldade para acertar um acordo duradouro de colaboração pacífica entre capital e trabalho em torno de políticas distributivistas.

Estas palavras publicadas em 2005 se confirmam hoje tragicamente. Aos primeiros sinais de crise, o capital apunhalou o PT pelas costas. Bem na hora que o partido se dedicava a promover o ajuste neoliberal exigido pela burguesia.

Eis que, quase no fim de nossa autópsia, o cadáver se mexe. Mas é o monstro da barbárie capitalista que sai das entranhas secas do petismo combativo. Sujo, fétido e mais forte.

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PT: autópsia descarta intoxicação marxista

9 de maio de 2016

PT: autópsia descarta intoxicação marxista

Em seu estudo “Uma esquerda para o capital”, Eurelino Coelho aborda a transformação do PT em partido da “esquerda do capital”. A hipótese central do autor para explicar esse processo seria o abandono do marxismo por parte de seus dirigentes e intelectuais.

O fato de que a pluralidade política do PT jamais permitiu que se reivindicasse como organização marxista não invalidaria a hipótese. Muitas de suas maiores lideranças durante a fase de consolidação do partido se consideravam marxistas. É o caso de José Dirceu, maior liderança do grupo dirigente abaixo de Lula, e de José Genoino, principal referência da esquerda petista nos primeiros anos do partido.

Assim, o projeto político inicial do PT teria sido marcado por algumas “coordenadas gerais do marxismo”. Seriam elas a organização política independente do proletariado, a luta pelo poder e a “desnaturalização das relações sociais burguesas”.

Sob a influência dessas “coordenadas” a maioria dos petistas se recusava a ficar a reboque de outros partidos, especialmente os “controlados pelos patrões”. Também repudiava a ideia de que não havia alternativa ao capitalismo nem a suas relações hierárquicas e autoritárias, incluindo a disputa pelo poder como monopólio dos profissionais da política.

O gradual abandono desses referenciais pelos dirigentes ou figuras-chave do PT explicaria a renúncia à disposição combativa que caracterizou sua formação. Na verdade, sobraria como princípio apenas a disputa pelo poder. Em nome desse objetivo, passaram a ser feitas alianças com setores conservadores e o partido domesticou sua atuação frente à ordem capitalista.

Ou seja, podemos deduzir como causa muito provável da morte que estamos investigando baixíssimos índices de marxismo.

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Ainda sobre o triste fim do PT combativo

6 de maio de 2016

Ainda sobre o triste fim do PT combativo

Voltamos à triste tarefa de dissecar o cadáver do petismo combativo. Ainda acompanhados das contribuições do estudo “Uma esquerda para o capital”, de Eurelino Coelho.

Desta vez, abordando a burocratização que tomou conta do PT. Segundo Coelho:

Normalmente os postos burocráticos exercem certa atração exatamente pela possibilidade de assegurar vantagens materiais que não estão ao alcance do conjunto da classe. Sobre os ocupantes de tais postos, portanto, existe sempre a pressão no sentido de sobrepor os objetivos ligados às necessidades de reprodução da própria organização (de que dependem as suas vantagens pessoais) aos objetivos gerais de toda a classe...

Mas essa situação, diz o autor, poderia ser evitada “por formas de organização e por práticas que soldem a atividade da organização (...) com a experiência real vivida pela classe, suas lutas e suas vicissitudes”.

O grande problema no caso petista foi a prioridade que seus setores dirigentes dispensaram ao caminho eleitoral. Segundo o texto, o PT cresceu, ininterruptamente, em praticamente todas as eleições, entre 1982 e 1998. Resultado, o campo dirigente do partido:

...considerando as três esferas do Estado, seguramente ultrapassou, já em 1992, a casa da dezena de milhar de postos burocráticos remunerados ocupados por militantes profissionais.

Coelho alerta que “ocupar postos no Estado burguês, por si só, não implica romper os vínculos com a classe trabalhadora. Há inúmeros exemplos de participação de organizações revolucionárias em parlamentos”.

É verdade. Mas não são poucos os prejuízos políticos causados pela dependência das disputas institucionais. É o que prova nosso cadáver, que continua insepulto e cobrando diagnósticos que ajudem a evitar novos óbitos motivados pelas mesmas moléstias.

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5 de maio de 2016

Uma autópsia do PT combativo

Fazer uma “autópsia” da vocação contestadora do PT é fundamental para a esquerda que não se deixou render. Pelo menos, para tentar evitar o mesmo fim melancólico.

Nesse sentido, são valiosas as contribuições de “Uma esquerda para o capital”, tese acadêmica de Eurelino Coelho, transformada em livro em 2012.

A pesquisa concentra-se na atuação de duas correntes políticas no interior do PT. Uma, a Articulação, que dirige o partido e reúne líderes como Lula, Aloísio Mercadante e José Dirceu. A outra, o Partido Comunista Revolucionário (PRC), de José Genoino e Tarso Genro, que mais tarde se tornaria a Democracia Radical.

A corrente lulista sempre foi a mais moderada, comparada às outras tendências petistas. Já o PRC, surgiu como agrupamento da esquerda revolucionária. Por anos, elas divergiram radicalmente quanto aos rumos do partido.

Mas, no início dos anos 1990, elas se aproximaram bastante, com a corrente de Genoino assumindo posições políticas que ficavam, inclusive, à direita da Articulação.

A atuação das duas forças teria sido fundamental na preparação do PT para assumir o governo federal com um projeto rendido à lógica neoliberal.

Elemento importante nessa trajetória foi o abandono do caráter classista da atuação petista. Em seu lugar, lideranças dos dois agrupamentos defendiam “valores éticos” e o “governo para todos”.

O grande teste para esses posicionamentos aconteceu em 1994. A campanha eleitoral de José Dirceu ao governo paulista recebeu doações da Odebrecht. Mas a crise no grupo dirigente do partido não envolveu o financiamento em si, apenas acusações de corrupção contra a empreiteira.

O abandono do classismo logo levaria à frouxidão ética. Depois, à mesa de dissecação.

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4 de maio de 2016

O partido dos tamanduás

As causas que levaram o PT à terrível crise por que vem passando precisam ser debatidas pelo conjunto da esquerda.

Uma ótima contribuição nesse sentido é a tese de doutorado de Eurelino Coelho, “Uma esquerda para o capital”, defendida em 2005 e transformada em livro em 2012.

O estudo mostra a gradual transformação do PT de partido de contestação da ordem em seu dedicado defensor. Um importante elemento nessa trajetória seria o abandono do princípio da independência de classe.

Em 1981, por exemplo, com apenas um ano de existência, o PT era assim descrito em um cordel elaborado por militantes do Piauí:

Um partido que é do povo/ sem pelego, sem patrão/ sem luxo, sem mordomia,/ sem furto, sem corrupção/ onde não se compra voto/ e nem se vende ilusão.
Existem outros partidos/ todos da “oposição”/ e por trás de cada um/ está oculto um patrão/ cuidado trabalhador:/ escute, preste atenção.

No mesmo ano, o setor agrário do PT de Minas Gerais lançou uma cartilha em quadrinhos com o título “Partidos das Formigas (Tamanduá não entra)”.

Na campanha eleitoral de 1982, diz o texto, vários candidatos petistas em todo o país distribuíam panfletos de campanha que diziam “Quem bate cartão, não vota em patrão”.

Como se sabe, hoje a situação é bem diferente.

Claro que esse não é o único elemento a explicar a atual situação vergonhosa do partido. E, realmente, o estudo de Coelho vai muito além disso. Por isso, vale a leitura.

Mas o fato é que, mesmo que ainda restem algumas formigas nas bases petistas, o partido está entregue aos tamanduás.

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3 de maio de 2016

O apagão da tagarelice

Com o WhatsApp bloqueado, muita frustração e pânico. Não é para menos. O uso “recreativo” do aplicativo representa o auge de nossa dependência das telas.

Tudo teria começado em 1950, com a inauguração da TV no Brasil, atrasada uns 20 anos em relação a outros países. As conversas no sofá da sala ou em cadeiras nas calçadas diminuíram.

Em 1965, surgia a primeira rede nacional de TV. Era a Globo, voz oficial da ditadura. No lugar do silêncio imposto por censura e tortura, notícias e novelas. Umas e outras, fictícias.

O Plano Real possibilitou o endividamento sob os juros mais altos do mundo. Mas também o acesso a vários aparelhos de TV na mesma casa. A família já não se espremia no sofá diante do monitor.

Lugares públicos, como bares e consultórios, ganharam vários televisores. A atenção destinada a conversas ou leituras, roubada por telas cada vez mais onipresentes.

Ou seja, desde o fim das cadeiras na calçada, o hábito de conversar vem desaparecendo. No máximo, rasos comentários sobre o que aparece nas telas.

É o monólogo falador televisivo levando à mudez da audiência.

A situação parecia muito conveniente aos poderosos. A verdade que chegava pelas telas era aceita passivamente fora delas.

No século 21, porém, há uma grande mudança.

Os aplicativos de mensagens mostram que a tagarelice pode ser muito útil ao poder. Seria porque a qualidade de nossa interação atual já não representa qualquer ameaça a não ser para nossa própria inteligência?

Poderíamos aproveitar o apagão do Zap para fazer esse debate. Que tal criar um grupo no Telegram ou no Messenger, por exemplo?

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2 de maio de 2016

Fazendo selfies com Hitler

Em 2014, Adolfo Hitler acorda em plena Berlim e começa a circular pela cidade agindo como se os 70 anos desde sua morte não fizessem diferença. A confusão é grande. Mas não pelos melhores motivos.

A trama está no livro “Ele está de volta”, de Timur Vermes, lançado em 2011. Em 2015, ganhou uma adaptação cinematográfica homônima de David Wnendt.

A produção apresenta situações cômicas. Mas o filme também assusta e quase faz chorar.

Quando o Hitler ressuscitado sai pelas ruas, sua presença, em geral, é muito bem recebida. Turistas ou não, muitos o escolhem para fazer um selfie. A maioria das declarações são música para seus ouvidos fascistas. Há, principalmente, muita xenofobia racista.

Mesmo misturando situações reais com cenas dramatizadas, a realidade está presente em quase tudo. E o que mais assusta é o entusiasmo com que as pessoas abordadas colaboram, demonstrando enorme predisposição à intolerância extremista.

“Hitler” olha em volta e encontra todos os elementos que o fizeram poderoso nos anos 1930. Especialmente, a indignação. Esta última é sua matéria prima para abordar problemas como desemprego elevado, salários baixos e muita corrupção.

Olhamos para o resto do mundo e vemos situações bem parecidas. São os problemas estruturais do capitalismo se espalhando pelos pontos mais importantes do capitalismo global. Frente a eles, tudo o que a direita precisa é de uma democracia limitada ao plano institucional ou uma esquerda fiel executora das receitas neoliberais. Ajustes fiscais incluídos.

Muito provavelmente, é por isso que, no Brasil, os fascistas nem precisem ser ressuscitados. Assim como não falta quem esteja disposto a fazer selfies com eles.

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