Doses maiores

21 de novembro de 2024

Trump e o ancestral racismo da América

“Make America Great Again”, brada Donald Trump. A tradução seria “Faça a América Grande Novamente”.

Para que não restem dúvidas sobre qual é a grandeza “americana” a que ele se refere, que tal lembrar as palavras de alguns daqueles que são considerados os maiores homens da história estadunidense.

Em 1785, Thomas Jefferson escreveu em “Notas sobre o estado da Virgínia”:

Sugiro, portanto, apenas como conjetura, que os negros, quer constituindo originalmente uma raça distinta, quer diferenciados pelo tempo e pelas circunstâncias, são inferiores aos brancos tanto física como mentalmente.


Em 1751, Benjamin Franklin publicou “Observações sobre o aumento da humanidade”, no qual manifestava sua contrariedade em relação ao tráfico negreiro pelas seguintes razões:

Por que incrementar o número dos filhos da África transportando-os para a América, onde nos é oferecida uma oportunidade tão boa de excluir todos os negros e escuros, e de favorecer a multiplicação dos formosos brancos e vermelhos?

Por fim, em  1858, durante campanha eleitoral em que disputava uma cadeira no senado, Abraham Lincoln declarou:

Existe uma diferença física entre as raças branca e negra que, em minha opinião, sempre impedirá que as duas raças vivam juntas em condições de igualdade social e política. E, na medida em que não podem viver dessa maneira, enquanto permanecerem juntas deverá existir uma posição de superioridade e uma de inferioridade, e eu, tanto quanto qualquer outro homem, sou a favor de que essa posição de superioridade seja conferida à raça branca.

Como se vê, Trump não representa nenhuma ruptura com a tradição histórica estadunidense e prova que a “América” jamais foi grande.

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14 de novembro de 2024

Capitalismo, uma serpente autofágica

“Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a nossa democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso”. Este é o título do mais recente livro da filósofa estadunidense Nancy Fraser.

“O verbo ‘canibalizar’, explica ela, significa privar um estabelecimento ou empreendimento de um elemento essencial para seu funcionamento a fim de criar ou sustentar outro”. E isso se assemelha, continua o texto, “à relação entre a economia capitalista e os territórios não econômicos do sistema: famílias e comunidades, habitats e ecossistemas, capacidades estatais e poderes públicos que têm sua substância consumida pela economia para inflar o próprio sistema”.

Para a autora, capitalismo se refere não a um tipo de economia, mas a um tipo de sociedade: “uma sociedade que autoriza uma economia oficialmente designada a acumular valor monetarizado para investidores e proprietários ao mesmo tempo em que devora a riqueza não economicizada de todos os demais”.

Para Nancy, a sociedade capitalista é como Ouroboros, mitológica serpente que se canibaliza engolindo a própria cauda. Criatura condenada a devorar sua própria substância. O resultado é a “crise generalizada de toda a ordem social em que todas as calamidades convergem, exacerbando-se entre si e ameaçando nos engolir por inteiro”.

São crises econômicas, mas também crises de cuidado, ecologia e política. Todas “absolutamente afloradas hoje, cortesia do longo período de comilança empresarial conhecido como neoliberalismo”.

O debate proposto por Nancy pretende “conectar a perspectiva marxiana a outras correntes emancipatórias da teorização crítica: feminista, ecológica, política, anti-imperialista e antirracista”. Sempre do ponto de vista anticapitalista. Uma contribuição importante e mais necessária do que nunca.

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13 de novembro de 2024

O fascismo e a violência corriqueira do capital

Rui Tavares, historiador português, político e colunista da Folha, lançou recentemente no Brasil o livro "Agora, Agora e Mais Agora". Reinaldo José Lopes, jornalista do mesmo jornal, o entrevistou em 09/11/2024. Abaixo, alguns trechos:

Se a democracia foi desenhada e pensada como um jogo no qual podemos nos opor uns aos outros, mas no qual sabemos que estamos limitados por determinadas regras, o que acontece com os nacional-populistas, com os neofascistas, podemos chamá-los por vários nomes, é que fundamentalmente eles têm uma atitude de insinceridade em relação ao jogo. Participam, mas não acreditam nele e querem acabar com ele.

Há cem anos, decidiram ser tolerantes com Hitler depois que ele passou alguns meses preso por uma tentativa de golpe de Estado. Ele acabou sendo libertado. Acreditou-se que o regime democrático, na Alemanha de então, era um recipiente vazio em que todas as posições deviam estar em pé de igualdade.

É impossível não pensar o que teria acontecido se a República alemã tivesse sido um pouco mais convicta e menos ingênua na defesa de seus valores. A democracia não se defende passivamente, e não podemos ficar de braços cruzados.

Para bom entendedor, meia palavra: Bolso...

Mas os recentes ataques ocorridos em Brasília parecem desmentir Tavares quando ele compara a democracia a um jogo. Seria melhor lembrar Clausewitz, que considerava a guerra como continuação da política por outros meios. Para os fascistas, porém, não há diferença substancial entre guerra e política. Esta última, para eles, apenas deve utilizar a mesma violência contra os de baixo que já faz parte do funcionamento corriqueiro da dominação capitalista.

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12 de novembro de 2024

VAT, 6x1 e capital canibal

A campanha pelo fim da escala de seis dias de trabalho por um de descanso (6x1) está bombando. Criada pelo vereador Rick Azevedo (PSOL-RJ) foi encampada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que está tentando transformá-la em Proposta de Emenda à Constituição.

A proposta faz parte do movimento liderado por Azevedo, chamado Vida Além do Trabalho (VAT). Os operários do século passado tinham seu próprio VAT. Lutavam pelas 8 horas diárias de trabalho. Dessa maneira, sobrariam 8 horas para descanso e 8 horas para educação, conscientização e organização.

Mas a ocupação estafante e criadora de valor para o capital nunca se resumiu às horas exploradas pelos patrões, através de vínculos formais ou não.

Vida além do trabalho também são as ocupações domésticas, cujo principal objetivo é garantir a reprodução e manutenção da força de trabalho a ser explorada pelos patrões.

Vida além do trabalho é a destruição da natureza, provocando imensos prejuízos ambientais para a grande maioria, gerando enormes lucros para uma ínfima minoria.

Vida além do trabalho era a escravização humana nas antigas colônias e a atual precarização nas periferias do mundo, assegurando ganhos astronômicos para o grande capital.

Essas e outras esferas vitais são canibalizadas pelo grande capital para além de qualquer limite, sem qualquer contrapartida, reposição, compensação, tributação. Depois do trabalho, o que sobra não chega a ser vida.

Não há vida que escape à infinita e voraz gula do capital. É o que ensina, por exemplo, Nancy Fraser, ao mostrar em seu recente livro “Capitalismo canibal”, como é urgente matar o capitalismo de inanição. Voltaremos a comentá-lo, em breve.

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11 de novembro de 2024

Como se desperta um demônio

Em 1936, George Orwell publicou “A caminho de Wigan Pier”, sobre as terríveis condições de trabalho dos mineiros ingleses. Mas o livro também denunciava os preconceitos de setores da esquerda contra a chamada classe média. Eis um trecho:

Economicamente, estou no mesmo barco com o mineiro de carvão, o operário braçal e o trabalhador rural; basta que alguém me lembre disso e irei lutar ao lado deles. Mas culturalmente sou diferente do mineiro, do operário braçal e do trabalhador rural; e, se você enfatizar esse aspecto, pode acabar me armando contra eles. Se eu fosse uma anomalia solitária, isso não teria importância, mas o que vale para mim vale para incontáveis outras pessoas. Cada bancário pensando no dia da demissão, cada lojista tentando se equilibrar à beira da falência estão essencialmente na mesma posição. Eles são a classe média que vai afundando, e a maioria deles se aferra à sua superioridade, sob a impressão de que ela os mantém com a cabeça fora d’água. Não é boa política já começar lhes dizendo que joguem fora o colete salva-vidas. Há um perigo óbvio de que nos próximos anos grandes faixas da classe média deem uma repentina e violenta guinada para a direita. Ao fazer isso, podem tornar-se uma força tremenda. Até agora a fraqueza da classe média sempre se baseou no fato de que esses cidadãos nunca aprenderam a se unir, mas, se os assustar de tal modo que eles acabem se unindo contra você, pode descobrir que despertou um demônio.

Mas, na época, o “demônio” já estava bem acordado e tinha nome: nazifascismo.

Leia também: Identidade, identitarismo e luta de classes

7 de novembro de 2024

A esperança escondida em uma bomba aérea

Em uma cidade do País Basco, durante a guerra civil iniciada pelo ditador Francisco Franco, uma bomba atingiu a praça central, mas nunca explodiu. Os moradores não ousaram movê-la, muito menos desarmá-la. Lá permaneceu por anos durante a ditadura Franco como um símbolo de morte, do poder do regime e do castigo para quem se rebelou.

Um dia, um dos habitantes decidiu remover o dispositivo sozinho. Mas logo muitos se juntaram a ele. A ideia era desarmar a bomba e levá-la para longe. Mas no lugar do detonador, encontraram um papel contendo algumas palavras escritas em alemão. Felizmente, havia uma pessoa que conseguiu traduzi-las: “Saudações de um operário alemão que não mata inocentes”, dizia o bilhete.

A partir daquele momento, decidiram manter a bomba na praça como símbolo da resistência, do fim do medo e do poder de um povo com consciência de classe. Tudo isso porque um trabalhador alemão arriscou a pele, em meio à ditadura nazista, e deixou claro que nem o medo nem o regime seriam capazes de torná-lo mais um monstro.

Se você vive sob regime fascista ou sob qualquer regime de morte e tem o estranho “privilégio” de ser empregado, recebendo um salário, dentro dele, você o sabota. Não precisa estudar ciências políticas para saber disso. Você precisa somente de sensibilidade e empatia, e de saber as consequências humanas das políticas que estão sendo aplicadas diante do seu nariz.

O relato acima é o resumo de um capítulo do livro “Pelo buraco da fechadura”, recém-publicado por Mário Prata. Mostra como é possível arrancar esperança dos momentos mais trágicos.

Leia também: A aposta da melancolia na emancipação coletiva

6 de novembro de 2024

Um papo reto sobre coisas muito tortas

“Problema é esquerda playboy, não pobre de direita”, essa afirmação de Paulo Galo, militante do movimento dos trabalhadores em aplicativos, deu título a uma recente entrevista concedida por ele ao portal UOL.

Galo referia-se ao livro “O pobre de direita”, recém-lançado por Jessé Souza. Segundo ele:

...não existe “pobre de direita”. Existe alienação. A alienação que afeta o pobre também afeta a classe média branca de esquerda. Ela é tão presa à sua própria bolha que só consegue dialogar consigo mesma.

A esquerda, diz Galo, ignora a “materialidade” da vida das quebradas periféricas. E para superar essa limitação, precisaria:

...chegar aqui na periferia, tomar uma cerveja e trocar uma ideia normal, do dia a dia. Tem um trabalho possível de ser feito aqui. Dá para cair dentro das necessidades e se conectar. Mas quem é que está fazendo isso? O problema é que a esquerda parece não saber fazer nada que não envolva voto.

Dentre as várias afirmações polêmicas, afirmou, por exemplo, que a esquerda se tornou legalista e que seus partidos representariam uma “luta com CNPJ”.

A entrevista despertou tanto a animosidade como a simpatia de setores da militância. Mas Lênin dizia que para endireitar uma vara torta para um lado, é preciso vergá-la para o outro. Por isso, muitas vezes exagerava na defesa de certas linhas políticas que nem eram tão corretas para enfraquecer uma orientação oposta, que considerava ainda mais danosa.

Galo não é nenhum Lênin. Mas procura chamar a atenção para o atual estágio da luta de classes, cuja materialidade contraditória não comporta o simplismo de respostas retas para tantos conflitos tortos.

Leia também:
A luta de classes no oco do mundo
Um pé na luta, outro no pedal

5 de novembro de 2024

De quem seria a culpa por um retorno de Trump?

“Não vai acontecer aqui” é um romance, de 1935, do escritor estadunidense Sinclair Lewis. Publicado durante a ascensão do fascismo na Europa, descreve a eleição de um senador fictício para Presidente dos Estados Unidos. Suas promessas de campanha incluíam reformas econômicas e sociais drásticas e o regresso ao patriotismo e aos valores tradicionais. Após a eleição, o novo presidente se torna ditador com a ajuda de uma implacável força paramilitar à semelhança das SS nazistas.

As informações acima são da Wikipédia.

Em 1931, três anos antes da publicação do livro de Lewis, “policiais de Los Angeles cercaram um parque público frequentado por latinos, prenderam 400 pessoas, todos de pele escura, enquanto o mesmo se repetia em hospitais, mercados, igrejas, clubes e associações. Em pouco tempo, mais de 1,8 milhão de mexicanos foram deportados por ordem do governo de Herbert Hoover – 60% com cidadania americana”.

O relato acima é da jornalista Dorrit Harazim. E o trecho abaixo é de um artigo de Vijay Prashad:

Em 1964, o marxista polonês Michał Kalecki escreveu o artigo “O fascismo de nossos tempos”. Nele, Kalecki disse que “embora não aprecie a ideia de grupos fascistas tomarem o poder, a classe dominante como um todo não faz nenhum esforço para suprimi-los e se limita a reprimendas por excesso de zelo”.

Essa atitude persiste até hoje: a classe dominante como um todo não teme a ascensão desses grupos fascistas, mas apenas seu comportamento “excessivo”, enquanto as seções mais reacionárias das grandes empresas apoiam financeiramente esses grupos.

Ou seja, se Trump voltar ao poder, os últimos na fila dos culpados serão os eleitores estadunidenses.

Leia também: Destino Manifesto: a doutrina genocida estadunidense

4 de novembro de 2024

A única maneira de um nazista ser bom

“O crime do bom nazista”, de Samir Machado de Machado é um dos semifinalistas do Prêmio Jabuti na categoria romance de entretenimento. Trata-se de uma trama policial em que se destaca a homoafetividade dos personagens principais.

Mas para além do fascinante desafio de desvendar a autoria de um crime, o leitor ou leitora ficam sabendo da terrível perseguição a que eram submetidos os homossexuais sob o regime nazista. Por exemplo, no seguinte trecho:

E Rudolf então lhe contou da carga de trabalhos exaustivos a que os prisioneiros homossexuais como eles eram submetidos, muito maior do que a de qualquer outro prisioneiro, pois era crença corrente que o trabalho duro os curaria. Contou dos estupros que ele e outros homossexuais estavam sofrendo, das surras, de ter os testículos mergulhados em água fervente, as unhas arrancadas, contou das coisas que lhes introduziam no ânus para divertimento dos guardas, algumas tão compridas que perfuravam seus intestinos e os faziam sangrar até a morte, contou daqueles que foram simplesmente espancados até morrer, enfim, de como eram tratados como a mais baixa das criaturas. Pois, aos olhos nazis, que cultuavam sobretudo a própria masculinidade, eles eram mais baixos até mesmo do que ciganos ou judeus.

Também somos informados de que o primeiro movimento homossexual de que se tem notícia surgiu na Alemanha no final do século 19, com a fundação do Comitê Científico-Humanitário, pioneiro mundial na organização dos homossexuais, resistindo até a ascensão nazista, em 1933.

Por fim, o livro nos obriga a concordar quando um de seus personagens afirma que o único bom nazista possível é o que está morto.

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31 de outubro de 2024

As rupturas que o capital nos impõe

Há uma série da TV Apple, chamada “Ruptura”, cuja sinopse oficial diz o seguinte: “Mark lidera uma equipe de funcionários cujas memórias foram cirurgicamente divididas entre vida profissional e pessoal...”.

A ideia pode render bons desdobramentos em termos de entretenimento. Se a pretensão, porém, é representar uma situação aflitiva, talvez não seja muito convincente. Afinal, tudo o que a maioria de nós desejaria é sair do trabalho e esquecer suas tarefas e responsabilidades. Mas isso não só não acontece, como cada vez mais nossa vida privada é invadida por incessantes demandas profissionais. Corpo e mente perseguidos e exauridos até muito depois do horário de trabalho.

Trabalho remoto em tempo integral e semanas com apenas um ou meio dia de folga vêm se tornando regra para muita gente. Seja trabalhando para desumanos empregadores humanos, seja para aplicativos transformados em capatazes cibernéticos. Ao mesmo tempo, nada nesse esforço todo garante a estabilidade da atividade ou melhor remuneração. Mudanças cada vez mais rápidas nos processos produtivos tornam descartável, barateiam e desqualificam nossa força de trabalho.

Por outro lado, talvez a série pudesse até servir como metáfora sobre a alienação do trabalho sob o capitalismo. Um fenômeno que está longe de ser recente, mas que nem por isso perdeu sua força, aprofundando a fragmentação e esvaziando de sentido a imensa maioria dos processos laborativos. Revelando a fissura entre aquilo que somos e o que fazemos. O primeiro sendo escravizado pelo segundo.

Mas ruptura pra valer é a que teríamos que construir em relação ao poder do capital.  E os caminhos para isso não estão disponíveis em nenhum streaming.

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30 de outubro de 2024

Um Marx não branco e periférico

Em 1703, aqueles sóbrios expoentes do protestantismo, os puritanos da Nova Inglaterra, por meio de decretos, fixaram uma recompensa de 40 libras por cada escalpo indígena e cada pele vermelha capturados; em 1720, fixou-se uma recompensa de 100 libras por cada escalpo; em 1744, depois que a Baía de Massachusetts declarou uma tribo como rebelde, estabeleceram-se os seguintes preços: pelo escalpo de um homem de 12 anos ou mais, 100 libras esterlinas; por um prisioneiro homem, 105 libras; por prisioneiros mulheres e crianças, 50 libras...

O trecho acima é do capítulo 24, volume 1, de “O Capital”. Foi citado no artigo Marx e os Povos originários, recentemente publicado por John Bellamy Foster, Brett Clark e Hannah Holleman. O texto demonstra como Marx denunciou firmemente toda a brutalidade do processo histórico que deu origem ao capitalismo e o mantém ainda hoje. Mas Marx também encontrou na organização social igualitária e solidária dos indígenas elementos fundamentais para inspirar a construção de uma sociedade radicalmente justa.

Não à toa, diz o artigo, Marx estudou obras como "As Raças Nativas dos Estados do Pacífico da América do Norte", de Hubert Howe Bancroft, sobre os indígenas do sudeste do Alasca e do noroeste do Pacífico. Também dedicou-se à leitura de pesquisas sobre os Delaware, Iroqueses, Mohegan, Cree, Chickasaw, Choctaw, Cherokee, Seminole, Dakota, Pawnee, Fox, Blackfoot e muitos outros povos indígenas. Sem falar nas investigações sobre a comuna russa e a história da Índia.

Ou seja, Marx foi um dos primeiros a entender que a luta pela emancipação universal da humanidade tem muito a aprender com sociabilidades não brancas e periféricas.

Leia também: Os idiomas artificiais e o extermínio das línguas indígenas

29 de outubro de 2024

Tarifa zero e luta de classes

O Brasil é líder mundial na implementação da tarifa zero, com 117 cidades e mais de 5 milhões de pessoas contempladas. Essas informações estão no artigo publicado na Folha por Giancarlo Moreira Gama, militante negro e LGBTQ+, vereador da cidade paulista de Cabreúva.

O auge da luta pelo passe livre foi em 2013. E vimos o que aconteceu. O movimento foi tratado como terrorismo pelas forças repressivas, contando com a ajuda até de governos petistas.

Então, o que mudou? Recente matéria da BBC lembra que a gratuidade implica o subsídio total da tarifa pelo poder público. Subsídio para quem? Para os empresários do setor.

O fato é que o alto custo das passagens esvaziou os ônibus. A precarização do trabalho uberizado tirou parte da classe média dos pontos. Para manter seus lucros, os empresários diminuíram a frota. Principalmente, nas periferias, onde mora grande parte dos eleitores. A jogada passou a ser gratuidade bancada pelo dinheiro público, gerando efeitos eleitoreiros e benefícios privados.

Luta de classes é isso aí. Sempre que podem, nossos inimigos se apropriam das bandeiras populares em proveito próprio. Por outro lado, até agora, nenhuma capital adotou a medida integralmente. Aí, os interesses e os ganhos ainda são graúdos demais para serem contemplados. 

Há muita luta pela frente, portanto. Uma delas é a criação de um Sistema Único de Mobilidade, que está em tramitação no Congresso por iniciativa de Luiza Erundina. É importante que os movimento populares pressionem não apenas por sua aprovação, mas pela garantia do caráter público e de participação popular na gestão do novo sistema. Inclusive, com sua estatização integral.

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25 de outubro de 2024

Ideologia burguesa: sucesso fácil e impossível

A pílula de ontem lembrou que a burguesia é a única classe dominante da história que fez do trabalho virtude. Mas faltou dizer que ela também é a primeira que também trabalha. Claro que trabalha explorando o esforço alheio, mas nunca entregou-se ao completo ócio como suas antecessoras.

Há, porém, outra característica que diferencia a burguesia de suas congêneres anteriores: a acirrada competição entre seus membros e setores.

Sim, os reis, imperadores e outros poderosos travaram grandes guerras entre si por territórios e riquezas no passado. Mas no caso da burguesia, a competição é intrínseca ao sistema e o reforça, levando à criação de imensos e poderosos monopólios. Com isso alimenta a ilusão de que cada pessoa pode se elevar por cima da massa para se tornar também ela toda poderosa. Seriam suficientes alguns lances espertos temperados com sorte para chegar lá.

Basta uma grande ideia para um negócio, um serviço diferenciado, uma startup inovadora e até jogos de azar. Antes eram as casas lotéricas e os caça-níqueis nos bares. Agora, a fortuna também está ao alcance dos dedos nas “bets” eletrônicas.

Alguém disse que tem sido mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Até porque o segundo está providenciando o primeiro. Mas o mesmo poderia valer para a contagiante ilusão do trabalho com resultados individuais fantásticos imposta pela ideologia dominante.

A vitória da ideologia burguesa é evidente quando é mais fácil um explorado se imaginar milionário dependendo do próprio esforço e da sorte do que juntando-se a milhões de seus iguais para buscar a emancipação e a dignidade coletivamente.

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24 de outubro de 2024

Trabalho, luta de classes e conversa fiada

A sociedade capitalista é a única sociedade dividida em classes na história em que a classe dominante fez do trabalho virtude. A burguesia nasceu da plebe trabalhadora, mas é aquela pequena parte dela que conseguiu se apropriar dos meios de produção. O restante tornou-se massa proletária a ser explorada.

Essa diferenciação foi vendida como vitória de uma parte do povo sobre a outra. Mas pobres que reunissem certas qualidades e se esforçassem poderiam vencer por mérito próprio. Era o mito da meritocracia, melhor apenas que os mitos do poder e riqueza concedidos por hereditariedade ou por vontade divina.

Ou seja, na sociedade capitalista o trabalho transformou-se em razão de ser da grande maioria das pessoas, de alto a baixo. Ter um emprego, uma ocupação, uma fonte de sustento a partir do próprio esforço tem importância fundamental na vida contemporânea.

Mas o conceito de trabalho acima só tem esse sentido no capitalismo. Marx entendia o trabalho como elemento essencial da espécie humana. É através dele que transformamos a natureza e a nós mesmos. Essa condição pode atribuir ao trabalho um caráter emancipatório, desde que deixe de intermediar a exploração de uns pelos outros e justificar a opressão dos segundos pelos primeiros.

Enquanto a humanidade não conferir esse caráter libertador ao trabalho continuaremos a sofrer com suas terríveis negatividades.

O arrazoado acima é só para lembrar que todos os problemas e contradições sociais que vivemos atualmente têm origem na esfera do trabalho. São produto da luta de classes. Inclusive, disputas eleitorais como as que enfrentamos hoje contra o fascismo. O resto é conversa fiada de coach charlatão.

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23 de outubro de 2024

Aquiles, Escamandro e os deuses do capitalismo

Em “A Ilíada”, de Homero, Aquiles é o combatente invencível, lutando ao lado dos gregos contra Troia. Mata a todos sem dó ou vacilação, até que encontra pela frente Escamandro.

Escamandro é um rio-deus. Na mitologia grega, os rios eram considerados entidades poderosas e sagradas. Como as águas de Escamandro banhavam Troia, a divindade também protegia os troianos. Aquiles despertou a fúria de Escamandro não apenas pelos inúmeros corpos de troianos que jogou em suas águas. Os cadáveres também as poluíam, matando peixes e outros seres vivos.

A batalha entre Aquiles e Escamandro é um dos momentos mais dramáticos da Ilíada. O deus-rio, enfurecido, tenta afogar Aquiles, acrescentando a suas águas as dos afluentes e riachos próximos. Pela primeira vez, o invicto herói grego se viu em apuros. Mas Aquiles é filho da deusa Tétis e protegido de Hera, mulher de Zeus. Contra uma retaguarda dessa, o rio-deus não tinha a menor chance. As deusas convocaram Hefesto e o deus do fogo fez as águas de Escamandro ferverem e evaporarem, garantindo a vitória a Aquiles.

Mas deixemos a mitologia de lado, por um momento, para destacar a seguinte notícia: “Banco do Brasil, Bradesco e Itaú Unibanco lideram ranking global de financiamento antiambiental. Maior parte do crédito liberado, explica a matéria, é destinada para as indústrias da soja e da pecuária bovina, setores com amplo histórico de violações socioambientais na Amazônia e no Cerrado brasileiro”.

Aí estão as causas das frequentes inundações catastróficas e queimadas calamitosas. No lugar de brigarem entre si, como na mitologia, os deuses do capitalismo se unem na promoção do apocalipse planetário.

Leia também: O ecossocialismo contra a barbárie do Antropoceno

21 de outubro de 2024

O ecossocialismo contra a barbárie do Antropoceno

Para Lênin, o militante socialista tinha que ser, antes de tudo, um “tribuno do povo”. Ou seja, ser alguém “capaz de reagir a qualquer manifestação de tirania e opressão, não importa onde apareça, nem qual seja a classe das pessoas atingidas por ela”.

Nos tempos atuais, os socialistas precisam ser também tribunos do meio-ambiente, diz Ian Angus, em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”.

Marx dizia que as pessoas não mudam a si mesmas e depois mudam o mundo. Elas mudam a si mesmas, mudando o mundo, afirma Angus. Mas não existe revolução em que todos ganham. Numa verdadeira revolução, diz ele, aqueles que têm poder e privilégios na velha sociedade devem perdê-los na nova.

Marx e Engels advertiram: a luta de classes conduzirá ou a “uma reconstituição revolucionária da sociedade em geral” ou à “ruína comum das classes em conflito”. No Antropoceno, a ruína comum, a destruição da civilização, é uma forte possibilidade. Por isso, o autor defende um movimento com um programa ecossocialista que faça a ligação entre a raiva espontânea de milhões de pessoas e o início de uma transformação ecossocialista.

Se lutarmos, podemos perder. Se não lutarmos, perderemos, diz ele. A sorte ou o acaso podem desempenhar um papel, mas uma luta consciente e coletiva para deter o trem infernal do capitalismo é a nossa única esperança para um mundo melhor.

Por fim, Angus cita Gramsci, para quem era urgente “deter a dissolução que corrói as raízes da sociedade humana”. Somente assim, a “árvore nua e estéril pode tornar-se verde novamente”.

Esta pílula encerra a série sobre a obra de Angus.

Leia também: A União Soviética se rende ao capitalismo fóssil

18 de outubro de 2024

A União Soviética se rende ao capitalismo fóssil

Segundo Ian Angus, em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”, no início da década de 1930, a União Soviética era líder mundial em ciência ecológica e legislação ambiental. Foi o primeiro país a criar grandes áreas de conservação e um dos pioneiros na proibição da caça de espécies ameaçadas de extinção.

Havia forte apoio para cientistas como Vernadsky, que desenvolveu a teoria da biosfera, e Vavilov, primeiro a traçar as origens genéticas das principais plantas alimentícias do mundo. Tragicamente, diz Angus, o estalinismo abandonou a visão marxista do socialismo como desenvolvimento humano sustentável. Para superar o capitalismo, o regime adotou um modelo de industrialização acelerada, desprezando os custos humanos e ambientais.

Para citar apenas um exemplo, na década de 1960, as autoridades soviéticas lançaram um enorme projeto de desvio de rios que desaguavam no Mar de Aral para irrigar plantações de algodão. As novas safras tornaram a União Soviética o segundo maior exportador mundial do produto. Mas, em 1989, o Aral, que era o quarto maior corpo de água do mundo, tinha sido reduzido a menos de 10% do seu tamanho original.

Na década de 1980, a União Soviética tornou-se o segundo maior emissor mundial de gases com efeito estufa. A legislação ambiental soviética era excelente no papel, mas não evitou que o país sucumbisse ao capitalismo fóssil, tal como aconteceu com as outras potências da época.

Os fracassos ambientais do Bloco Soviético no século 20 demonstram porque a ecologia deve ter um lugar central na teoria, no programa e nas atividades socialistas, conclui o autor.

Lei também: No capitalismo fóssil, Hades no comando

No capitalismo fóssil, Hades no comando

Há uma grande polêmica entre os geólogos para saber se estamos vivendo atualmente na idade do Holoceno ou do Antropoceno. Este último período seria caracterizado pelo papel decisivo das ações humanas nas grandes transformações que o planeta vem sofrendo há quase um século.  

Mas apesar da resistência de cientistas mais conservadores, as evidências em favor do Antropoceno são cada vez maiores. Por exemplo, entre 19 e 24/09/2024, as queimadas transformaram o sudoeste da Amazônia na região que mais emitiu gases de efeito estufa no planeta. Ao mesmo tempo, na floresta mais úmida do mundo falta água, morrem os peixes e a população pobre passa fome.

Um recente estudo publicado na revista “Nature Ecology & Evolution” mostra que Austrália, Canadá, Chile, Portugal, Indonésia, Sibéria e o oeste dos Estados Unidos estão entre os lugares mais afetados por incêndios florestais nos últimos anos.

Difícil esconder as marcas sujas das digitais do capitalismo fóssil nisso tudo.

O primeiro período geológico da terra é chamado de "Hadeano", inspirado em Hades, o deus do submundo dos mortos na mitologia grega. O nome refere-se às condições infernais que prevaleciam na Terra primitiva. O planeta acabara de ser formado e sua superfície ainda estava derretida com lava superaquecida e temperaturas altíssimas.

Bom, é possível que a polêmica entre defensores do Holoceno e do Antropoceno dê lugar ao debate para saber se vamos viver novo período infernal no planeta. Mas diferente do anterior, já não seria o poderoso deus grego o responsável. No lugar de Hades, o filho de Cronos, estaríamos sob o domínio de demônio Fóssil, criatura do diabólico Capital.

Leia também: Os palavrões do Antropoceno

16 de outubro de 2024

A luta de classes no oco do mundo

Rosana Pinheiro-Machado é uma antropóloga que vem realizando estudos de campo com moradores da periferia das grandes cidades há mais de uma década. Em entrevista à revista eletrônica CTXT, ela afirma que suas pesquisas indicam “fortes evidências de que os setores que escaparam à pobreza apoiam políticos autoritários. A insuficiência do setor público e a precariedade do mercado de trabalho, diz ela, proporcionam o cenário perfeito para que figuras conservadoras do marketing digital se tornem novos líderes políticos”. Segundo Rosana, muitas pessoas entram nessa lógica porque querem melhorar de vida, mas acabam caindo em redes de extrema-direita.

Citando Pablo Marçal, a antropóloga lembra que ele “conhece todas as técnicas populistas. Domina redes, algoritmos, invade o cérebro das pessoas, estuda neurolinguística”. E exemplifica destacando uma frase em que Marçal se referia a Guilherme Boulos: "O outro lá invade terrenos. Eu invado cérebros. Entro no cérebro da pessoa, faço ela ficar com raiva e depois pulo para o outro lado".

Marçal utiliza técnicas capazes de atrair pobres e remediados. Transforma milhões de frustrados pelas falsas promessas de prosperidade em pessoas socialmente egoístas e selvagens. Ocupa a vida oca dos ressentidos, os enfurece e pula “para o outro lado”.

E deste lado, ficamos nós, entregando pacotes vazios, etiquetados com palavras abstratas como “austeridade”, “responsabilidade fiscal” e “união nacional”. Não à toa, a raiva sentida pela maioria pobre da população se transforma em votos conservadores e em mobilização fascista.

Marçal, Bolsonaro e outras lideranças canalhas só fazem o que boa parte da esquerda deixou de fazer: travar a luta de classes bem no meio do oco do mundo.

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15 de outubro de 2024

Os palavrões do Antropoceno

Muito do que parece ser resultado das alterações climáticas é, na verdade, promovido por políticas de racismo e exclusão incorporadas à lógica do capitalismo fóssil. É assim que Ian Angus introduz o conceito de “exterminismo” em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”.

Em 1980, o historiador inglês E. P. Thompson, diz ele, criou o termo “exterminismo” para descrever as possíveis consequências da corrida nuclear.

Mas Angus prefere citar o escritor estadunidense Stan Goff, que utiliza o conceito de Thompson em seu relato sobre o Katrina, desse modo: “O exterminismo é a aceitação explícita ou não de mortes em massa como preço a ser pago pela preservação do poder econômico e político da classe dirigente. O exterminismo não se caracteriza por ações ofensivas, mas, frequentemente, ocorre por negligência calculada. Seus instrumentos são pobreza, doença, subnutrição e catástrofes ‘naturais', geralmente facilitadas pelo isolamento econômico e deslocamento populacional em massa”.

Nos dias que se seguiram ao furacão Katrina, em 2006, várias centenas de pessoas, incluindo bebês de colo e idosos cadeirantes, tentaram deixar Nova Orleans atravessando uma ponte para Gretna, cidade do outro lado do Rio Mississipi. Mas a força policial da localidade impediu o acesso, disparando tiros para o ar. As autoridades locais não permitiriam a entrada de “desabrigados” negros em Gretna.

Portanto, não surpreende o fato de que 46% dos moradores das áreas mais atingidas pelo Katrina fossem negros, em comparação com os 26% das áreas sem maiores estragos.

Antropoceno e exterminismo são dois conceitos malditos criados pela sociedade industrial. Precisamos nos livrar do capitalismo fóssil, para que nunca mais precisemos usar palavrões como esses.

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14 de outubro de 2024

A esfinge dialética: decifra-me, enquanto te devoro

A última pílula citou as formulações de Marx e Gramsci para mostrar que o senso comum é um emaranhado contraditório, constantemente atravessado por valores e preconceitos da ideologia dominante.

Apesar disso, boa parte da esquerda insiste em culpar a população pela confusão ideológica que vem garantindo seguidas vitórias à extrema-direita. Uma atitude metafísica que, a rigor, equivale a culpar a própria realidade.

Diante dessa situação, perguntava a última pílula, “o que fazer?”. Claro que não há resposta pronta para essa questão. Assim como não havia nada de universal ou definitivo na famosa resposta formulada por Lênin. Afinal, ele mesmo dizia que suas propostas eram produto “da análise concreta de situações concretas”.

A compreensão sobre o funcionamento e a dominação no capitalismo contemporâneo está presente em muitos estudos e pesquisas bastante precisos, sofisticados e de grande qualidade acadêmica.

Mas se todo esse acúmulo crítico não produzir efeitos transformadores na vivência concreta dos explorados e oprimidos, torna-se inútil. Marx, Engels, Gramsci, Lênin eram grandes teóricos, mas sua prioridade era a transformação da realidade, não apenas sua apreensão.

Nossa abordagem da realidade dos explorados e oprimidos é limpa, mas superficial. A da extrema-direita chafurda, mas pavimenta com eficiência o caminho da barbárie.

Os enigmas da luta de classes só se deixam revelar nos terrenos onde assumem toda sua radicalidade. É lá que a dialética costuma se apresentar como a esfinge que nos desafia a decifrar seu mistério dizendo: "Decifra-me, enquanto te devoro".

A esquerda precisa encontrar um modo de responder a esse desafio urgentemente. Se continuarmos perdidos em nossas abstrações, acabaremos sendo tragicamente devorados pelo enigma.

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12 de outubro de 2024

Maçaroca ideológica e realidade contraditória

O vereador do PSOL mais votado no Rio de Janeiro foi Rick Azevedo, defendendo redução da jornada de trabalho. Ótimo. Mas ele também declarou que a CLT é um regime de escravidão.

Muitos de nós consideram esse raciocínio extremamente contraditório. Mas desde que o marxismo surgiu, uns 170 anos atrás, temos elementos suficientes para saber que, muitas vezes, a realidade que é contraditória.

E se isso não bastasse, ainda é possível contar com a ajuda da obra que Antônio Gramsci iniciou há mais de 100 anos. Segundo o revolucionário italiano, a ideologia dominante é formada por uma maçaroca de concepções de mundo, misturando religião, filosofia, valores tradicionais e modernos, crenças e preconceitos etc. Mas nem por isso, ela é imutável ou monolítica, sofrendo metamorfoses que se adaptam às necessidades da luta de classes.

Carteira assinada, empreendedorismo liberal, teologia da prosperidade, livre comércio, imprensa livre, conservadorismo de costumes, autoritarismo, fundamentalismo religioso, estado mínimo, corporativismo sindical...

Todos esses valores hegemônicos conflitantes e até opostos entre si convivem bem porque correspondem às contradições da própria realidade. E quando os choques se tornam agudos a ponto de ameaçar a ordem dominante entra em cena o elemento de coerência nesse aparente caos: a dominação burguesa e seu aparato de repressão.

Sempre que ignora esse elemento de coerência, a esquerda acaba culpando ou o povo ou a burguesia. Culpar o primeiro é abrir mão da disputa política e contra-hegemônica. Culpar a segunda, é pedir ao inimigo para pegar leve. Ambas as atitudes implicam abdicar da verdadeira transformação social.

O que fazer, então? Fica para a próxima pílula

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11 de outubro de 2024

O Titanic das catástrofes ambientais

Estima-se que 90% do comércio mundial é feito por navios que emitem anualmente mais gases de efeito estufa que 205 milhões de automóveis. Se esses cargueiros fossem um país, seriam o sexto maior emissor, ficando logo abaixo do Japão e acima da África.

Mas esse não é todo o problema. Quem afirma que na crise ambiental estamos todos no mesmo barco, ou está enganado ou está enganando. Muitos cargueiros dos países ricos, por exemplo, despejam seu lixo em águas de países periféricos para cortar custos logísticos e ambientais.

A imensa maioria das vítimas de catástrofes ambientais estão nos países dependentes e 75% delas são mulheres. Os países mais pobres, principalmente os que ficam ao sul do Saara, na África, são os mais atingidos. Dentro de cada nação, os mais pobres, mulheres, crianças e idosos têm maior probabilidade de perder suas casas e meios de subsistência devido às alterações climáticas. Também têm mais chances de morrer.

Cada vez mais, a divisão não é apenas entre ricos e pobres, ou conforto e pobreza: é entre sobrevivência e morte.

Continuamos navegando em nosso Titanic enquanto ele se dirige lentamente rumo a um mar escuro e ameaçador. Os marinheiros entram em pânico e aqueles que pagaram passagens mais baratas já começam a cair na água.

Como diz a escritora Arundhati Roy:

Os ricos ficam despreocupados ao saber que os botes salva-vidas são reservados aos passageiros de sua classe. E a tragédia é que eles provavelmente estão certos.

Os dados e argumentações acima estão no livro “Enfrentando o Antropoceno”, de Ian Angus.

Leia também: Capitalismo fóssil: só danos, sem redução

9 de outubro de 2024

Nas periferias, CLT é coisa de otário

“Quero ser Pablo Marçal: por dentro da arriscada indústria que promete fabricar milionários”. Este é o título de uma ótima reportagem da BBC, publicada em 02/10/2024.

A matéria divulga conclusões de uma pesquisa da University College Dublin (UCD) feita durante dois anos, junto aos 500 maiores influenciadores de marketing digital do Brasil. A análise incluiu também um milhão de pessoas que fizeram algum dos cursos desses influenciadores, ou manifestaram interesse em fazê-los. O trabalho foi coordenado pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora titular da UCD.

Segundo o levantamento, 13 milhões de pessoas “estão empreendendo no Instagram hoje no Brasil, por meio das contas comerciais”. Mas Rosana estima que a quantidade de gente usando o Instagram para vender algum produto no País hoje é muito maior, girando em torno de 25 milhões.

Os dados revelam a maneira como a maior parte dos influenciadores opera e seus padrões de discurso, que incluem a aversão ao emprego formal regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e críticas à formação superior.

"A lógica da pessoa querer ser chefe de si mesma, em um país onde muitos empregos estão marcados pela lógica da humilhação, é muito libertadora", afirma a antropóloga.

Quem mora nas periferias e bairros pobres das grandes cidades brasileiras não se surpreenderia com muitas dessas conclusões. Nesses lugares, chamar alguém de CLT é o mesmo que xingar de otário.

Tudo isso tem muito a ver com as recentes ofensivas da extrema direita e com a grande votação de Pablo Marçal para a prefeitura de São Paulo. Mas voltaremos ao tema em algumas das próximas pílulas.

Leia também: A economia idiota dos exploradores

8 de outubro de 2024

Capitalismo fóssil: só danos, sem redução

Desde o século 19, a relação entre o crescimento do capitalismo e o aumento das emissões de gases de efeito estufa tem sido muito estreita. Esses gases liberam muito carbono na atmosfera devido ao uso excessivo de combustíveis fósseis.

Combustíveis fósseis estão presentes na produção de alimentos, roupas, moradias, aquecimento, remédios, transporte, comunicações, entretenimento e muito mais. O capitalismo nasceu e sempre foi fóssil, afirma Ian Angus em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”.

Estudos realizados por diversos grupos ambientalistas demonstram que é perfeitamente plausível uma transição completa para combustíveis renováveis e sem carbono. Mas a um custo estimado em US$ 100 trilhões. Muito caro?

Durante a Segunda Guerra, foram produzidos cerca de 6 mil navios, 850 mil aviões, 5 milhões de tanques, 8 milhões de armas de grande porte e as bombas atómicas. Tudo em apenas seis anos e ao custo de muitos trilhões de dólares. O mesmo esforço poderia ser feito em relação à troca das matrizes energéticas? Sim, mas não sob o capitalismo.

O fato é que os combustíveis fósseis são a força motriz que garante ao capitalismo lucros nos níveis necessários para sua reprodução. O problema é que essa reprodução beneficia apenas uma pequena maioria e ainda causa os mais terríveis efeitos colaterais para o restante de nós. É só olhar em volta para constatar isso.

O capital é viciado em lucros e dependente de petróleo, gás e carvão. Mas quem sofre com essa relação patológica é a imensa maioria da humanidade. Ficamos com cada vez mais danos, sem qualquer redução. O capitalismo é uma droga de que precisamos nos livrar urgentemente.

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7 de outubro de 2024

Mafalda: atual aos 60 anos

Em 29 de setembro de 1964, as primeiras tirinhas de Mafalda faziam sua estreia na Argentina. Quino, seu criador, as publicaria até 1973, período em que o país esteve sob domínio da ditadura militar. Em clima de grande repressão e censura, a personagem logo se tornaria símbolo de resistência bem-humorada, sutil e inteligente.

Em uma das tirinhas, por exemplo, Mafalda se depara com uma criança e diz: ‘Oi! Como você é pequeninha! Qual é seu nome?”. “Liberdade”, ela responde.


Um assunto que também era importante aparece na tira publicada acima. Infelizmente, as guerras continuam e vêm se tornando ainda mais destrutivas.

Mas o desenhista também abordava questões como o meio ambiente, o machismo e o consumismo. Temas que ganhariam maior destaque muito tempo depois.

É o caso da ecologia. No início dos anos 1970, era uma preocupação restrita a pequenas comunidades acadêmicas e alternativas. Em uma de suas ilustrações, Quino mostra um globo terrestre rodeado de remédios. Mafalda, ajoelhada ao lado dele, usa um termômetro para medir sua temperatura. Os sintomas do aquecimento global já apareciam nos desenhos do artista argentino, muitos anos antes de se tornarem preocupação generalizada.

A denúncia do machismo aparece em cenas que trazem a mãe de Mafalda escravizada aos afazeres do lar, enquanto pensa com tristeza na carreira profissional que deixou para trás.

Em outro momento, Mafalda assiste à TV, que dispara apelos consumistas como “Use”, “compre”, “beba”, “coma”, “experimente”! “Eeeei! reage a menina, o que eles pensam que nós somos?”. Assustada, ela mesma responde: “Eles sabem quem nós somos!”. Muitas décadas atrás, Quino parecia adivinhar o poder dos algoritmos.

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4 de outubro de 2024

O ambientalismo militar dos Estados Unidos

Em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”, Ian Angus informa que o orçamento militar dos Estados Unidos em 2013 foi de 1,7 bilhões de dólares. Cerca de 130 vezes mais do que os gastos com programas humanitários ou com medidas de prevenção contra as alterações climáticas.

É impossível determinar o impacto dos gastos bélicos estadunidenses sobre as alterações climáticas, porque as emissões militares foram excluídas do Acordo de Quioto. Mas estima-se que um milhão de barris de petróleo por dia é “um número seguro e até conservador”. Isso seria suficiente para aumentar o total das emissões dos Estados Unidos em escandalosos 5%.

Basta dizer que 70% do peso de todos os soldados, veículos e armas norte-americanos compõe-se de derivados de combustível fóssil. Ou seja, o exército estadunidense é altamente inflamável. Principalmente quando suas bombas incendeiam cidades, aldeias e vilarejos pelas periferias do mundo.

Mas o governo estadunidense está preparado para os problemas ambientais desde 2003. Durante a administração Bush, o Pentágono fez um estudo intitulado “Um cenário abrupto de mudanças climáticas e suas implicações para a segurança nacional”. Segundo o documento, os Estados Unidos provavelmente poderiam sobreviver a ciclos de cultivo menores e condições climáticas adversas sem perdas catastróficas. Desde que as fronteiras sejam reforçadas em todo o país para conter imigrantes famintos indesejados vindos do Caribe, México e América do Sul. E o fornecimento de energia seja reforçado através de alternativas como energia nuclear, energias renováveis, hidrogénio e contratos exclusivos com o Oriente Médio.

Claro que tudo isso vai depender de muita força bélica. Ou seja, o militarismo estadunidense tanto causa como reforça o apocalipse ambiental.

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2 de outubro de 2024

O efeito estufa e o sufocamento machista

Eunice Newton Foote foi uma cientista e militante feminista estadunidense. Foi a primeira pesquisadora a concluir que certos gases aqueciam quando expostos à luz solar, e que o aumento dos níveis de dióxido de carbono mudaria a temperatura atmosférica, podendo afetar o clima. Um fenômeno conhecido atualmente como efeito estufa.

Falecida em 1888, suas contribuições caíram no esquecimento por mais de cem anos. Até o século 21, a descoberta do efeito de estufa era atribuída a John Tyndall. Mas Eunice publicou os resultados de sua pesquisa em 1856, três anos antes de Tyndall divulgar seu trabalho. Sendo que Eunice nem era uma cientista profissional, realizando seus experimentos movida pela curiosidade e guiada por seu talento.

Nascida em Connecticut, Eunice foi criada em Nova York, centro dos movimentos sociais e políticos da época, como o abolicionismo e a luta por direitos para as mulheres. Em 1848, participou da Convenção de Seneca Falls, a primeira sobre direitos das mulheres realizada nos Estados Unidos. Eunice e Elisha, seu marido, foram signatários da Declaração de Sentimentos aprovada no evento, exigindo direitos sociais e legais iguais aos dos homens, incluindo o direito ao voto.

As informações acima são da Wikipedia. Como se pode ver, não bastassem graves problemas como aquecimento global e negacionismo climático e científico, ainda há o sufocamento machista imposto às mulheres. É desse modo que se asfixia a inteligência de metade da humanidade para preservar os mitos sobre a superioridade intelectual masculina.

Como disse, certa vez, o educador Mario Sérgio Cortella: “O contrário do machismo não é o feminismo. O contrário do machismo é a inteligência”.

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1 de outubro de 2024

A economia idiota dos exploradores

“É a economia, idiota”. Esta frase ficou famosa nas eleições presidenciais estadunidenses de 1992. Foi dita por James Carville, estrategista da campanha de Bill Clinton contra George Bush.

Na época, a reeleição de Bush parecia garantida graças à rápida vitória estadunidense na primeira Guerra do Golfo e ao fim da União Soviética. Mas a recessão econômica que castigava o país levou os eleitores a escolher Clinton.

Algo semelhante, mas invertido, parece estar ocorrendo nas atuais eleições municipais brasileiras. O desemprego está baixo, a renda aumentou, as projeções de crescimento do PIB subiram e a inflação quase zerou, em agosto.

Apesar disso, o PT patina nas projeções das eleições municipais. Nas capitais, por exemplo, não há nenhum favorito petista. Há várias explicações para isso, incluindo o apoio a candidaturas de terceiros devido a alianças julgadas necessárias para a “governabilidade”.

Mas, talvez, o problema seja o modo como se costuma entender a economia. Muitos a veem de forma reducionista, matemática, de curto prazo. Uma concepção que interessa aos poderosos.

Um dos criadores da economia política clássica e herói de muitos neoliberais é Adam Smith. Mesmo para ele, porém, a dimensão moral é fundamental para compreender os fenômenos econômicos. Esse tipo de reflexão aparece em sua obra “A Teoria dos Sentimentos Morais”, que os neoliberais preferem ignorar.

O problema é que a esquerda também teima em agarrar-se à macroeconomia abstrata do capital. Com isso, deixa a direita à vontade para defender seus valores conservadores e reacionários na realidade cotidiana de milhões de explorados que lutam para sobreviver.

É a economia, sim. Mas não a economia idiota dos exploradores.   

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30 de setembro de 2024

Fredric Jameson, arqueólogo do futuro

Fredric Jameson, falecido recentemente, foi um teórico marxista estadunidense, cujas obras abordaram, principalmente, a cultura contemporânea.

Em "Arqueologias do Futuro", livro voltado para a ficção científica, ele afirma que uma das funções supremas desse gênero seria o “estranhamento” no sentido brechtiano.

O “estranhamento” proposto pelo teatro de Brecht busca distanciar o espectador da ação dramática. Incentivar nele uma atitude crítica e reflexiva em relação ao que está sendo representado. Exemplo dessa concepção são os famosos versos do dramaturgo alemão:

...em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.

As obras de ficção científica, afirma Jameson, nos fazem medir “a distância entre a capacidade criativa da mente individual e a plenitude imprevisível e inesgotável da história como aventura humana coletiva”. Ao mesmo tempo, “a suprema incapacidade do escritor em criar um universo genuinamente alternativo acaba nos trazendo de volta a este com muito mais segurança”.

O autor lembra a frase tristemente célebre da campeã do neoliberalismo Margareth Thatcher, ao defender a inevitabilidade do capitalismo: “Não há alternativa”. O que Jameson via na ficção científica é exatamente a
incessante busca por alternativas.

Para ele, as melhores manifestações desse gênero promovem “uma renovação chocada da nossa visão que mais uma vez, e como que pela primeira vez, nos permite perceber a sua historicidade e a sua arbitrariedade. A sua profunda dependência dos acidentes da aventura histórica da humanidade”.

A obra de Jameson é uma aposta na utopia brechtiana contra o cinismo thatcheriano, esse lado sombrio da força que esconde e alimenta as distopias fascistas.

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27 de setembro de 2024

Antropoceno e luta de classes

Segundo Ian Angus em seu livro “Enfrentando o Antropoceno”, desde o início da Revolução Industrial, o Antropoceno já era uma possibilidade. Mas só se tornou realidade na segunda metade do século 20, quando a utilização do carbono expandiu-se repentinamente além do ponto de retorno.

A adoção geral de carvão, porém, não foi um processo somente tecnológico. No início dos anos 1800, o sistema fabril resumia-se, basicamente, à fiação e tecelagem, cuja força motriz eram moinhos d'água. Desse modo, era preciso instalar as fábricas perto de corredeiras ou cachoeiras, geralmente em áreas rurais, onde o número de trabalhadores disponíveis era pequeno.

Os moinhos a vapor, por outro lado, podiam ser instalados em cidades, perto de um grande número de trabalhadores e onde a presença de um exército de desempregados ajudava a enfraquecer a resistência operária.

Além disso, os navios e trens movidos a carvão permitiram que a Grã-Bretanha e seus rivais continentais tomassem o controle de territórios na Ásia, África e Oriente Médio que há muito resistiam à conquista.

Em 1910, Winston Churchill usou o exército para acabar com greves nas minas galesas, que eram a única fonte de carvão com a qualidade necessária para os navios de guerra. Mas quando assumiu o comando da marinha no ano seguinte, imediatamente Churchill iniciou um programa para converter os navios de guerra para petróleo. A nova fonte de energia permitiu ao governo se libertar das reivindicações dos mineiros de carvão.

Como se vê, as mudanças tecnológicas têm fortes componentes ligados a luta de classes, colonialismo e imperialismo. No Antropoceno, mais do que nunca, tecnologia rima com ideologia.

Leia também: A fenda irreparável do Antropoceno capitalista

26 de setembro de 2024

Bets, tigrinho, Uber e Marçal no selvagem jogo neoliberal

"Beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bi em bets em agosto”, segundo uma análise feita pelo Banco Central divulgado pela Agência Brasil. O valor corresponde a 20% do total mensal pago pelo programa.

Enquanto isso, um estudo da Unicef mostra que 22% dos adolescentes entrevistados afirmam ter apostado em jogos de azar pela primeira vez aos 11 anos ou menos. A maioria começou aos 12 anos ou mais (78%).

Em junho passado, o Ministério Público de São Paulo identificou perfis de influenciadores mirins, entre 6 e 17 anos, que promovem sites de apostas disponibilizando links de acesso para crianças e adolescentes. Com destaque para o malfadado jogo do Tigrinho.

Notícia estampada hoje no Globo: “Campeonatos de ‘cortes’ organizados desde dezembro pelo ex-coach Pablo Marçal (PRTB), e que seguiram em atividade na campanha à prefeitura de São Paulo, renderam a ele até 650 milhões de visualizações nas redes sociais por edição”.

Os elementos acima parecem ser sintomas de uma terrível epidemia social sem outra explicação, além da malandragem de aproveitadores da fé popular em jogos azarados. Mas o neoliberalismo é sério candidato a causa determinante da doença. Uma forte evidência é recente decisão do Tribunal Superior do Trabalho, afirmando que a Uber promove a “gamificação do trabalho”, ao premiar ou punir os prestadores de serviço como em um videogame.

Sob o império do neoliberalismo, a competição assumiu valor absoluto, desbancando definitivamente valores como solidariedade e colaboração. O jogo deixou de ser a atividade lúdica que reforça a coesão social para se tornar uma disputa selvagem buscando a eliminação sumária de adversários.

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25 de setembro de 2024

A fenda irreparável do Antropoceno capitalista

Em “O Capital”, Marx procurou mostrar como os imperativos do crescimento capitalista inevitavelmente entram em conflito com as leis da natureza. A economia capitalista, escreveu, não pode "fazer nada melhor com os excrementos produzidos por 4,5 milhões de londrinos do que poluir o Tâmisa a um custo monstruoso".

Marx considerou tais fenômenos como "uma fenda irreparável no processo interdependente do metabolismo social e natural". Abaixo, alguns exemplos dessa “fenda irreparável”:

- Em 1925, eram necessárias dezesseis semanas para criar uma galinha de 2,5 kg. Hoje, são apenas seis semanas para criar uma com o dobro do peso. Criação seletiva, hormônios e ração química permitiram que as fazendas industriais produzissem não apenas mais carne, mais rápido. O sofrimento dos animais e a qualidade da comida são preocupações secundárias ou simplesmente inexistem.

- Terras férteis são destruídas, florestas são desmatadas e populações de peixes entram em colapso, tudo porque o capitalismo precisa operar em velocidades muito mais rápidas do que os ciclos naturais de reprodução e crescimento.

- O carbono que levou centenas de milhões de anos para se formar vem sendo consumido pelo capitalismo há menos de dois séculos. Milhões de toneladas de CO2 são liberados muito mais rapidamente do que os oceanos e outros elementos naturais conseguem removê-los da atmosfera.

A crise climática está levando o caos a centenas de milhões não porque os mercados não estejam funcionando bem o suficiente, mas porque funcionam bem demais na aceleração dos ciclos globais de energia e materiais.

As informações acima estão no livro “Enfrentando o Antropoceno”, de Ian Angus. Explicam porque o Antropoceno é tragicamente capitalista.

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24 de setembro de 2024

O imperialismo na fase digital do capitalismo

Há alguns anos, o governo federal vem assinando convênios com a Google. Um exemplo é o que foi anunciado em junho de 2023, visando facilitar o acesso a benefícios sociais e vacinas. Mas também há a utilização do gmail como correio eletrônico oficial de muitos órgãos públicos.

Em recente entrevista, o pesquisador especializado em tecnologia digital Evgeny Morozov, demonstrou preocupação com esse tipo de relação:

Se uma empresa se tornar o fornecedor padrão de serviços de análise de dados nos nossos ministérios da saúde, diz ele, o estado de bem-estar social permanecerá o mesmo ou serão privatizados pela Big Tech?

Ainda segundo Morozov:

Estamos perante a mesma situação que os teóricos da dependência descreveram nas décadas de 1960 e 1970: o progresso tecnológico ocorre em paralelo com a regressão econômica ou o subdesenvolvimento industrial.

Quando fala em teóricos da dependência, Morozov deve estar se referindo a nomes como Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e Vania Bambirra. Segundo estes pensadores, o subdesenvolvimento dos países periféricos não é um estágio a caminho do desenvolvimento, mas resultado de sua inserção subalterna na economia mundial capitalista.

Vale a pena ler a longa entrevista na íntegra. Morozov manifesta muitas outras preocupações relacionadas às transformações provocadas pela tecnologia digital. Várias delas bastante pertinentes e esclarecedoras. Mas também faz afirmações polêmicas, como a necessidade de a esquerda buscar atender as demandas de uma “subjetividade pós-moderna”.

Pode até ser. Mas a persistência da validade da teoria da dependência em plena era das big techs parece demonstrar que continuamos mergulhados na velha modernidade capitalista. Também conhecida como imperialismo.

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