Doses maiores

28 de setembro de 2018

Democracia racionada e voto fraco

Quando o Brasil se tornou independente, apenas ingleses e estadunidenses elegiam legisladores há mais tempo que nós. Mesmo a França, só teve um parlamento com monopólio legislativo em 1875, ao se tornar república.

Com exceção da Inglaterra, a única república regular do Ocidente, no século 19, era a estadunidense, onde os eleitores efetivamente escolhiam o chefe do Executivo. Mas por lá, além dos escravos, não podiam votar os negros livres e os imigrantes asiáticos. Já, por aqui, os direitos eleitorais incluíam índios e negros não escravizados.

Em 1872, 13% da população livre brasileira podia votar. Em 1851, nos Estados Unidos, a média de eleitores era de 11%. Na Holanda, até 1870, 10%. Na Suécia, em 1872, votavam somente 5,3%. Em 1873, na Áustria, 6%. Na Espanha, em 1865, meros 2,6%.

Nosso primeiro deputado negro foi Antônio Rebouças, eleito em 1829, na Bahia. Os primeiros negros livres norte-americanos começariam a votar somente três décadas depois.

Em 1879, uma reforma eleitoral mudou radicalmente esse quadro. Mas até então, o Brasil tinha uma tradição de três séculos e meio de governo local representativo e leis eleitorais que acompanhavam o padrão mais avançado do mundo ocidental.

Claro que, fosse sob domínio colonial, primeiro, ou imperial, depois, o essencial era decidido nas altas esferas. A escravidão alijava milhões não só dos direitos eleitorais. E, mesmo entre os livres, a democracia mal chegava ao nível administrativo das vilas e municípios.

As informações acima estão em “História da riqueza no Brasil”, livro de Jorge Caldeira. Mostram que, em nossa história, mesmo quando houve democracia, ela foi sovina e o voto, anêmico.

27 de setembro de 2018

A família Marx despejada

Em março de 1850, incapaz de pagar aluguéis atrasados, a família Marx foi despejada. Jenny descreve a situação em uma carta:

...tivemos de deixar a casa; estava frio, úmido e nublado; meu marido saiu à procura de alojamento; quando mencionava as quatro crianças, ninguém queria nos aceitar. Finalmente um amigo veio em nosso socorro; nós pagamos e eu vendi às pressas todas as minhas camas para acertar as contas com farmácia, padeiros, açougueiros e leiteiros, que, assustados com o escândalo provocado pelos oficiais de justiça, de repente me assediaram com suas contas. As camas que vendi foram levadas para a calçada e postas numa carroça — e depois, o que acontece? Já passa muito do pôr do sol, a lei inglesa proíbe isso, o senhorio nos pressiona com a presença da polícia, declara que talvez tenhamos incluído coisas suas no meio das nossas, que estamos nos escafedendo e indo embora do país. Em menos de cinco minutos, uma multidão de duzentas ou trezentas pessoas fica parada, boquiaberta, na frente da nossa porta, toda a canalha de Chelsea. As camas vão para dentro de novo; só podem ser entregues ao comprador na manhã seguinte, depois da alvorada; assim, com a venda de tudo que era nosso, tendo conseguido pagar cada centavo, me mudo com minhas pequenas crianças queridas para dois pequenos quartos que agora ocupamos no Hotel Alemão, na Leicester Street, número 1...

Poderia ser o trecho de uma obra de Dickens. Mas era só um dos vários episódios de dificuldades financeiras envolvendo a família daquele cuja obra seria uma das grandes contribuições para a ciência econômica.

26 de setembro de 2018

Nosso primeiro governante eleito foi um padre

Em 1831, D. Pedro I abdicou. Seu filho não podia assumir o trono por ser menor de idade. Começava o chamado “Período das Regências”. Vieram os regentes.

Um deles seria o primeiro governante eleito do Brasil, conta Jorge Caldeira em “História da riqueza no Brasil”. Em 7 de abril de 1835, o escolhido pelo voto popular foi o padre Diogo Antônio Feijó.

Segundo Caldeira, esse “homem que não queria privilégios nem foros especiais de fidalguia”, iniciou sua carreira política no primeiro parlamento brasileiro.

Entre seus projetos como deputado, estava o fim do celibato dos padres, por se tratar de assunto da competência das leis vigentes, e não pertinente à esfera das decisões religiosas.

Como regente, uma de suas decisões mais importantes foi a nacionalização das forças de segurança nas vilas, criando a Guarda Nacional “sob comando de cidadãos”.

Em 1837, viu-se obrigado a renunciar ao perder a maioria do parlamento. Mas deixou herança, diz Caldeira:

O Código Criminal e o Código de Processo ampliavam os poderes dos juízes locais eleitos, criavam o tribunal do júri, instituíam o instituto do habeas corpus e proibiram as “prisões de potência” que tanto horrorizavam Feijó. Ambos se baseavam nos princípios jurídicos iluministas da presunção de inocência, do fim das prisões arbitrárias e numa legislação que previa penas iguais para ricos e pobres (além de não supor uma nobreza à parte).

O país só voltaria a eleger um governante 58 anos depois, com Prudente de Morais.

Feijó nunca chegou perto de ser um revolucionário. Mas se vivesse em nossos tristes dias, certamente, muitos o acusariam de ser mais um “vermelhinho”.

Leia também: Atos arbitrários do primeiro governante do país

25 de setembro de 2018

Os generais de Bolsonaro

O artigo 142 da Constituição costuma ser utilizado pela extrema-direita para justificar a necessidade de um novo golpe militar.

Segundo o dispositivo, as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Durante a Constituinte, o PT ainda era um partido combativo e o deputado José Genoino, idem. Ele apresentou uma emenda à redação do artigo, retirando a expressão "lei e ordem".

O receio do petista era muito justo. Afinal, que lei e ordem é essa que deve ser defendida pelas armas? Quem a perturbaria? Greves e manifestações?

Mas, chantageada pelos militares, a maioria dos constituintes manteve o texto original.

Mais de vinte anos depois, o PT era governo. Vieram as manifestações de 2013 e os petistas fizeram aprovar uma lei antiterrorista, reforçando o espírito do artigo 142.

Um pouco antes disso, em 2004, Lula enviara tropas ao Haiti. Era a exportação do Artigo 142 para um país cujo povo vem sendo massacrado há séculos.

Trinta anos depois da promulgação da Constituição, entre os generais que apoiam a candidatura fascista de Bolsonaro, estão Roberto Peternelli, Santos Cruz e Augusto Heleno. Todos eles chefiaram tropas brasileiras no Haiti.

Certamente, aprenderam muito com a repressão aos pretos e pobres do miserável país caribenho. Agora, parecem prontos para entrar em ação em solo pátrio. E, provavelmente, não continuariam reprimindo apenas os pretos e pobres locais.

Detalhe: em 2011, Genoino foi condecorado pelas Forças Armadas com a Medalha da Vitória. Parece que trogloditas fardados também são capazes de cometer ironias.

Parabéns a todos os envolvidos!

Leia também:
As mãos sujas do governo brasileiro no Haiti

24 de setembro de 2018

Dez anos de uma crise que não terminou

Há dez anos, o sistema bancário quase entrou em crise terminal. Para socorrer o setor financeiro, os governos entregaram a seus controladores centenas de bilhões de dólares em dinheiro público, principalmente na Grã-Bretanha e Estados Unidos.

Passada uma década, políticos e banqueiros não aprenderam nada com o que aconteceu, exceto como passar os custos do desastre econômico para as pessoas comuns.

A dívida global total no ano passado equivalia a 217% da produção mundial. Quase 40% acima de 2007, quando a crise deu seus primeiro sinais.

Hoje, os cinco principais bancos dos Estados Unidos controlam 47% dos ativos bancários, em comparação com 44%, em 2007.

O 1% dos maiores fundos financeiros do mundo - que reúnem dinheiro de especuladores para comprar ações, títulos e outros papéis – controlam 45% dos ativos desse setor. Um colapso de qualquer um deles seria ainda mais devastador do que em 2008.

E ainda há o setor bancário que atua nas sombras. Ou seja, fora do alcance de qualquer regulamentação governamental.

Uma estimativa conservadora sugere que esse setor teria um tamanho de US$ 45 trilhões, controlando 13% dos ativos financeiros do mundo. Em 2010, esse volume era de US$ 28 trilhões.

Em 2008, taxas de juros baixíssimas e imensas doações de dinheiro público a bancos e multinacionais salvaram o sistema. Mas, provavelmente, toda essa munição não estará disponível na próxima vez.

Para agravar ainda mais todo esse quadro, aquele que está no comando da maior e mais poderosa economia do mundo resolveu ficar de mal com a segunda colocada nesse ranking.

Os dados acima estão nesse artigo, em inglês.

20 de setembro de 2018

Marx pira na teoria da conspiração russa

David Urquhart era um aristocrata escocês que chegou a ser representante do Partido Conservador no parlamento britânico. Mas é mais lembrado por ter introduzido as saunas a vapor na Inglaterra.

Esse personagem, certa vez, cismou que o ministro das Relações Exteriores, Lorde Palmerston, seria um agente secreto russo. Tendo conhecido Urquhart em um jantar, Marx tomou conhecimento da esdrúxula tese e aderiu a ela com entusiasmo.

Afinal, a teoria combinava perfeitamente com o ódio e a desconfiança de Marx em relação à Rússia czarista. A ideia estapafúrdia chegou a render vários artigos para o “New York Tribune”, no final de 1853.

Mas o próprio Marx parecia saber de onde estava metido. Em uma carta a Engels de 9 de fevereiro de 1854, referiu-se ao escocês, escrevendo:

A ideia mais cômica desse sujeito é esta: os russos dominam o mundo por terem uma região no cérebro que os outros povos não têm. E para enfrentá-los, é preciso ter o cérebro de um Urquhart. Mas se você tiver a infelicidade de não ser um Urquhart, deve, pelo menos, acreditar no que Urquhart acredita. Ou seja, deve ser um urquhartitista.

Felizmente, Marx estava ocupado demais sendo marxista e logo se afastou do escocês maluco para voltar a se dedicar à redação de “O Capital”.

Marx só voltaria a ter notícias sobre o aristocrata excêntrico por Engels, que, em carta de 1858, informou que Urquhart tinha sido condenado por infanticídio. Ele havia causado uma congestão cerebral num bebê ao levá-lo para uma sauna.

Esse é mais um curioso episódio revelado por Francis Wheen em sua biografia de Marx.

19 de setembro de 2018

Voto útil ou voto desesperado?

Nas eleições de 2014, Dilma era o “Coração Valente”. Uma vez eleita, ela realmente demonstrou muita coragem. Adotou a agenda de austeridade econômica do adversário que derrotou.

Tamanha petulância não serviu para agradar a direita, que queria sangue. Só deixou a esquerda desacorçoada, palavra cujo significado é “sem coração”, no sentido de sem ânimo, sem coragem.

Deu no que deu.

É essa decepção que, agora, Haddad procura evitar. Em 2002, Lula lançou a Carta aos Brasileiros para acalmar os “mercados”. Haddad prefere passar alguns recados. Um deles envolveu o nome de Marcio Pochmann na sabatina da Folha.

Como coordenador informal da agenda econômica do PT, Pochmann vinha minimizando a necessidade de uma reforma da previdência. Posição prontamente desautorizada pelo candidato petista.

Outro recado é a proposta de acordo de Haddad feita a Ciro Gomes e Geraldo Alckmin. Quem for para o segundo turno apoia o outro.

É assim que a eleição vai se tornando plebiscitária. É sim ou não diante do inominável. Frente ao ex-capitão alucinado e seu vice troglodita, vale tudo. Propostas políticas valem nada.

Nenhuma dúvida quanto à catástrofe que seria a eleição de Bolsonaro e Mourão. Mas chamemos as coisas pelo seu nome.

Quando se fala em voto útil no primeiro turno já não se trata de escolher o mal menor. É a rendição ao mais perigoso dos fatalismos políticos.

Um governo saído de uma vitória sobre Bolsonaro afastará o pior. Mas será o produto do mais puro desespero. E desesperados costumam ter pouca ou nenhuma esperança.

Nas urnas, é digitar o número do candidato e apertar o botão do pânico.  

Leia também:
A derrota de Bolsonaro não seria necessariamente uma vitória

18 de setembro de 2018

A disputa política não se resume a eleições

Entre os artigos de Leon Trotsky reunidos no livro “Problemas da vida cotidiana”, de 1923, está “Nem só de política vive o homem”.

Nele, Trotsky cita um artigo no qual Lênin admite que sua posição em relação à construção do socialismo mudara radicalmente.

Antes, diz Lênin, “nossos principais esforços estavam necessariamente direcionados para a luta política, a revolução, a conquista do poder, etc”. Agora, o centro da atividade revolucionária “deveria se deslocar para o trabalho pacífico da organização cultural”.

Referindo-se ao cerco imperialista à Revolução de 1917, Lênin diz que tal tarefa só não receberia total prioridade devido à “necessidade de lutarmos por nossa posição em escala internacional”. Mas, afirma, “se nos limitarmos às condições econômicas internas, o esforço essencial deve ser dedicado ao trabalho cultural”.

Essas consideraçoes de Lênin lembram as preocupações que, poucos anos depois, Antonio Gramsci manifestaria sobre a necessidade de disputar a hegemonia com as classes dominantes. Em os “Cadernos do Cárcere”, por exemplo, ele diz:

Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições fundamentais inclusive para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também dirigente.

Não é que Gramsci considerasse necessariamente errado o caminho escolhido pelos bolcheviques. Sua preocupação era como tomar o poder em sociedades mais complexas que a Rússia czarista.

Este é um debate fundamental para a esquerda. Mas, infelizmente, ainda estamos na fase em que precisamos nos convencer de que nem só de eleições vive a política.

Leia também: A esquerda, entre o bar e a igreja

17 de setembro de 2018

O índice Bolsonaro de selvageria social

Rosana Pinheiro-Machado é professora da Universidade Federal de Santa Maria (RS). Como antropóloga, ela realiza “rodas de conversa” com adolescentes das periferias.

Em 11/09/2018, Rosana publicou artigo no “The Intercept Brasil”, afirmando que os jovens pobres que apoiam Bolsonaro:

...seguem a mesma orientação punitivista e demonstram solidariedade aos policiais, que deveriam ter o direito de matar. Paradoxalmente, esses mesmos meninos relatam um cotidiano de humilhações em abordagens policiais abusivas. “Se eu não estiver vestido como humilde e não estiver de cabeça baixa, se estiver de cabeça erguida e com boné de marca que me associe aos mano, eles me param, dão porrada e me jogam no chão”.

A professora não ignora que visões como essa são perpetuadas por programas televisivos como o de Datena. Mas diz que “nada se compara ao novo gênero de espetáculo da violência que são os vídeos caseiros que circulam no WhatsApp nas classes populares”.

Segundo ela, trata-se da “espetacularização do sangue, do sexo brutal, dos tiros e facadas”. Produto de um cotidiano onde a violência é tão concreta quanto é abstrata a democracia.

É por isso, afirma Rosana, que:

Não se pode esperar que brotem almas democráticas e contestadoras de pessoas cujo contexto, desde o espancamento que recebeu do pai até a lição que levou da polícia, é marcado pela violência.

O artigo nos faz concluir que as intenções de voto em Bolsonaro são uma espécie de indicador do nível de selvageria social a que chegamos.

E se o candidato pode estar batendo no seu teto eleitoral, a barbárie que seu sucesso representa parece estar muito longe do fundo do poço.

13 de setembro de 2018

Quando no estado de direito, há mais estado que direito

Giovanni Arceno é um jovem escritor e mantém o blog Leia Brasileiros. Por meio dele, distribui diariamente, via e-mail, ótimos trechos de literatura nacional, da mais antiga à recentíssima.

Abaixo uma amostra que tem tudo a ver com os difíceis tempos em que vivemos:

Os homens não bateram, porque há muito naquela cidade, ou país, a polícia não precisava bater para entrar. Não traziam mandados judiciais, há muito os mandados tinham perdido a razão de ser. Não havia um estado de direito. Havia o estado, não o direito.

Os homens entraram, atravessaram a sala onde a família jantava, até então tranquilamente.

– Inspeção de rotina, comunicou o chefe dos homens que tinham entrado.

– Fiquem à vontade, disse o dono da casa, voltando para terminar a sopa, indiferente à súbita invasão. A indiferença significava apenas impotência.

Os homens vasculharam a sala, os quartos, o banheiro, o quarto das crianças, a cozinha, a área de serviço e o quarto da empregada. Quarto? Aqueles cubículos, senzalas que as imobiliárias fazem.

Voltaram da cozinha com uma cadeira branca de fórmica.

– Vamos levar esta cadeira. Amanhã o senhor apareça para prestar depoimento.

O trecho é do conto “Os homens que descobriram cadeiras proibidas”, do livro “Cadeiras Proibidas”, de Ignácio de Loyola Brandão. É de 1976 e diz respeito ao período da ditadura militar, claro. Mas há algum tempo que, em nosso estado de direito, voltamos a nos deparar cada vez mais com o estado do que com o direito.

Como se vê, é altamente recomendável ir lá no blog do Arceno para se inscrever.

12 de setembro de 2018

Um duende ronda a Europa. Ops...

“A inesquecível primeira frase do Manifesto Comunista tem a força de um raio”, diz Francis Wheen em sua biografia sobre Marx: "Um temível duende ronda a Europa". Ops...

Estranho, certo? Mas foi assim que a famosa sentença apareceu na primeira edição em inglês, publicada pelo jornal “Red Republican”, em 1850.

A tradução era de Helen Macfarlane, feminista que conhecia Marx e Engels e era muito admirada por ambos. Para traduzir o “espectro” do original alemão, Helen escolheu “hobgoblin”, cuja tradução mais aproximada seria “duende”.

Infelizmente, a imagem do “duende” nunca pegou, lamenta Wheen. A versão que todos conhecem é de Samuel Moore, publicada pela primeira vez em 1888: "Um espectro assombra a Europa. O espectro do comunismo”.

Mas detalhes góticos à parte, um documento interessante foi publicado por Marx e Engels um mês depois do Manifesto. Trata-se de "Demandas do Partido Comunista da Alemanha".

Como o proletariado alemão praticamente não existia ainda, os autores entendiam que o primeiro estágio da luta comunista no país deveria ser uma revolução burguesa.

Assim, as “Demandas" eram bastante modestas. Incluíam apenas quatro dos dez pontos do Manifesto: imposto de renda progressivo, liberdade de ensino, propriedade estatal dos meios de transporte e criação de um banco nacional.

Enquanto o Manifesto propunha a nacionalização de todas as terras, o documento se limitava a "propriedades da nobreza e feudais em geral". Também defendia o sufrágio universal e o pagamento de salários para parlamentares.

Reivindicações muito moderadas, mas que exigiram muita luta para serem atendidas nas décadas seguintes.

De qualquer forma, as “Demandas”, sim, poderiam ter sido iniciadas com a imagem daquele temível duende.

Leia também: Marx correu sério risco de se tornar respeitável

11 de setembro de 2018

O capitalismo devora o coração do mundo íntimo

“O capitalismo corrói a saúde mental” é o título de reportagem de Manuel Yepe, publicada por America Latina en Movimiento em 20/08/2018.

A matéria refere-se ao livro “The Inner Level” (O Nível Íntimo), dos professores de epidemiologia Kate Pickett e Richard Wilkinson, lançado nos Estados Unidos.

Entre os dados da publicação, um levantamento indica que em 28 países europeus a desigualdade aumenta a ansiedade por manter ou elevar o status social em todas as faixas de rendas.

As formas mais frequentes de enfrentar essas ansiedades, dizem os autores, são:

...as drogas, o álcool e o jogo, mediante a alimentação como reconfortante, ou por meio do consumo de status e o consumismo conspícuo. Aqueles que vivem em lugares mais desiguais são mais propensos a gastar dinheiro em automóveis caros e a comprar bens de status; e são mais propensos a ter altos níveis de dívida pessoal porque buscam demonstrar que não são “gente de segunda classe” ao possuir “coisas de primeira classe”.

Ou seja, o “remédio” a que se recorre é o mesmo que alimenta a epidemia que faz adoecer.

O estudo, diz Yepe, demonstra que “a desigualdade devora o coração do mundo íntimo e aprofunda as ansiedades sociais da grande maioria da população”.

Mas nada disso é natural. Segundo Kate e Wilkinson, “nosso passado como caçadores-coletores igualitários, cooperativos e solidários na comunidade primitiva” prova isso. Desmente a falsa ideia de que somos, por natureza, competitivos, agressivos e individualistas. Temos todas as aptidões psicológicas e sociais para viver de maneira diferente. “A desigualdade não é inevitável”, concluem eles.

Inevitável, só a resistência, diríamos nós.

Leia também: Depressão, trabalho e tempo

10 de setembro de 2018

Atos arbitrários do primeiro governante do país

O relato abaixo baseia-se no livro “História da riqueza no Brasil”, de Jorge Caldeira.

Em janeiro de 1822, José Bonifácio foi nomeado ministro por D. Pedro I. Na primeira reunião entre os dois, fecharam um acordo: fundar um poder estável, que assegurasse a sobrevivência da monarquia e a obediência a uma Constituição a ser elaborada por representantes eleitos.

Uma combinação estranha. De um lado, um poder concebido como tendo “origem divina”. De outro, um poder que se dizia fundado na soberania popular. Mas esse conflito teria que ficar em suspenso para garantir a independência.

Em maio de 1823, a Assembleia Constituinte inicia seus trabalhos. D. Pedro jurou defender a Constituição, mas apenas se fosse “digna do Brasil e de mim”.

Em setembro de 1823, os constituintes chegaram a um projeto final. Restava saber se o monarca o considerava “digno de si”. A resposta veio com o fechamento da Assembleia Constituinte.

Uma outra constituição foi imposta pelo imperador. Aproveitava grande parte do texto elaborado pelos deputados. Reconhecia como cidadãos, por exemplo, todos os libertos, incluindo índios e portugueses. Também garantia o direito ao voto para todos, mesmo os analfabetos, desde que tivessem renda de até 100 mil-réis, equivalente ao salário de um carpinteiro.

Por outro lado, criou o Poder Moderador, que, na prática, tinha poder de veto sobre os atos de todos os outros poderes. Além disso, segundo o artigo 99, a “pessoa do imperador é inviolável e sagrada. Ele não está sujeito a responsabilidade alguma.”

“Eram os atos arbitrários do primeiro governante do país independente”, diz Caldeira. Seriam só os primeiros de muitos, poderíamos complementar.

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Por uma nova simbologia patriótica

6 de setembro de 2018

Marx correu sério risco de se tornar respeitável

Uma das medidas propostas por Marx e Engels no Manifesto Comunista era o fim do direito à herança. Um privilégio que perpetuava fortunas e concentrava riqueza.

Mas isso nunca impediu Karl e Jenny de receberem alguns reforços no orçamento graças ao falecimento de vários parentes. Muitos deles, tão ricos quanto distantes.

É o caso da tia Henriette, morta em 1863. O sobrinho mal a conhecia, mas recebeu 100 libras. Uma soma considerável para a época e suficiente para que a família quitasse débitos antigos e ficasse livre para iniciar novos.

Como diz Francis Wheen, em sua biografia sobre Marx, sempre que “colocava as mãos em algum dinheiro, ele gastava de forma imprudente, como se não houvesse amanhã”.

O dinheiro da herança possibilitou à família alugar uma espaçosa mansão em Maitland Park, bairro rico de Londres.

As crianças ganharam três cães, dois gatos e dois pássaros.

Um grande baile foi promovido para que suas filhas, Jenny e Laura, recebessem amigos. As duas passaram muitos anos recusando convites para eventos desse tipo por medo de que não pudessem retribuir.

Em meados de 1864, Marx escreveu a um amigo: “Você vai ficar surpreso ao saber que ando especulando com títulos financeiros. Parte deles, de fundos americanos. Desse modo, já lucrei mais de 400 libras”.

“Jogando nos mercados, organizando bailes e jantares, passeando com os cachorros no parque: Marx corria sério risco de se tornar respeitável”, brinca Wheen.

Esse risco logo seria afastado, com a volta das dívidas e da precariedade econômica. Mais uma vez, ficava comprovado o que Marx sempre afirmara. A vida verdadeiramente burguesa é para muito poucos.

Leia também: Um pensador que sonha, um sonhador que pensa

5 de setembro de 2018

O deserto no lugar do Museu















O antropólogo Viveiros de Castro é conhecido e respeitado mundialmente. Professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele falou sobre o incêndio que destruiu a instituição ao site Público. Abaixo, alguns trechos:

A minha vontade, com a raiva que todos estamos sentindo, é deixar aquela ruína como “memento mori”, como memória dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos, destruídos nesse incêndio.

Eu não construiria nada naquele lugar. E, sobretudo, não tentaria esconder, apagar esse evento, fingindo que nada aconteceu e tentando colocar ali um prédio moderno, um museu digital, um museu da Internet...

Tenho muito medo que se tente vender o canto de sereia da privatização dos museus, retirá-lo da universidade, transformá-lo numa fundação privada.

...não vai haver reflexão nenhuma, até porque o país está mergulhado numa crise política, moral, cultural e económica gigantesca. Vai haver gritaria durante algum tempo, choro, ranger de dentes, e em seguida vai-se voltar ao que sempre foi, planos para o futuro que não se concretizam, verbas que se prometem e não se entregam.

...a ideia de que o povo despreza a cultura não é verdadeira. Quem despreza a cultura é a burguesia, o agronegócio, os deputados ruralistas, os que estão interessados em devastar o país para produzir soja para vender para a China.

O Brasil é um país onde governar é criar desertos. Desertos naturais, no espaço, com a devastação do cerrado, da Amazónia. Destrói-se a natureza e agora está-se destruindo a cultura, criando-se desertos no tempo.

E produzem esses desertos sem nem se dar ao trabalho de nos enganar com miragens.

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4 de setembro de 2018

Uma rara catequização do bem

As catequizações cristãs costumam ser muito traumáticas para aqueles que as sofrem. Especialmente nocivas junto aos povos indígenas, seja no nível cultural como econômico e social.

Mas há exceções. É o que revela reportagem da BBC, publicada em 13/08/2018. Trata-se do trabalho das Irmãzinhas de Jesus junto aos índios Tapirapé, habitantes do nordeste do Mato Grosso.

Quando elas chegaram, em 1952, a tribo estava reduzida a 50 pessoas. Ao partirem, em 1982, deixaram boas lembranças e uma coletividade com quase mil indígenas.

Em primeiro lugar, elas auxiliaram no tratamento das doenças que vinham dizimando o grupo. Mas também foram fundamentais para seu fortalecimento cultural e a recuperação de seu território tradicional.

Também ajudaram tanto na instalação de uma escola indígena reivindicada pelos próprios Tapirapé, como participaram da luta pelo reconhecimento do seu território, homologado pelo governo federal como Terra Indígena Urubu Branco em 1998.

Com esse novo tipo de “evangelização”, diz a matéria, as missionárias “buscaram elas mesmas serem Tapirapé”. Viviam em casas semelhantes às dos indígenas, plantavam e comiam como eles e participavam de alguns rituais.

A irmã Odile Eglin diz que, aos poucos, elas foram entendendo que esse povo não precisava “ser católico para viver”. Desse modo, a integração foi acontecendo de modo harmonioso.

A freira Geneviève Boyé dá como exemplo o Natal. Após uma “missinha” matinal, as crianças Tapirapé levavam um presente para aquele menino que os brancos chamam de Jesus, “tipo uma florzinha”.

Em meio a sua enorme crise, os católicos verdadeiramente cristãos deveriam imitar tais exemplos e abandonar o Vaticano. Deixá-lo entregue às traças e aos espíritos sombrios que o controlam.

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3 de setembro de 2018

Eleições: entre répteis e anfíbios

Já em 2011, Douglas Rushkoff dizia que “para o Facebook somos o produto, não o cliente”. Professor de Teoria dos Meios e Economia Digital da Universidade do Estado de Nova York, ele é um dos mais rigorosos críticos das poderosas empresas que monopolizam as redes virtuais.

Em entrevista publicada no portal “Outras Palavras” em 30/08/2018, ele analisa o impacto de empresas como Facebook e Google sobre o comportamento humano. Diz, por exemplo, que:

...os designers de interfaces das principais empresas tecnológicas do Vale do Silício estudam “captologia” em Stanford. Leem livros sobre o funcionamento das máquinas caça níqueis de Las Vegas para desenhar algoritmos que viciem.

O entrevistado afirma, ainda, que:

Nossas emoções e condutas mais humanas provêm de uma parte do cérebro chamada neocórtex. É a parte que as plataformas digitais tratam de evitar a todo custo. A captologia é a ciência de driblar o neocórtex e chegar diretamente no tronco do encéfalo. Essa é a parte que diz “matar ou morrer”. Se essa é a parte do cérebro que está ativa online, ela fomentará esse tipo de comportamento primitivo.

O tronco do encéfalo faz parte do sistema límbico, região responsável por respostas reflexivas típicas de animais, como répteis e anfíbios. São reações que os seres humanos passaram a controlar com o desenvolvimento do neocórtex.

Difícil não pensar nas considerações de Rushkoff quando se olha para o atual cenário eleitoral nacional. É verdade que, em nossa história política, o predomínio do sistema límbico nunca foi exceção. Mas, talvez, nunca tenha havido tantos répteis agressivos, de um lado, e anfíbios oportunistas, de outro.