Doses maiores

6 de novembro de 2020

Identidade, universalidade e autoemancipação

Em “Armadilha da identidade”, Asad Haider descreve a comparação que o filósofo italiano Massimiliano Tomba fez entre as duas versões francesas da Declaração dos Direitos do Homem. A declaração de 1789 fundamenta-se num universalismo jurídico. Mas, explica Haider:

Seja uma mulher a ser protegida do discurso pornográfico ou um muçulmano a ser protegido do preconceito religioso, o universalismo jurídico não confere nenhuma capacidade de ação a esses sujeitos – suas únicas existências políticas são mediadas pela proteção do Estado. A declaração de 1793, em contraste, manifesta uma universalidade insurgente, trazida ao palco histórico pelas sublevações de escravos na Revolução Haitiana, pela intervenção das mulheres no processo político que as excluía, e pelas reivindicações dos sans-cullotes ao direito à comida e à vida. Ela “não pressupõe nenhum portador abstrato de direitos”, escreve Tomba, mas, ao invés disso, “refere-se a indivíduos concretos e particulares – mulheres, os pobres, os escravos – e suas capacidades de ação política e social”. Aqui encontramos um novo paradoxo: “a universalidade desses indivíduos concretos e particulares atuando nas suas situações específicas é mais universal do que o universalismo jurídico dos abstratos portadores de direitos”.

 A verdade, conclui Haider, é que:

  

...universalidade não existe em abstrato, como princípio prescrito a ser mecanicamente aplicado independente das circunstâncias. Ela é criada e recriada pelo ato de insurgência, o qual não reivindica a emancipação unicamente para aqueles que compartilham minha identidade, mas para todos; a universalidade diz que ninguém será escravizado. Ela igualmente recusa congelar os oprimidos num status de vítimas que necessitam de proteção de cima; insiste que a emancipação é autoemancipação.

 Universalidade restrita e sem autoemancipação é subordinação.

 Leia também: Nacionalismo negro e reacionarismo branco

Um comentário:

  1. Frase excelente: “a universalidade desses indivíduos concretos e particulares atuando nas suas situações específicas é mais universal do que o universalismo jurídico dos abstratos portadores de direitos”

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