Doses maiores

30 de novembro de 2017

Rosa Luxemburgo: o futuro pertence ao “bolchevismo”

Em setembro de 1918, Rosa Luxemburgo escreveu algumas notas que ficaram conhecidas pelo título “A Revolução Russa”. O texto faz uma crítica fraternal, mas muito firme, de várias medidas tomadas pelos bolcheviques em seus primeiros meses de governo.

As divergências de Rosa se relacionam, especialmente, às questões agrária e das nacionalidades, assim como ao que ela considerou serem restrições à liberdade política dos trabalhadores.

Mas pessoas muito próximas à autora, como Clara Zetkin, afirmaram que estas críticas já vinham sendo revistas por ela mesma. Afinal, Rosa fez suas anotações no isolamento de um cárcere alemão, com acesso restrito aos detalhes sobre a situação na Rússia.

Além disso, o texto veio à luz em 1922, três anos após a morte de Rosa. O responsável pela publicação foi Paul Levi, que travava uma luta ideológica com a direção do Partido Comunista alemão. Fator que, certamente, pesou mais do que qualquer respeito às preocupações teóricas de sua autora.

De qualquer modo, no final do texto Rosa reconhece o acerto da ousadia política dos bolcheviques durante o processo revolucionário russo. “Nesse sentido”, ela faz questão de enfatizar:

...o que permanece seu mérito histórico imperecível é que conquistando o poder político e colocando o problema prático da realização do socialismo abriram o caminho ao proletariado internacional e fizeram progredir consideravelmente o conflito entre capital e trabalho no mundo inteiro. Na Rússia, o problema só podia ser posto. Não podia ser resolvido na Rússia, ele só pode ser resolvido em escala internacional. E, nesse sentido, o futuro pertence em, toda parte, ao “bolchevismo”.

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29 de novembro de 2017

Alguns oásis na travessia de “O Capital”

Para suavizar a árida travessia da leitura de sua maior obra, Marx oferecia alguns oásis literários.

Ao discutir, por exemplo, a utilização capitalista das máquinas, ele cita palavras do degolador Bill Sykes, de Charles Dickens:   

Senhores jurados, não há dúvida de que a goela deste caixeiro-viajante foi cortada. Mas isso não é culpa minha, é culpa da faca. Teremos nós, por causa deste inconveniente temporário, de abolir o uso da faca? Vejam só! Onde é que estariam a agricultura e o comércio sem a faca? Não é ela tão salutar na cirurgia quanto conhecedora em anatomia? E além disso uma ajuda que se deseja à mesa do festim? Se abolem a faca — lançam-nos de volta nas profundezas da barbárie.

Há um trecho em que Marx destaca a capacidade do capitalismo em transformar trabalho vivo em trabalho morto. Em valor que se valoriza a si mesmo e, ainda assim, tem a capacidade de se mostrar como “um momento animado que começa a ‘trabalhar’ como se tivesse ‘amor no corpo’”. Esta última expressão pertence a um verso do “Fausto”, de Goethe.

Por fim, “Antígona”, de Sófocles:

Nada suscitou nos homens tantas ignomínias/ como o ouro. É capaz de arruinar cidades,/ De expulsar os homens de seus lares./ Seduz e deturpa o espírito nobre/ Dos justos, levando-os a ações abomináveis,/ Ensina aos mortais os caminhos da astúcia e da perfídia,/ E os induz a cada obra amaldiçoada pelos deuses.

Mas como disse Shakespeare, em outra frase presente na obra, “o curso do verdadeiro amor nunca é sereno”. E o deserto continua logo adiante, esperando pelos persistentes leitores.

28 de novembro de 2017

Inteligência artificial, com spoiler

O livro “Homo Deus”, de Yuval Harari, pode despertar desconfianças por ser um best-seller. E seu autor tem sido acusado de fatalista, positivista etc. Mas sua leitura ajuda bastante como introdução ao debate sobre as consequências do desenvolvimento da inteligência artificial.

Seguem abaixo os trechos finais da obra. Aos que não leram ainda pode até ser uma espécie de “spoiler”, mas de forma alguma substitui o prazer da leitura:

Se pensarmos em termos de décadas, avultam o aquecimento global, o crescimento da desigualdade e a disrupção do mercado de trabalho. Mas, se adotarmos uma visão realmente ampla da vida, todos os outros problemas e desenvolvimentos serão ofuscados por três processos interconectados:

1. A ciência está convergindo para um dogma que abrange tudo e que diz que organismos são algoritmos, e a vida, processamento de dados.

2. A inteligência está se desacoplando da consciência.

3. Algoritmos não conscientes mas altamente inteligentes poderão, em breve, nos conhecer melhor do que nós mesmos.

Esses três processos suscitam três questões-chave, que espero que fiquem gravadas em sua mente muito depois de você ter terminado a leitura deste livro:

1. Será que os organismos são apenas algoritmos, e a vida apenas processamento de dados?

2. O que é mais valioso — a inteligência ou a consciência?

3. O que vai acontecer à sociedade, aos políticos e à vida cotidiana quando algoritmos não conscientes mas altamente inteligentes nos conhecerem melhor do que nós nos conhecemos?

Como se vê, Harari sugere que nosso maior desafio não diz respeito à inteligência artificial. Diz respeito à inteligência. A nossa.

27 de novembro de 2017

Inteligência Artificial: temor religioso

“Dentro da primeira igreja de Inteligência Artificial” é uma reportagem de Mark Harris, publicada por Wired em 15/11.

Trata-se de “Caminho do Futuro”, recém criada por Anthony Levandowski, engenheiro conhecido por ter desenvolvido carros autônomos.

Sua missão? "Realização, aceitação e adoração de uma divindade baseada na Inteligência Artificial desenvolvida através de softwares e hardwares de computador".

A matéria traz inúmeros depoimentos tão coerentes quanto espantosos de Levandowski. Por exemplo, ao definir a divindade que cultua:

Não é um deus no sentido de causar um raio ou furacões. Mas se existe algo um bilhão de vezes mais inteligente que o ser humano mais inteligente, de que mais o chamamos?

Por trás do projeto, precaução:

No futuro, se algo for muito, muito mais inteligente, haverá uma transição sobre quem está no comando de verdade. O que queremos é a transição pacífica e tranquila do controle do planeta dos humanos para o que for. E garantir que esse “o que for” saiba quem o ajudou.

Quase covardia:

Adoraria que a máquina nos enxergasse como seus queridos anciãos nos respeitando e cuidando de nós. Gostaríamos que esta inteligência dissesse: “Os humanos devem continuar tendo direitos, mesmo que eu esteja no comando”.

Precisamos aprender a nos comportar como um animal doméstico. Trabalho duro e respeito pelo dono ou castigo.

Vale até comparação com uma criança peralta. É preciso tentar corrigi-la sem usar agressividade. Do contrário, ela não “será nada amigável quando a situação se inverter”.

Seria como surrar o trombadinha na infância e encontrá-lo, já adulto, como o traficante dono do pedaço.

Como em muitas religiões, o temor é fundamental.

Leia também: Socialismo seria igual a sovietes mais inteligência artificial?

24 de novembro de 2017

Putin, o czar, acusa os bolcheviques de traição


O centenário da Revolução de Outubro na Rússia foi ignorado pelas autoridades locais. Um discurso feito por Vladimir Putin ajuda a entender porquê.

Em 2012, Putin já estava no comando da Rússia desde 1999. Em junho daquele ano, ele falou na Câmara Alta do Parlamento Russo. Ao lembrar as vítimas russas da Primeira Guerra, o governante culpou os bolcheviques pela “derrota” de seu país no conflito.

Segundo ele, o governo liderado por Lênin traiu os interesses nacionais ao negociar um tratado de paz "vergonhoso" com a Alemanha. Só não disse que foi o tratado que acabou empurrando o conflito para seu final, poupando milhões de vidas.

Para Putin, somente Stálin merece respeito, pois teria tornado a Rússia grande novamente, além de ser responsável pela derrota do nazismo na Segunda Guerra. Daí uma das datas mais festejadas pela cúpula russa ser 9 de maio. Neste dia, em 1945, as tropas soviéticas derrotaram os nazistas na “Batalha de Stalingrado”.

Neste caso, Putin segue a historiografia stalinista e ignora que a heroica vitória das tropas soviéticas não aconteceu graças a Stálin, mas apesar dele. Afinal, Stálin confiou no pacto que fez com Hitler até as vésperas da invasão do território russo pelo exército alemão.

Outra comemoração oficial importante é 4 de novembro, Dia da Unidade Nacional. Nesta data, em 1612, tropas invasoras polonesas foram expulsas de Moscou, apesar da ausência de um Czar para guiar a resistência russa.

O povo russo bem que poderia se inspirar nas duas datas favoritas das autoridades para se livrar de seu atual czar, figura querida por forças de extrema-direita no mundo todo.

23 de novembro de 2017

Quando não há recuos porque não houve avanços

Desde a posse do governo golpista, a sucessão de retrocessos sociais e políticos acelerou fortemente. As poucas conquistas populares que não eram letra morta na legislação estão sendo eliminadas.

O conservadorismo atinge com rapidez e violência quase inédita todas as frentes de luta: trabalhista, ambiental, feminista, antirracista, sexual, educacional, agrária, indígena e direitos humanos em geral. Mas há uma exceção importante. A democratização dos meios de comunicação.   

Em 21/11, A organização Repórteres Sem Fronteiras e o coletivo Intervozes apresentaram o relatório “Monitoramento da Propriedade da Mídia no Brasil”. O levantamento envolveu os 50 veículos de comunicação com maior audiência no Brasil e os 26 grupos econômicos que os controlam.

Apenas um dos dados ajuda a entender todo o resto e mais além: 80% dos grandes grupos de mídia estão localizados nas regiões Sul e Sudeste do país. E a região metropolitana de São Paulo abriga 73% das empresas do Sudeste.

Toda essa concentração coincide e faz parte da concentração de poder econômico, político e social do país. Os mesmos grupos não apenas asseguram a defesa de seus interesses pelos Três Poderes. Eles também as justificam pelos meios de comunicação que controlam tranquilamente há muitas décadas.

É a maior prova de que o monopólio dos meios de comunicação é um pilar fundamental da dominação capitalista, em especial no Brasil. É a disputa de hegemonia feita de forma tão eficiente que faz parecer que o direito a informação é o único a se manter firme frente à atual onda conservadora.

Realmente, não há recuo possível se não houve avanço algum. Parabéns aos envolvidos. Parabéns para nós!

22 de novembro de 2017

A luta de Marx contra a burguesia e seus furúnculos


Marx levou 15 anos para escrever o primeiro volume de “O Capital”. Principalmente, devido a seu perfeccionismo doentio e à complexidade do objeto de estudo.

Mas nos quatro ou cinco anos antes da publicação, surgiu um problema muito pior: furúnculos. E também carbúnculos, que são aglomerados de furúnculos.

O problema era tão grave que aparece com muita frequência em sua correspondência entre 1864 e 1868. Incluindo momentos em que sua vida correu risco.

Em carta a Karl Klings, de outubro de 1864, por exemplo, ele diz que ficou doente durante todo o ano anterior devido às terríveis feridas.

Se não fosse por isso, diz Marx, meu trabalho sobre economia política, "O Capital", já teria saído. Espero poder completá-lo em alguns meses, atingindo a burguesia com um golpe teórico do qual nunca poderá se recuperar.

Em fevereiro de 1865, Engels escreveu:

Estou um pouco preocupado por não tido notícias suas hoje, em vista dos furúnculos e carbúnculos que você mencionou nos lugares mais interessantes (ou melhor, mais interessados).

Escrevendo a Engels, um ano depois, Marx informa que ele mesmo tomou a iniciativa de lancetar uma das feridas, já que não poderia “permitir aos médicos que lidassem com minhas partes mais privadas ou suas vizinhanças”.

Finalmente, em junho de 1867, o primeiro volume estava pronto. E feliz com a aprovação de Engels, Marx escreveu:

Que você tenha ficado satisfeito é agora mais importante para mim do que qualquer coisa que o resto do mundo possa achar. De qualquer forma, espero que a burguesia se lembre dos meus carbúnculos até o dia de sua morte.

Que assim seja!