Doses maiores

2 de junho de 2022

Lélia Gonzalez, falando em bom pretuguês

“Eu sou uma mulher nascida de família pobre, meu pai era operário, negro, minha mãe uma índia analfabeta”. É assim que Lélia Gonzalez inicia uma entrevista concedida para a Revista Z Cultural, em 1980. 

Grande intelectual e militante do feminismo e do movimento negro, Lélia tinha entre suas grandes preocupações o papel da língua como elemento de disputa da hegemonia. Daí porque tenha criado palavras como "pretuguês", referindo-se ao idioma falado no cotidiano brasileiro. Ou “Améfrica-Ladina”, para evidenciar um continente muito menos europeu do que se acredita.

Entre suas principais referências teóricas, está a psicanálise, que nos ensinou a prestar mais atenção ao que permanece calado e a não se deixar enganar pela pretensa neutralidade da linguagem. Em 1984, lembrando que a psicanálise encontra seus elementos mais valiosos na lata de lixo da lógica, ela escreveu em seu ensaio “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”:

...na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. Por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa. 

Infelizmente, após tantos anos, vozes como a dela continuam sendo caladas.

3 comentários:

  1. Eu gosto quando o povo "inventa línguas", normalmente são com palavras que tem uma pronúncia difícil e eles criam uma sonoridade mais simples e fácil, mas tem vezes em que ele cria livremente pelo que imagino ser uma livre associação de coisas com que convive. Pareceu meio artificial alguém criar palavras para ter uma nova linguagem, seja por que motivo for; mas acho que as palavras também podem ser criadas por pessoas que querem atribuir um sentido que até então não existia, ou contrapor como parece o caso dela. Acho que tem muitas formas e meio da linguagem surgir, acho o mais difícil é elas persistirem.

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    1. Sim, mas no caso, é um uso político, uma provocação pra chamar pra briga. Precisamos muito disso.

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  2. Ah sabe que eu lembrei, na minha infância o povo costumava falar "pertugues". Acho que faz parte daquela forma de facilitar a dicção que comentei antes.

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